Lives de Ciência

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sexta-feira, 13 de julho de 2012

Como é que é? - Todo grande crescimento é exponencial e todo crescimento exponencial é grande?

Lemos em uma reportagem no Estadão:
"Um ex-traficante de Heliópolis, na zona sul, que começou no tráfico em 2002 e ali trabalhou até o ano passado, quando se tornou evangélico, conta que o crescimento das bocas foi exponencial. No começo do ano 2000, segundo ele, eram duas bocas maiores, que brigavam entre si. Atualmente, pouco antes de sair, o total de vendedores já havia passado dos 50." (grifos meus)


Pode até ser que tenha ocorrido crescimento de forma exponencial, mas apenas com esses dados não é possível saber. Na Figura 1, os dois dados estão plotados e vemos como vários tipos de curvas podem ser ajustadaos - a exponencial é a verde, mas há a linear em vermelho, e mais duas outras e uma infinidade (infinitas curvas mesmo) de outras curvas não representadas.


Figura 1. Exemplos de curvas que poderiam explicar o modo de crescimento das bocas de fumo no bairro de Heliópolis, na Zona Sul de São Paulo, SP.


Um crescimento exponencial (bem como de decaimento exponencial) ocorre quando a taxa de variação do valor de uma variável é uma proporção fixa em relação ao próprio valor da variável: naturalmente a taxa é positiva no crescimento e negativa no decaimento. Por exemplo, se a taxa de inflação anual é fixa em, digamos, 2%, ao longo do tempo, os preços médios dos produtos terão um aumento exponencial.


A curva é descrita por funções na forma:
N(t) = N(0).eλt


Sendo N(t) o valor da grandeza no tempo t, N(0) o valor inicial, e é o número de Euler, λ é uma constante (de crescimento, se positiva, ou de decaimento, se negativa) e t é o tempo decorrido desde o início.


Precisamos de pelo menos mais um valor intermediário para ter uma confiança maior em se é mesmo exponencial ou não. Por exemplo, se para o ano 2006, o número de bocas de fumo tiver sido próximo a 30, não é compatível com um crescimento exponencial; se o valor for próximo a 10, sim. (Ainda assim haveria um sem número de outras curvas compatíveis com esses três pontos, mas eliminaríamos várias possibilidades.)


Em outra reportagem lemos:
"Essa obra, aclamada por dirigentes como o maior legado de Andrés Sanchez além do estádio em Itaquera, foi também responsável pelo lado 'ruim' da atual administração: o aumento exponencial da dívida.Ela praticamente dobrou de tamanho de 2007 a 2011, segundo dados preliminares do departamento financeiro do clube.O passivo passou de R$ 100 milhões para R$ 190 milhões."


Novamente, temos apenas dois pontos. Felizmente, alhures* temos a série completa entre 2007 e 2011 da evolução da dívida do clube paulista. Na Figura 2 estão representados tanto os valores contabilizados quanto a curva exponencial (em vermelho - em azul, curva de ajuste polinomial de terceira ordem):


Figura 2. Evolução da dívida do Sport Club Corinthians Paulista.


Os valores não se ajusteam tão bem a um modelo de crescimento exponencial - embora seja uma dívida crescente (e o indicativo para os anos imediatamente subsequentes é de um crescimento em ritmo maior do que o exponencial). Verdade que também não se ajustam tão mal - com um índice de correlação de 0,84 - e é um modelo mais simples do que o ajuste polinomial; mas um ajuste linear (não mostrado), não é muito pior - 0,82 - e é bem mais simples.


Em mais uma reportagem ainda:
"Esse aumento exponencial do risco regulatório na Argentina acaba por prejudicar os outros países latino-americanos, inclusive o Brasil."


Não temos nenhum dado apresentado ali de medida de risco regulatório. Há vários riscos com procedimentos de quantificação, não sei se os que envolvem questões de regulação de mercados está entre eles. Mas o uso neste caso de "aumento exponencial" é claramente metafórico. Esse uso tem se tornado comum com o sentido de uma variação rápida com potencial de se atingir valores muito grandes em curto período de tempo. Porém, o quão rapidamente o crescimento exponencial levará a grandes números varia com o valor de λ. Um valor suficientemente baixo pode levar a uma taxa decepcionantemente baixa e frustrar as expectativas que se têm quando se usa a expressão "aumento exponencial", como nesta tirinha do xkcd:



(Juros compostos - ou juros sobre juros - é uma das formas de funções exponenciais. Dívidas roladas, por sua vez, especialmente no cartão de crédito e em cheques especiais, costumam ter λ grandes o suficiente para se tornarem rapidamente impagáveis - algo como 10% ao mês em alguns bancos. Figura 3.)


Figura 3. Evolução da dívida ao longo de um ano de acordo com a taxa mensal de juros.




*Obs: Os valores podem ser conferidos aqui, aqui e aqui.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

A oficina do professor

Uma corda atravessava em viés o teto da edícula. Dependurados, dois pêndulos afastados entre si a uma distância de, o quê, metro e meio?

Sob o olhar algo distraído do visitante, ele pegou a esfera de um dos pêndulos e, com um impulso rápido da mão, pô-la a balouçar. A massa oscilava como é de se esperar de qualquer pêndulo. Sem surpresas, aos poucos, o vai-vém foi diminuindo. Alguém mais atento teria notado que a diminuição era mais rápida do que seria de se esperar pela dissipação da energia pelo atrito com o ar e pelo atrito interno na corda que sustentava o sistema.

A energia estava sendo transferida para o outro pêndulo, intocado. À medida em que o primeiro tinha sua amplitude de oscilação cada vez menor, o outro começava a desenhar um arco cada vez mais aberto. Depois de atingir o pico, quando o outro parava completamente; sua oscilação também começou a diminuir. Enquanto isso, o primeiro reiniciava sua oscilação. Esse balanço alternante continuou - claro, a cada vez, a maior amplitude de oscilação diminuía por causa dos mencionados atritos. Uma demonstração simples de sistema de pêndulos acoplados e de ressonância mecânica. Simples e poderosa.

Encostada ao pé da bancada - uma mesa ampla e antiga de madeira sólida - uma roda de bicicleta. O eixo fora estendido com dois pedaços de cano de aço soldados de cada lado. Ele pegou por uma das pontas estendidas, mantendo a roda mais ou menos na horizontal. Com a outra mão, em outro impuso rápido, pô-la a rodar. "Pegue", disse para o visitante, transferindo a roda. Enquanto a visita, meio desajeitadamente, segurava com as duas mãos, instruiu: "Agora deite a roda". "Fácil", pensou o visitador, para rapidamente mudar de ideia quando tentou inclinar o objeto. Quando ele parou o giro da roda com a mão, finalmente o visitante conseguiu realizar o o movimento de pôr o objeto na horizontal. Embora com entendimento teórico prévio, o visitante só então experimentou diretamente o resultado da conservação do movimento angular e o efeito giroscópico. (Na verdade havia, sim, experimentado, na própria bicicleta - embora tudo seja mais complicado.)

Sobre a bancada, entre uma infinidades de objetos, um núcleo de ferro - várias lâminas quadradas vazadas de ferro sobrepostas - com fio de cobre enrolado na parte de cima e de baixo: um transformador elevador de tensão. Limpando a área ao redor, puxou o núcleo de ferro para mais próximo. Pegou duas varetas metálicas conectando-as, em V, ao transformador. Ligando o sistema à tomada e acionando o botão, uma fagulha de eletricidade surgiu na porção inferior do V. Dzzzzzt. O arco subia para se desfazer no alto. Na parte de baixo, um novo arco refazia o caminho do anterior. E outro. E outro. Resistividade elétrica do ar, ionização, indução elétrica, vários conceitos de eletrodinâmica reunidos no chifre elétrico. O visitante observava calado. Mas seus olhos e modos certamente diziam muito mais do que palavras falariam, dado o crescendo do entusiasmo do anfitrião.

Na prateleira - de fato, em *uma* das prateleiras que cobriam três das quatro paredes da edícula - ele buscou um objeto empoeirado. Na base de madeira, um tubo de vidro se prendia por dois grampos metálicos. Uma bolha de ar indicava que o cilindro estava repleto de líquido cristalino. Sim, água. Uma placa deslizante fazia um papel quadriculado passar por sob o cilindro. À medida em que se deslocava a placa, o visitante pôde ver e ler através do vidro as palavras escritas sobre o quadriculado se inverterem. Mas algumas mantinham-se inalteradas. Magia? Não. Pura física óptica, simetria e engenhosidade no uso da lente cilíndrica.

De outra parte da prateleira, um conjunto com dois tubos longos de vidro. Desta vez sem água. Em uma delas, penas; na outra, bolinhas de metal. O ar foi quase todo removido com uma bomba antes de se selarem os tubos. Ele inclina ligeiramente o sistema de modo que bolas e penas se acumulem nas extremidades do mesmo lado. Em característica movimentação lépida da mão, o conjunto é colocado na vertical. Tanto quanto se pode perceber, penas e esferas metálicas alcançam a outra extremidade dos respectivos tubos ao mesmo tempo. Em outro conjunto de tubos, idêntico ao primeiro, exceto pelo fato de o ar não te sido removido, a situação é bem diferente. A demonstração cabal do que Galileu intuiu em seus experimentos com esferas em plano inclinado (e do experimento, reza a lenda, na torre de Pisa): a aceleração idêntica da gravidade para todos os objetos abandonados da mesma altura da superfície da Terra e postos em queda livre.

Esses e vários outros experimentos foram sendo mostrados a mim pelo Prof. Leo durante a tarde em sua oficina em Barretos-SP. Nas prateleiras, além dos dispositivos de demonstrações construídos pelo próprio professor, vidros e vidros com todo tipo de roscas, parafusos, molas, pregos. Como uma coleção taxonômica. Na bancada, morsa, sargento e outras ferramentas com que consertava os objetos estragados e elaborava novos.

Confesso que tendo a ser demasiadamente teórico e que a leitura e a compreensão das teorias me satisfazem quase sempre. Mas ter os fenômenos desenvolvendo-se diante de meus olhos trazia-me uma sensação completamente nova. Curiosamente até a véspera, o próprio Prof. Leo para mim era também algo apenas "teórico". Era nosso primeiro - e infelizmente seria o único - encontro pessoal após anos de correspondência eletrônica. Apesar de ter ido me buscar na rodoviária às 5 da manhã, não parecia nada cansado naquelas demonstrações - bem ao contrário.

À noite ainda se dedicaria a atualizar seu Feira de Ciências (fico feliz de ter ajudado em diminuir um pouco seu trabalho, ao automatizar a atualização de páginas conforme uma página principal era modificada - meus rudimentos de php, permitiu-me encontrar uma função equivalente em asp), responder às dezenas de emails com dúvidas de alunos, professores e curiosos sobre eletrônica, eletricidade, astronomia..., terminar de escrever a coluna sobre, claro, ciências que seria publicada em um jornal local.
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Outras homenagens ao grande Prof. Leo:
A Ciência Fica mais Pobre
Nosso Professor de Ciências
Na Ciência-list: aqui e aqui.
Na profleo.
Tristes notícias ):
Boletim da Sociedade Brasileira de Física: Luiz Ferraz Netto (triste perda)
Morre Professor Léo Ferraz
Falecimento de um grande professor!
Da alegria à tristeza

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Um simples educador

O Prof. Luiz Ferraz Netto faleceu hoje, no mesmo dia em que físicos do CERN anunciam a descoberta de uma partícula "consistente com o bóson de Higgs".

O Prof. Leo, como todos o chamávamos, definia-se como um "simples educador". Era isso, simples e educador. Mas também foi muito mais do que isso.

Nascido em Bebedouro-SP e formado em Física na USP, foi professor em diversas escolas e faculdades; apresentou o quadro "Oficina de Física" no programa infanto-juvenil Revistinha da TV Cultura e teleaulas de física no Vestibulando da mesma emissora; colaborou com diversos jornais com textos sobre ciências e escreveu diversos livros didáticos e paradidáticos de física. Assessorou o Laboratório de Demonstrações do IF-USP e a Estação Ciência, desenvolvendo diversos aparatos que apresentam aos visitantes vários princípios físicos.

Esses conhecimento e experiência acumulados foram coligidos no sítio web www.feiradeciencias.com.br - com diversos projetos a serem realizados tanto por alunos, para expandirem seus conhecimentos (e concorrer em feiras científicas), quanto por professores, para demonstrações.

O grande projeto em que estava empenhado agora era construir um parque científico em Barretos-SP, onde estava radicado, deixando disponível para o público sua extensa coleção de instrumentos e experiências didáticas. Houvera um pouco mais de visão e boa vontade dos políticos locais, certamente a cidade ganharia uma atração muito mais rica do que os rodeios anuais.

Foi assistindo ao Revistinha e ao Vestibulando que conheci o Prof. Leo - seria injustiça com ele chamá-lo de Beakman brasileiro, o mais correto seria inverter, chamando o personagem de Paul Zaloom de Prof. Leo americano - e através do ciência-list do Luis Brudna, pude trocar ideias (sempre com desvantagem nessa troca para o professor, evidentemente), o que me valeu, nos fins da década passada, um convite para visitá-lo e conhecer sua fabulosa coleção didática*.

Um fim de semana inesquecível, em que ganhei lições de ciência e de vida. Um bate-papo incrível em que ele contava sua experiência de vida - como antigamente ele precisava tirar água do poço, e, sem geladeira (nem energia elétrica), a comida era preservada mergulhando-se em um balde com banha solidificada de porco. Conheci seus adoráveis filhos menores - e o mais novo, com cinco anos, já se metendo entre experiências científicas de eletricidade e química (terá inventado o soro do supersoldado a esta altura?). Da horta ao fundo de sua casa, desencavamos a mandioca que seria servida frita no dia seguinte.

Voltei de lá com uma pequena lista de compras: o professor Leo havia me incumbido a arranjar-lhe algumas peças que não se achava por lá, apenas em Santa Ifigênia em São Paulo. Acabei por nunca lhe enviar peça nenhuma.

Prof. Leo não tinha nenhuma paciência com bobajadas pseudocientíficas e misticóides, com sua ironia afiada (e desbocada) destroçava qualquer tentativa de distorção das ciências como apropriação indébita da física quântica por sectários da Nova Era (embora ele mesmo torcesse um tanto o nariz para a física quântica atual). Mas era um monge de tranquilidade para explicar conceitos científicos complicados para quem tivesse dúvidas sinceras. Pessoalmente era alguém com quem você conversaria a noite toda e ouviria com brilho nos olhos todos os causos, um mais fascinante do que o outro - acompanharia vivamente as transformações passadas pela cidade de São Paulo na segunda metade do século 20, bem como as mudanças tecnológicas vivenciadas pelo mundo no período.

Meu amigo, não lamentarei o quanto a ciência e a educação brasileiras perdem com sua morte. Celebrarei o quanto elas ganharam com sua vida.

*Upideite(06/jul/2012): Detalho aqui meu contato com a coleção didática. Imagens de vários dos equipamentos e dispositivos foram publicadas pelo Prof. Leo em seu Feira de Ciências.

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