Lives de Ciência

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quarta-feira, 29 de abril de 2015

Racismo no IB/USP? - O que Stephen J. Gould tem a nos dizer?

A propósito do possível caso de racismo no IB/USP, não pretendo aqui fazer pré-julgamentos. Que os devidos canais competentes: sindicância, Ministério Público, Polícia Civil, etc. façam a sua parte para apurar devidamente o ocorrido. E, por óbvio, que se punam os eventuais culpados.

A versão do IB segue na Nota de Esclarecimento publicada. A versão do coletivo Ocupação Preta está em uma postagem do grupo no facebook.

Quanto aos fatos as duas versões - incluindo a do professor de acordo com as reportagens, como a do G1 - parecem essencialmente compatíveis: há uma disciplina de pós-graduação em inglês para aperfeiçoar o domínio do idioma entre os estudantes (visando a uma melhora futura nos índices cienciométricos do instituto e da universidade no âmbito internacional), o professor utilizou como texto base para a aula um artigo editorial publicado na revista Medical Hypothesis em 2008 (uma defesa do argumento de James Watson a respeito da inferioridade intelectiva dos negros em relação aos brancos e asiáticos). Somente com esse conjunto de fatos é difícil apurar que tenha mesmo havido tentativa de incutir uma visão racista durante a aula. É perfeitamente possível, como argumenta o docente e o instituto, que o objetivo fosse analisar um tema polêmico.

Porém, à parte a aparente falta de cuidado devido na abordagem de um tema bastante delicado, a fonte escolhida é altamente inadequada do ponto de vista de sustentação de um debate científico. A Medical Hypothesis foi obrigada pela editora a adotar o peer review em 2010 após publicação de um artigo de Peter Duesberg sobre sua inválida hipótese de que o HIV não causa Aids. Ou seja, o artigo de 2008 não passou nem mesmo pelo processo de revisão pelos pares. Se a disciplina tem como objetivo, ainda que não imediato, de preparar os alunos à submissão de trabalhos em revistas internacionais, usar como modelo um artigo publicado em periódico que não segue os padrões usuais - e, em decorrência disso, não tem a melhor reputação no meio científico - não parece a melhor escolha.

Quanto à validade dos dados para sustentar a discussão. Em março publiquei na revista ComCiência uma resenha do livro "A falsa medida do homem" de Stephen J. Gould a respeito das medidas de inteligência e seu uso na ideologia da inferioridade racial dos negros. Reproduzo trechos abaixo:
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Na segunda edição, Gould ainda mantém um forte ceticismo a respeito da correlação entre inteligência e tamanho cerebral. Na crítica a Gould, Rushton cita estudos com ressonância magnética que mostram a ligação entre volume do cérebro e QI. Deve-se ter em mente, porém, que isso não chega a ser central na argumentação geral de Gould. Por um lado, um de seus questionamentos era exatamente se o QI mediria mesmo a inteligência. De outro, para ele, o problema é a caracterização da inteligência como um pacote “descritível como um único número, capaz de classificar pessoas em uma ordem linear, com base genética e efetivamente imutável”. Na visão de Gould, mesmo que a craniometria (e sua correspondente moderna de medição do volume cerebral por meio de ressonância magnética) e a psicometria (essencialmente os testes de QI) sejam eficazes em medir algo que chamamos de inteligência e que a inteligência seja algo herdável, isso não significa que seja algo imutável. Assim como a inteligência, ele exemplifica, mesmo a miopia sendo uma característica herdável, podemos efetivamente fazer algo para eliminar seus efeitos: usar lentes corretivas. No caso da inteligência, ainda que possua componentes genéticos (como estudos recentes tendem a confirmar; a exemplo do trabalho da equipe de Gail Davies, de 2011), ela pode ser cultivada e melhorada por conta de fatores ambientais: boa alimentação na infância e acesso a uma boa educação.

Gould se voltava justamente contra a conclusão de que, sendo hereditária e imutável, a medição do QI (ou do tamanho craniano) indicava o destino certeiro das potencialidades dos indivíduos. Nesse sentido, sua decisão de não se ater excessivamente a questões factuais de natureza científica – se a inteligência é ou não herdável, se ela pode ou não ser medida por um único índice, o que significa o fator “g” de Spearman – parece justificada. Ao deter-se mais a respeito da ideologia por trás dos fundadores da visão biodeterminista da inteligência e de como ela molda os argumentos pretensamente objetivos, o cerne de obra se mantém de pé mesmo hoje, 34 anos após a primeira edição (19 anos após a segunda). Guido Barbujani, em um artigo de 2013, sobre o trigésimo aniversário de A falsa medida do homem, reconhece a contribuição de Gould (e outros como Richard Lewontin, biólogo evolutivo, e Frank B. Livingstone, bioantropólogo, ambos americanos) em questionar a utilidade de “raça” como um conceito aplicável à espécie humana – quando a diversidade dentro de cada grupo (“raça”) tende a ser maior do que a diversidade entre os grupos.

A declaração do nobelista americano James Watson ao jornal inglês The Times, em 2007, de que os negros são inerentemente menos inteligentes, e a exibição, em 2009, de documentário no canal inglês Channel 4 com cientistas ecoando Watson também nos convidam a revisitar a obra clássica de Gould, ainda que alguns detalhes factuais possam não ter resistido ao teste do tempo.
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Disclêimer(29/abr/2015): Tenho vínculos acadêmicos (formei-me pelo IB/USP e fiz minha pós lá) e afetivos (não se passam 12 anos - mesmo com interregno - impunes em um mesmo local).

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Um novo programa de divulgação científica no ar

Segurem o fôlego.

Salvo apocalipse zumbi - ou se Silvio Santos decidir colocar Tom & Jerry no lugar - estreia hoje, 17/abr/2015, na web rádio da Unicamp, o programa Oxigênio (desculpem, não tenho o horário confirmado - mas como é na web, não haverá como perder: o programa ficará disponível online para ser ouvido quando você quiser).

A atração terá cerca de 30 minutos de duração com formato jornalístico: reportagens, entrevistas, notas curtas e serviços como resenhas de livros e peças teatrais, e uma agenda de eventos científicos e de divulgação.

Produzido em conjunto pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo - o Labjor - e a RTV Unicamp, a produção o programa é coordenadoa pela Profa. Dra. Simone Pallone, do Labjor. A equipe conta ainda com Patrícia Santos, Ana Paula Zaguetto, Carolina Medeiros, Janaína Quitério, Kátia Kishi, Tatiana Venâncio, Jeverson Barbieri e Victoria Monti. (Há boatos de que esta besta que vos escreve também contribui com alguma coisa.)

Ouçam, curtam (sim, já tem página no facebook), comentem (na página ou enviem email: oxigenio.noticias[arroba]gmail[ponto]com). Sim, vale criticar. (Sim, nesse caso vamos colocar no caderninho negro pro Papai Natal colocar carvão na sua meia.)

Pronto, podem respirar.

Upideite(17/abr/2015): Já está no ar a primeira edição de Oxigênio.

quarta-feira, 1 de abril de 2015

É mentira, Terta? - Folha seca

É possível que poucas coisas sejam maismenos apetitosas do que uma folha seca encarquilhada, cheia de lignina (fibra indigesta), tanino (composto amargo). Presente em grande quantidade em certos ambientes - sobre o solo de florestas, em galhos, e no fundo de rios próximo a áreas florestadas - e com alguma mobilidade ao sabor dos ventos e das correntes de água, passa a ser um interessante alvo de imitação por certos organismos, permitindo a estes ao mesmo tempo: confundirem-se com o ambiente, não despertarem interesse de predadores e deslocarem-se sem chamar a atenção.

Lagartixa-satânica-cauda-de-folha. Fonte: Wired.
Um dos imitadores de folha seca que considero dos mais impressionantes é o Uroplatus phantasticus (à esquerda). Não apenas por sua aparência bastante convincente, como pelo nome - tanto o científico, quanto o popular: lagartixa-satânica-cauda-de-folha.

É um lagarto de hábitos arborícolas endêmico de Madagascar, vivendo nas florestas (no pouco que resta delas) do norte e da região central.

Seu nome popular deriva, além da óbvia referência ao formato da cauda (e não apenas dela), a seus olhos vermelhos e protuberâncias sobre eles parecendo chifres.

Peixe-folha-amazônico. Foto: Peter Pfeiffer.
O peixe-folha-amazônico, Monocirrhus polyacanthus, (à direita) não tem um nome tão impressionante. Mas sua imitação é também digna de nota. Projeção em sua mandíbula inferior parece com o pecíolo partido de uma folha caída.

Assemelha-se não apenas no aspecto, mas o peixe também nada imitando o movimento das folhas ao sabor do fluxo da água.

Sua distribuição abrange as águas claras e túrbidas dos rios da bacia Amazônica no na Bolívia, Brasil, na Colômbia, no Peru e na Venezuela.

Sapo gigante africano. Foto: Vaclav Gvozdik.
O sapo gigante africano, Amietophrynus superciliaris, (à esquerda) é encontradiço na região central e ocidental da África.

O uso de seus ossos para medicina tradicional e o desaparecimento de seu hábitat são motivos de alguma preocupação quanto a seu futuro - mesmo que sua área de distribuição seja relativamente grande.


Tetigoniídeos do gênero Mimetica. Foto: James Castner.
Sem contar a variedade de insetos: lepidópteros, fasmatódeos, mantódeos, ortópteros... Alguns imitam até danos às folhas: partes comidas por lagartas, manchas de fungos, quebra mecânica... e em diversos estágios de ressecamento.

Como tetigoniídeos do gênero apropriadamente denominado Mimetica (à esquerda).

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