Lives de Ciência

Veja calendário das lives de ciência.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Mala Influenza 19

Alguns estudos têm indicado uma associação causal entre certos tipos de vacinas contra o vírus pH1N1 que levam o adjuvante AS03 com um aumento na incidência de narcolepsia infanto-juvenil. O risco é estimado entre 1:57.500 e 1:52.000 (casos de narcolepsia por dose aplicada). (Miller et al. 2013)

São necessários estudos mais aprofundados para estabelecer bem essa conexão e as eventuais causas (o suspeito maior é o adjuvante).

Há motivos para preocupação, mas não para pânico. E muito menos para se deixar de vacinar: há outras vacinas disponíveis que levam outros adjuvantes.

No caso do vírus da gripe pandêmica de 2009, a taxa global de infecção foi estimada entre 11 e 21%: 16-28% das crianças até 5 anos; crianças e adolescentes entre 5 e 19 anos: 34-43% , em adultos: 12-15% e em idosos (60 anos ou mais): 2-3%. (Kelly et al. 2011)

No mundo, estima-se que 284.400(151.700–575.400) morreram em decorrência da gripe pandêmica de 2009. Entre jovens de até 17 anos: 44500 (22.400–80.100) mortes; entre 18 e 64 anos: 183.700 (98.800–342.200) mortes. E 56.400 (30.500–233.700) mortos com mais de 64 anos. (Os valores entre parênteses indicam a variação das estimativas.) As razões de mortalidades entre os casos sintomáticos foram de: 1:20.000 (até 17 anos), 1:3.500 (de 18 a 64 anos), 1:806 (acima de 64 anos). (Dawood et al. 2012.)

A vacina monovalente contra o pH1N1 teve uma eficiência entre 71,9% (intervalo de confiança a 95%: 45,6–85,5%). (Valenciano et al. 2011)

Sem vacinação, o risco de morte por gripe pandêmica na faixa entre 4 e 18 anos era entre 1:47.000 e 1:59.000 indivíduos, e de narcolepsia de 1:238.000 indivíduos. Com vacinação, o risco de morte cai para algo entre 1:165.500 e 1:209.300, e o de narcolepsia sobe para 1/16.500.

Certamente os casos de narcolepsia são preocupantes e é um drama familiar que deve ser levado em conta. E isso deve conduzir a estudos para melhoria das vacinas, especialmente as que atualmente usam o adjuvante AS03 (caso a ligação causal seja confirmada - mas até lá, por precaução, pode-se recorrer a vacinas testadas com formulações diferentes). Mas, nem de longe, mesmo com eventual confirmação, será argumento contra as vacinas antigripais em particular e vacinas em geral - mesmo que todas as vacinas tivessem a mesma formulação e probabilidade de indução ao desenvolvimento da narcolepsia, a redução da mortalidade certamente mais do que compensa o risco. (Naturalmente, as políticas públicas de saúde, incluindo as campanhas vacinais, devem ser pautadas em análises a respeito de riscos com base nos melhores dados disponíveis.)

Referências
Dawood, F., Iuliano, A., Reed, C., Meltzer, M., Shay, D., Cheng, P., Bandaranayake, D., Breiman, R., Brooks, W., Buchy, P., Feikin, D., Fowler, K., Gordon, A., Hien, N., Horby, P., Huang, Q., Katz, M., Krishnan, A., Lal, R., Montgomery, J., Mølbak, K., Pebody, R., Presanis, A., Razuri, H., Steens, A., Tinoco, Y., Wallinga, J., Yu, H., Vong, S., Bresee, J., & Widdowson, M. (2012). Estimated global mortality associated with the first 12 months of 2009 pandemic influenza A H1N1 virus circulation: a modelling study The Lancet Infectious Diseases, 12 (9), 687-695 DOI: 10.1016/S1473-3099(12)70121-4

Kelly, H., Peck, H., Laurie, K., Wu, P., Nishiura, H., & Cowling, B. (2011). The Age-Specific Cumulative Incidence of Infection with Pandemic Influenza H1N1 2009 Was Similar in Various Countries Prior to Vaccination PLoS ONE, 6 (8) DOI: 10.1371/journal.pone.0021828

Miller, E., Andrews, N., Stellitano, L., Stowe, J., Winstone, A., Shneerson, J., & Verity, C. (2013). Risk of narcolepsy in children and young people receiving AS03 adjuvanted pandemic A/H1N1 2009 influenza vaccine: retrospective analysis BMJ, 346 (feb26 2) DOI: 10.1136/bmj.f794

Valenciano, M., Kissling, E., Cohen, J., Oroszi, B., Barret, A., Rizzo, C., Nunes, B., Pitigoi, D., Larrauri Cámara, A., Mosnier, A., Horvath, J., O'Donnell, J., Bella, A., Guiomar, R., Lupulescu, E., Savulescu, C., Ciancio, B., Kramarz, P., & Moren, A. (2011). Estimates of Pandemic Influenza Vaccine Effectiveness in Europe, 2009–2010: Results of Influenza Monitoring Vaccine Effectiveness in Europe (I-MOVE) Multicentre Case-Control Study PLoS Medicine, 8 (1) DOI: 10.1371/journal.pmed.1000388

sábado, 18 de maio de 2013

Her eyes are a blue million miles - A garota chinesa de olhos azuis

Plínio, o Velho, em seu "Naturalis Historia", descreveu os seros, habitantes da Sérica, região himalaia que hoje pertence à China, baseado em relato do embaixador Rachias da Taprobana ao imperador Cláudio: "Eles informaram-nos também que o lado de sua ilha que fica defronte à Índia tem um comprimento de dez estádios e se estende na direção sudeste e que além das Montanhas Emodianas [Himalaias] estão os Seros, de quem tomaram conhecimento com o propósito de comércio; e o pai de Rachias tem visitado com frequência suas terras e os seros sempre vêm ao seu encontro quando de sua chegada. Esse povo, dizem, excedem o homem ordinário em altura, têm cabelos avermelhados e olhos azuis, e um produzem um tipo rústico de ruído ao falar, não tendo nenhuma língua própria para o propósito de comunicar seus pensamentos." (Cap. 24, Taprobana).

Não há uma confirmação da acuidade desses relatos. Mas há registros de chineses han (e não caucasianos como parecem os seros descritos por Plínio) de olhos azuis. Um caso recente relatado na imprensa é de uma garotinha de 11 anos - encontrei referências apenas em sítios web em português e um em espanhol, nenhum na imprensa anglófona ou de outras línguas (nem mesmo na agência citada como fonte da notícia, Barcroft Media).

Diz a matéria no blog Page Not Found:
"A menina nasceu com olhos azuis. [...] Os pais têm olhos castanhos e não há qualquer registro na família de olhos azuis. / A cor da pele e dos cabelos de Chen é a mesma de outras crianças chinesas. Mas a chinesinha, que é surda, tem grande dificuldade de fazer amizades por causa da cor dos olhos. [...] Segundo eles [os médicos que examinaram a garota], a paciente enxerga normalmente mas o fato de ela ter olhos azuis continua sem explicação, de acordo com a agência Barcroft Media."

O relato soa crível - e é tristíssimo o registro da reação dos colegas de escola e dos vizinhos - e as fotos não aparentam manipulação.

É possível que seja o caso da Síndrome de Waardenburg (WS). Trata-se de uma alteração genética rara: acomete cerca de 1 a cada 40.000* nascidos vivos, associada a distúrbio pigmentar e deficiênciaperda auditiva causada por deficiência na migração de células da crista neural durante o desenvolvimento embrionário e na síntese da melanina. Há quatro tipos descritos: nos tipos I, III e IV, ocorre o deslocamento do canto interno do olho (dystopia canthorum), característica ausente no tipo II. No tipo III, há anomalias musculoesquelética nos membros superiores e retardo mental com microcefalia; no tipo IV, há um megacolo aganglionar. Os tipos I e III estão associados a mutações no gene PAX3 - que codifica uma proteína que se liga ao ADN regulando a expressão gênica durante o desenvolvimento; o tipo II, à mutação no gene da microftalmia MITF, a proteína é um fator de transcrição que controla o desenvolvimento de osteoclasto e de melanócitos; o do tipo IV, a mutações em genes da endotelina-3, que controlam o desenvolvimento de células neurais e neurônios entéricos. (Singh et al. 2006, Read & Newton 1997.)

Pelas fotos, a garota não apresenta o deslocamento do canto do olho, parece ser, assim, WS-2. Para o diagnóstico de casos isolados de WS-2, o indivíduo deve apresentar pelo menos duas de quatro características:  (1) perda auditiva sensorineural congênita; (2) distúrbio pigmentar da íris; (3) distúrbio pigmentar do cabelo e (4) parente de primeiro ou segundo grau com duas ou mais das características anteriores (1-3). (Singh et al. 2006, Tassabehji et al. 1994.)

A menina parece ter as características 1 e 2; pela descrição e pela foto, o cabelo é preto sem alteração (assim, o item 3 não se aplica) e não há caso registrado na família (o item 4 também não se aplica).

As células das cristas neurais dão origem a diversas células. Entre elas, as células pigmentares - o que explica os olhos azuis -; e células nervosas - o que explica a surdez.

Um outro relato, mais antigo, envolve um menino, também chinês. Mas há elementos que tornam o caso mais suspeito - como a alegação de que os olhos do garoto brilham no escuro e que ele é capaz de enxergar no escuro. De todo modo, não há uma confirmação de que seja uma história verídica.

Via: ciencialist.

Referências
Read., A.P. & Newton, V.E. 1997. Waardenburg syndrome. J. Med. Genet. 34: 656-665.

Singh I, Maharjan M, Gautam DK, Mehar R, Gathwala G. 2006 Waardenburg syndrome Type II. Kathmandu University Medical Journal. 4(4): 506-9

Tassabehji, M.; Newton, V.E. & Read, A. P. 1994. Waardenburg syndrome type 2 caused by mutations in the human microphthalmia (MITF) gene. Nature Genetics 8, 251 - 255

*Upideite(19/mai/2013): Em Singh et al. 2006 o número é de 1/4.000, mas, apesar de ser mais recente, o valor deve ser mesmo de cerca de 1/42.000 como indicado por Read & Newton 1997 - deve ter havido um erro que suprimiu um '0' no número apresentado por Singh et al. 2006.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Como é que é? - Jabuticaba só existe no Brasil?

A planta arbórea de fruto negro com branca e doce polpa que se desenvolve diretamente no tronco é conhecida popularmente por vários nomes: jabuticabeira (preta, rajada, rósea, vermelho-branca, paulista, ponhema, açu), jaboticabeira, guapuru, pé de fruita... Cientificamente também possui várias sinonímias: Eugenia cauliflora (Mart.) DC, Eugenia jaboticaba (Vell.) Kiaersk., Myrcia jaboticaba (Vell.) Ball., Myrciaria cauliflora (Mart.) O. Berg, Myrciaria jaboticaba (Vell.) O. Berg, Myrtus cauliflora Mart., Myrtus jaboticaba Vell., Plinia jaboticaba (Vell.) Kausel. Seu nome científico válido ainda é alvo de disputa na literatura: Myrciaria cauliflora ou P. cauliflora (Sobral 1985). [Há pelo menos oito outras espécies de jabuticabeiras, como a sabarazeiro (ou jabuticabeira-murta) - P. jaboticaba (Vell) ou Myrciaria jaboticaba.]

O que está fora de disputa é que ela é de ocorrência exclusiva em terras tupiniquins, afinal "ser uma jabuticaba" é sinônimo de "só no Brasil" (geralmente com conotação negativa). Será?

Bem, pelos exemplos:
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Benjamin Steinbruch "País diferente" Folha de São Paulo, 9/out/2012, pág. B8
"A jabuticaba dos juros desse país diferente não poderia continuar para sempre."
(No acervo da Folha, de 61 menções à fruta em 2012, pelo menos 7 eram nesse sentido.)

José Roberto de Toledo "É a geografia, estúpido" O Estado de São Paulo, 12/nov/2012, pág. 5
"O voto geográfico não é exclusividade paulistana. Aparece de Manaus a Salvador, diz Marcia Cavallari. Tampouco é uma jabuticaba, um brasileirismo. Nos EUA, é até mais fácil de ver por conta do bipartidarismo."

Ricardo Noblat "Como jabuticaba" Blog do Noblat 11/nov/2008
"Pois a segunda invenção à espera de reconhecimento universal é o vereador pago. O vereador pago é como a jabuticaba, uma fruta genuinamente nacional."

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A ideia da exclusividade sobre a fruita está bem arraigada... Mas a jabuticaba é "uma fruta genuinamente nacional"? Na verdade, ela ocorre naturalmente também na Bolívia; no Peru; no Paraguai; e no nordeste argentino (Lim 2012, Brack et al. 2011).

Além de ocorrência introduzida também na Venezuela e Guiana Francesa, América Central e nos EUA, especialmente na Flórida. (Figura 1.)

Figura 1. Distribuição de jabuticabeira (Plinia cauliflora) - pontos amarelos. Fonte: Discover Life.

Há que se levar em consideração a existência de uma certa confusão taxonômica - o que se reflete na disputa acerca do nome científico. A identificação da jabuticabeira-açu em outros países pode ser errônea. Como a referência à jabuticaba não especifica a espécie, no entanto, certamente não faz sentido atribuir exclusividade da fruta ao território brazuca - seja na distribuição total, seja na distribuição de ocorrência natural.

Além disso, é referida em expressão popular na Bolívia como na canção "Cunumicita":
"Cunumicita linda que tienes ojos de guapurú"

Ou em conto infantil:
"Yazi era muy bella, de largos cabellos oscuros y ojos de guapurú, pero lo que más llamaba la atención de ella era su forma de ser, tan alegre y risueña que hasta el viento le hacía cosquillas."

Com o mesmo sentido de "olhos de jabuticaba" (redondos e negros como jabuticaba).

Mesmo na eventualidade da jabuticaba ser uma introdução mais recente na Bolívia, ela está bem integrada à cultura local - particularmente da região de Santa Cruz. (Negar, assim, que seja a fruta também boliviana seria o mesmo que dizer que feijão com arroz não é um prato típico brasileiro por serem ambos introduzidos: o primeiro da América Central, o segundo, da Ásia.)

Não sei exatamente quando esse sentido se desenvolveu - ainda não se encontra dicionarizado, pelo menos não no Houaiss, no Aurélio, no Michaelis, nem no Aulete. Pelos acervos da Folha e do Estadão, aparentemente passou a ser usado na imprensa brasileira a partir dos anos 1990s. Talvez referir-se à jabuticaba como sendo exclusividade brasileira seja mais uma jabuticaba (cegueira tipicamente brasileira no que se refere à cultura e eventos nos países vizinhos).

Referências
Brack, P.; Grings, M.; Kinupp, V.; Lisboa, G. & Barros, I. 2011. Espécies arbóreas de uso estratégico para agricultura familiar. (lista preliminar)
Lim, T.K. 2012. Plinia cauliflora. In: Edible Medicinal and Non Medicinal Plants. Vol 3: pp 665-70.
Sobral, M. Alterações nomenclaturais em Plinia (Myrtaceae). Boletim do Museu Botânico de Curitiba, Curitiba, n. 63, p.1-4, 1985.

domingo, 12 de maio de 2013

Padecendo no paraíso 3

ResearchBlogging.org
A galinha tem sido o símbolo por excelência da maternidade e dos cuidados parentais com os filhotes, enquanto o polvo é relegado a representante do submundo (Werness 2006), mas talvez o polvo fêmea fosse um símbolo igualmente ou mais adequado da atenção da mãe à sua cria.

Apesar de os cuidados parentais com ovos serem relativamente raros em organismos marinhos, em várias espécies de polvos - especialmente do gênero Octopus -, as fêmeas apresentam cuidados bastante elaborados. Batham (1957) descreve um caso típico de uma fêmea de Octopus maorum tomando conta de sua massa de ovos em um aquário de Portobello, Nova Zelândia.

Durante todo o período de incubação, a fêmea manteve guarda de sua massa de aproximadamente 7.000 ovos (cimentados no substrato em grupos de 3 a 10 ovos) - saindo para se alimentar provavelmente somente à noite (em outras espécies a fêmea pode deixar completamente de se alimentar, até mesmo recusando alimentos oferecidos pelos criadores). Com movimento dos tentáculos os ovos foram mantidos limpos e sob um leve fluxo de água, ocasionalmente, com o sifão, um jato de água era dirigido aos ovos. Predadores como lesmas marinhas - detectados tanto tátil como visualmente - eram mantidos longe dos ovos com a ajuda dos tentáculos.

A mãe acabou morrendo pouco depois de ocorrer a eclosão das larvas.

Em cefalópodos, tanto machos quanto fêmeas passam por processo de senescência que culmina com a morte dos indivíduos. As fêmeas geralmente passam o período de senescência nesse cuidado com os ovos. Machos senescentes do polvo gigante do Pacífico também param de se alimentar e perdem cerca de 17% de massa corporal antes de morrer; já as fêmeas perdem muito mais: entre 50 e 70% da massa, enquanto tomam conta dos ovos. (Anderson et al. 2002.)

Referências
Anderson RC, Wood JB, & Byrne RA (2002). Octopus senescence: the beginning of the end. Journal of applied animal welfare science : JAAWS, 5 (4), 275-83 PMID: 16221078
Batham, E.J. (1957). Care of eggs by Octopus maorumTransactions of the Royal Society of New Zealand, 84 (3), 629-638
Werness, H.B. 2006. Hen. In: The Continuum Encyclopedia of Animal Symbolism in World Art. Continuum International Publishing Group. 476 pp.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Mitos na ciência: O que mede o índice de citação de artigo?

"An analysis of several quantative studies show that large parts of the field of bibliometry is not pseudo-science in the Popper sense of the world, as they can be shown to be clearly false.
["Uma análise de diversos estudos quantitativos demonstra que grande parte do campo da bibliometria não é uma pseudociência no sentido popperiano, uma vez que se pode demonstrar que são claramente falsas."]

Esta postagem inaugura uma nova série no GR que aborda crenças arraigadas *dentro* do meio científico.

Mito: "Índice de citações mede a qualidade do artigo."
Status: Altamente duvidoso.

Uma questão importante na ciência e para a sociedade é a medida da produtividade científica. Como grande parte dela é financiada pela sociedade, há satisfações a se dar. O principal produto entregue é o artigo científico - o relato pormenorizado dos achados da pesquisa. Mas há produtos bons e produtos ruins. Como diferenciá-los?

Atualmente, mais de 30 mil 1,4 milhão* de artigos por ano são publicados. Tende a ser uma tarefa complicada analisar todos um por um. Mesmo um único departamento, pode publicar mais de mil por ano. Seria tremendamente dispendioso manter um comitê permanente com a função de avaliar a produção científica desse modo.

Na década de 1960 surge o Science Citation Index, um produto proprietário que basicamente listava os artigos incluídos em seu banco de dados juntamente com artigos que os usavam em suas referências bibliográficas. Passando de lista impressa, para versões eletrônicas distribuídas e, então, um banco de dados eletrônico acessível pela internet - e de alimentação manual para atualização automática (através de robôs de leitura de metadados) - o SCI incorporava o índice de citação (quantas menções um artigo recebia ao longo do tempo), metodologia discutida na segunda metade da década de 1950. O argumento era que artigos mais relevantes tenderiam a ser mais citados por outros trabalhos. Sendo, assim, a citação um indicador de qualidade. Ao eliminar a necessidade de leitura e avaliação tediosa de artigo por artigo, o índice de citação tornaria a avaliação da qualidade dos trabalhos muito mais fácil e tremendamente mais barato: um artigo com um número de citação maior do que o outro, naturalmente, teria mais relevância e, portanto, qualidade.

Por décadas, o SCI (inicialmente da Institute for Scientific Information, depois absorvido pela Thomson-Reuters) reinou absoluto, sem concorrentes. Nos últimos 20 anos, vem ganhando adversários. A Scirus (da Elsevier), o Google Scholar, CiteSeerX e outros.

Mas, a despeito de questionamentos, a suposição básica de que o índice de citações é medida de qualidade da pesquisa permaneceu e se fortaleceu - sendo utilizado por agências de fomento na avaliação da produção dos cientistas.

Não faço a menor ideia do que realmente índices de citação de artigos medem, mas há indicações de que, apesar de frequentemente utilizados como medida de qualidade do trabalho, a relação é tudo, menos direta - talvez até inexistente. Abaixo, uma pequena seleção, longe de exaustiva, mas mais ou menos aleatória de artigos encontrados no Google Scholar pesquisando por: "'citation index' validation", "'citation count' validation", "'citation index' 'paper quality'" e expressões afins. Não consegui encontrar nenhum artigo de meta-análise (mesmo procurando por "'citation index' ''meta-analysis" e afins).

  • Wallmark 1986: Compararam-se avaliações por pares (com especialistas internacionais indicados para o estudo) com as citações de trabalhos suecos em 7 áreas. Houve uma correlação de 0,6 entre as classificações dos trabalhos nos dois métodos.
  • Callaham, Wears & Weber 2002. 204 artigos (de 493 trabalhos originalmente submetidos a um encontro de medicina de emergência realizado em 1991) foram analisados. A capacidade preditiva geral do número de citações por ano foi baixa (pseudo R2 = 0,14), o principal fator preditivo foi o fator de impacto do periódico em que o trabalho foi publicado, seguido de tamanho amostral (0,265 do poder preditivo do fator de impacto), escore de noticiabilidade (determinado em painel de especialistas, 0,260), uso de grupo controle (0,243), escore de qualidade (determinado em painel de especialistas, 0,158), aceito para apresentação no encontro (0,055), apresentação explícita da hipótese (0,047), retrospectivo vs. prospectivo (0,027), tipo de sujeitos experimentais (0,021), estudo cego (0,007). Aleatorização e resultados positivos não tiveram nenhum poder preditivo.
  • Berghmans et al. 2003: 181 artigos (de pesquisa clínica de câncer pulmonar) foram analisados em duas escalas de qualidade (Chalmers e ELCWP). A correlação entre as escalas de qualidade e índice de citação foi fraca (0,21 a 0,38 na escala ELCWP; 0,18 a 0,40 na ELCWP). Autores americanos com mais frequência publicaram em revistas de maior impacto do que europeus e outros não-americanos a despeito de os trabalhos não apresentarem uma qualidade maior.
  • Gupta, Nicol & Johnson 2004: Dois especialistas analisaram 94 estudos (publicados entre 1966 e 2002 sobre tratamento de pitiríase versicolor) quanto a parâmetros de qualidade (como aleatorização, cegueira, cálculo apriorístico de tamanho amostral, explicação clara de regimes de tratamento e parâmetros de eficácia bem definidos, no total de 20 pontos). Não foi encontrada relação entre qualidade e número de citações recebidas pelos artigos.
  • Nieminen et al. 2006: 448 artigos (publicados em 1996 em 4 revistas de psicologia) foram analisados quanto à qualidade da análise estatística e do relato. Não foi encontrada relação entre os parâmetros analisados e o número de citações recebidas. Após ajuste para o periódico em que foram publicados, uma apresentação mais detalhada dos métodos estatísticos empregados correlacionou-se com maior citação. Análise estatística inadequada não afetou o índice de citação.
  • Bornmann et al. 2012: Cerca de 2.000 artigos (manuscritos submetidos à Angewandte Chemie International Edition e publicados na revista ou em outras) foram analisados. Houve correlação entre o número de citações e a pontuação dada pelos revisores sobre a importância dos achados. Desempenho de citação dos artigos nas referências bibliográficas, língua do periódico, subárea da Química e reputação dos autores também correlacionaram-se com o índice de citação.

E abaixo a tradução das principais conclusões de estudo conjunto da União Internacional de Matemática, do Conselho Internacional de Matemática Industrial e Aplicada e do Instituto de Estatística Matemática (Adler et al 2009):

  • "Basear-se na estatística não é mais preciso quando a estatística é usada inapropriadamente. De fato, a estatística pode ser enganosa quando mal aplicada e mal compreendida. Muito da bibliometria moderna parece se basear na experiência e na intuição sobre a interpretação e validade das estatísticas de citações.
  • Embora os números pareçam ser 'objetivos', sua objetividade pode ser ilusória. O significado de uma citação pode ser ainda mais subjetivo do que a revisão por pares. Como essa subjetividade é menos óbvia para as citações, os que usam dados de citação menos provavelmente compreendem essas limitações.
  • A dependência unicamente de dados de citação oferece, no máximo, uma compreensão incompleta e, frequentemente, rasa da pesquisa - uma compreensão que é válida somente quando reforçada por julgamento de outras pessoas. Números não são inerentemente superiores a julgamentos sólidos.
  • Para periódicos, o fator de impacto é mais frequentemente utilizado para ranqueamento. Isso é uma simples média derivada da distribuição de citações de uma coleção de artigos do periódico. A média captura apenas uma pequena fração da informação sobre a distribuição e é uma estatística bastante crua. Além disso, há vários fatores concorrentes no julgamento de periódicos pelas citações e qualquer comparação requer cuidado quando se usa o fator de impacto. Usar somente o fator de impacto para avaliar um periódico é como usar apenas o peso para avaliar a saúde de uma pessoa.
  • Para artigo, no lugar de se basear na própria contagem de citações para comparar artigos individuais, as pessoas frequentemente substituem pelo fator de impacto dos periódicos em que os trabalhos foram publicados. Elas creem que fatores de impactos mais altos devem significar maior número de citações. Mas muitas vezes não é o caso! Esse é um mau uso pervasivo da estatística que necessita ser desafiado sempre que ocorrer.
  • Para cientistas individuais, o registro completo de citações pode ser difícil de comparar. Em consequência, tem havido tentativas de se encontrar estatísticas simples para capturar toda a complexidade desse registro com um único número. O mais destacado dessas tentativas é o índice-h, que parece estar ganhando popularidade. Mas mesmo uma inspeção casual do índice-h e variantes mostra que eles são uma tentativa ingênua de se compreender registros complicados de citações. Ao captarem apenas uma pequena parte da informação sobre a distribuição de citações do cientista, eles perdem informações cruciais para a avaliação da pesquisa."

As coisas complicam quando várias táticas (de eticidade duvidosa) são implementadas com vistas a turbinar os índices principalmente o fisiologismo/camaradagem (troca de citações entre autores) e a autocitação (de autores ou de periódicos). Armadilhas também são criadas como cientistas reorientarem suas pesquisas para áreas com maiores chances de receber menções.

*Upideite(11/05/2013): Corrigido a esta data. 30 mil é, na verdade, uma estimava grosseira de periódicos científicos com revisão por pares existentes atualmente.

Upideite(08/jul/2016): John Bohannon comenta no sítio web da Nature mais um trabalho (ainda em preprint) sobre fator de impacto. Outro estudo que conclui pela baixa relação (ou ausência dela) entre fator de impacto e citação de trabalhos individuais.

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Entrevista com uma integrante da Comissão do Futuro - Débora Calheiros

Em 2011, o MCTI anunciou o estabelecimento da Comissão do Futuro, órgão consultivo formado por cientistas e personalidades brasileiros e estrangeiros voluntários com a missão de sugerir melhorias para a Ciência brasileira.

Presidida pelo Prof. Dr. Miguel Nicolelis, uma das primeiras ações da comissão foi a criação de uma rede social. Há também um processo de diagnóstico dos gargalos à prática científica em fase de finalização.

Abaixo, segue uma breve entrevista via email gentilmente concedida por uma das integrantes, a Profa. Dra. Débora Fernandes Calheiros, da Embrapa Pantanal e da UFMT (uma das vozes ativas a questionar as alterações do Código Florestal que fragilizam a proteção à cobertura vegetal nativa).

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GR.  Como foi o convite para participar da Comissão do Futuro?

DC. Foi através do MCTI, por indicação do Dr. Miguel Nicolelis.

GR. Quantas reuniões (presenciais ou por videoconferência) foram realizadas desde a instalação da comissão? Quais foram as pautas?

DC. Foram várias reuniões, abordando sobre questões envolvendo a otimização da prática científica no país, valorização do pesquisador e do professor universitário, como, por exemplo, tirar o ônus de toda a administração e contabilidade dos projetos científicos ficarem a cargo unicamente do professor, como ocorre na maioria das instituições de pesquisa, entre outros aspectos.

GR. Existe alguma metodologia dos trabalhos da comissão: Reuniões ou contatos regulares entre os membros ou com representantes do MCTI; acolhimento de sugestões da comunidade científica e acadêmica; levantamento de problemas na pesquisa nacional, etc.?

DC. Cada membro ficou responsável por fazer uma amostragem em sua área de atuação específica. Eu, por exemplo, solicitei informações aos pesquisadores da Embrapa, tendo repassado os resultados à coordenação.

GR. Foi produzido algum documento ou trabalho de aconselhamento para o MCTI? Em caso positivo, qual foi a recepção? Sugestões foram implantadas? Neste momento a comissão está engajada na discussão de algum tema?

DC. Um relatório está sendo finalizado pelo coordenador e em breve será entregue ao governo, sendo informado à sociedade por meio de anúncio público.

GR. Gostaria de acrescentar alguma observação de uma questão que não foi abordada acima?

DC. Obrigada pelo interesse! Maiores detalhes o senhor conseguirá quando o relatório em questão for disponibilizado.

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