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segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

It's alive, it's alive! 3

Já tratei do tema de definição da vida no GR em outras ocasiões. Volto ao tema porque o sítio web Feira de Ciências, do saudoso prof. Luiz Ferraz Netto, parece estar fora do ar - não sei se em caráter temporário ou permanente - lá eu havia contribuído com uma série de textos sobre biologia e conceituação de vida.

Reproduzo abaixo o texto inicial em que eu discuto o que é vida (inspirado e baseado em boa medida no texto "Life is..." do jornalista Bob Holmes publicado na New Scientist na edição de 13 de junho 1998).

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O que é vida?

Introdução
Em sendo a BIOLOGIA o ramo das Ciências que estuda os seres vivos, seria de se esperar que a definição de VIDA – o objeto final de estudo do campo – fosse um pré-requisito para todas as pesquisas da área.

Não é, contudo, exatamente o que ocorre. Não existe uma definição universalmente aceita pelos biólogos do que seja VIDA, ainda assim eles não hesitam em estudá-la: e até mesmo em procurá-la em outros cantos do universo. Mas como estudar algo que não se sabe o que é?

Pode parecer um tanto paradoxal – e, de fato, não deixa de ser – porém, de outro lado, estuda-se algo justamente para se descobrir o que o objeto estudado é (quais as suas características, o que faz, como surgiu, do que é feito, etc.). Além disso, independentemente de uma definição precisa, sabemos desde criança que um cavalo é um ser vivo, mas um livro não – assim, os biólogos podem contornar, ao menos parcialmente, o problema. (Antes de atirarmos pedras nos biólogos lembremo-nos de que eles não estão sozinhos nessa delicada situação de lidar com algo que não sabem bem o que é ou, se sabem, não sabem externá-la em palavras. Para embaraçar um físico basta perguntar-lhe o que é matéria, energia ou tempo – elementos básicos em seu estudo dos fenômenos naturais –, um matemático não se sai melhor em explicar o que é um número. E, para além do terreno estrito das Ciências, perguntemos a um literato o que vem a ser poesia ou a um marchand o que é arte afinal de contas.) De todo modo a questão persiste: o que faz então de um cavalo um ser vivo; mas de um livro, um ser inanimado1?

Um problema adicional é que conhecemos apenas um tipo de VIDA, a da Terra. E esse conhecimento é – ainda que bastante detalhado sob muitos aspectos – somente parcial.
A despeito disso diversas tentativas foram feitas. E, a partir dos estudos das formas de VIDA como a conhecemos, algumas propriedades em comum podem ser levantadas. Alguns conceitos-chave que precisam ser levados em conta para a definição de VIDA são: auto-replicação, metabolismo (homeostase/entropia/auto-organização), delimitação (compartimentalização/individualização) e evolução/hereditariedade.

Auto-replicação
Uma característica marcante dos seres vivos é a sua capacidade de se reproduzir, isto é, induzir a formação de cópias de si mesmo a partir de elementos tomados do ambiente. De todo modo ela não pode ser considerada a propriedade distintiva dos seres vivos ou, no mínimo, teremos problema se a considerarmos isoladamente: se definirmos seres vivos como entidades auto-replicantes, robôs programados para construir robôs iguais a si em uma linha de montagem teriam que ser considerados vivos; além disso, mulas, provectos senhores e eunucos não seriam seres vivos dada a sua incapacidade reprodutiva. (Para ver mais.)

Metabolismo (homeostase/entropia/auto-organização)
O metabolismo é o conjunto de reações químicas que ocorrem no interior do organismo (por vezes, no exterior também) que mantém mais ou menos estáveis as condições internas do organismo (homeostase). Através do metabolismo o organismo obtém energia utilizada em seu crescimento e reprodução, transformando os compostos que absorve do ambiente e incorporando-os em sua estrutura – com isso os seres vivos são capazes de manter uma organização interna indefinidamente (auto-organização)2. Os seres vivos são redutores puntuais de entropia (uma medida de desordenação de um sistema3) – isto é, eles diminuem ou mantêm o seu grau interno de desorganização, desorganizando ainda mais o ambiente em que estão. O metabolismo, porém também apresenta restições como marcador do que seja VIDA. Uma geladeira realiza algo análogo ao metabolismo: mantém sua entropia interna mais ou menos inalterada (mais frio dentro do que fora), consumindo energia (a elétrica proveniente da tomada) e aumentando a entropia do ambiente (o radiador lança constantemente a energia térmica resultante para o ambiente); uma chama de vela também mantém a sua organização interna às custas da organização do ambiente. Por outro lado, organismos debilitados pela idade avançada ou tomado por uma doença terminal estão perdendo a batalha para a entropia – seu organismo está em franco processo de degeneração – mas ainda não os consideramos mortos. (Para ver mais.)

Delimitação (compartimentalização/individualização)
Os seres vivos são fenômenos localizados, isto é, ocupam uma região limitada do espaço. E também são distintos do ambiente em que estão. Isso permite manter um ambiente interno, onde podem manter e concentrar os elementos que capturam do ambiente externo: nutrientes, por exemplo – impedindo que se percam dispersos no meio ou sejam utilizados por outros. Permite também a formação de um ambiente mais propício aos processos que os mantêm, por exemplo, otimizando as reações químicas com concentrações adequadas de reagentes. Todos os organismos vivos que conhecemos possuem uma delimitação de natureza física – os seres vivos são baseados em células, tendo nelas a sua unidade morfológica e funcional, delimitadas por uma membrana formada por uma camada bilipídica que as separa do meio externo – mesmo os vírus, seres acelulares (são basicamente uma capa de proteína envolvendo um pedaço de ADN ou ARN), funcionam apenas dentro de células (são parasitas intracelulares obrigatórios, fora delas ficam inertes a ponto de alguns biólogos não o considerarem seres vivos de fato). A delimitação certamente não define um ser vivo, porém. Um carro é delimitado, sendo distinto do ambiente em que se encontra.

Evolução
A auto-replicação faz com que os organismos produzam cópias de si mesmo. Porém, as cópias não são sempre idênticas. Há sempre, por mais baixa que seja, uma taxa inerente de erro no processo. As novas variantes podem ser eliminadas então pela seleção natural – caso a alteração signifique a produção de uma característica desvantajosa ao indivíduo – ou permanecer na população ou até mesmo prosperar. Porém definir VIDA como um processo de evolução (particularmente por seleção natural) pode ser um pouco complicado: vírus de computador são capazes de produzir cópias alteradas de si mesmo (normalmente as variantes produzidas por acaso são as que mais danos causam ao funcionamento do computador), alterações que podem garantir uma maior capacidade de proliferação (produzem cópias mais rapidamente ou que escapam ao programas antivírus) e com isso ocorrer uma evolução da população desse tipo de vírus. Serão tais programas seres vivos? Alguns biólogos estão prontos para achar que sim e não apenas vírus de computador, como também idéias que passam de uma mente para outra e se multiplicam e mudam ao longo das gerações, muitos outros, contudo, torcem o nariz para tal concepção. (Para ver mais.)

Bibliografia
El-Hani, CN & Videira, AAP (orgs.) 2000 O que é vida? – para enteder a Biologia do século XXI. Rio de Janeiro, Faperj/Relume Dumará, 311 págs.
Holmes, R 1998 Life is... New Scientist (13 jun). http://www.newscientist.com/hottopics/astrobiology/lifeis.jsp (link quebrado)
Margullis, L & Sagan, D 2002 O que é vida? Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 289 págs.
Schrödinger, E 1997 O que é vida? – o aspecto físico da célula viva seguido de Mente e matéria eFragmentos autobiográficos. São Paulo, Unesp, 192 págs.

Notas
Nota1: "inanimado". A palavra remete a anima, palavra latina significando alma. Se o inanimado – desprovido de alma – contrasta com os seres vivos, a idéia original era a de que a Vida representava a posse da alma. A Vida seria uma propriedade especial a diferenciar os seres vivos da matéria comum como pedras, água, terra, ar... Esse princípio desenvolveu-se nas idéias vitalistas de certos sistemas filosóficos antigos, casando-se com o ponto de vista de diversas religiões. Nas Ciências foi progressivamente perdendo terreno, tendo início com o surgimento da visão mecanicista do mundo (como os seres vivos não passando de autômatos – sistemas físicos obedecendo simplesmente às leis naturais, como um complexo relógio que pode ser reduzido e explicado pelo funcionamento de suas engrenagens – na visão de Descartes, embora ele ainda reservasse uma posição privilegiada aos seres humanos – que ainda possuiriam uma porção intangível) e fortemente abalada com a síntese inorgânica – por reações químicas ordinárias fora do corpo dos seres vivos a partir de substâncias comuns – de compostos tidos como possíveis de serem produzidos apenas pela ação direta do princípio vital: como no experimento de Wöhler em 1828 produzindo uréia pelo aquecimento de cianato e sal de amônio.
Nota2: À primeira vista isso pareceria contrariar a segunda lei da termodinâmica – a lei descreve o princípio fundamental de que em sistemas isolados as transformações tendem a ocorrer do estado menos provável para o mais provável ao longo do tempo. Se deixado à própria sorte nas condições do meio em que viçam as árvores, um pedaço de madeira tende a se desfazer em pequenos fragmentos (mesmo se as bactérias e outros organismos decompositores não estivessem no local, a madeira aos poucos iria se desfazer – embora levasse muito mais tempo), o mesmo com um naco de carne de vaca largado no meio de uma pastagem. Não obstante a árvore viva está sempre a produzir mais madeira, a partir basicamente de gás carbônico e água, incorporando-a em seu tronco e a vaca a produzir as fibras musculares de sua carne a partir do capim e da água. No entanto os seres vivos não são sistemas fechados, eles trocam matéria e energia com o ambiente. A árvore e o gado mantém ou aumentam a sua organização interna, lutando contra a tendência natural da desagregação de suas partes, aumentando a desordem do meio em que vivem – se considerarmos o sistema árvore/ambiente ou vaca/ambiente, aí sim perceberemos que esse sistema segue o previsto pela segunda lei da termodinâmica. Embora a madeira e o pedaço de carne também não seja sistemas isolados, neles não ocorrem os processos que substituem as porções perdidas como ocorriam no interior dos organismos de onde vieram.

Nota3: "uma medida de desordenação de um sistema". Ordem é um conceito intuitivo e tem a sua utilidade na compreensão da entropia. Mas pode ser enganoso. Não devemos entender ordem estritamente como um estado de disposição organizada, simétrica, coordenada. Tem mais a conotação de um estado particular, uma dada disposição específica. Se pensarmos em um quarto, a nossa noção de um quarto ordenado se casa com a noção de ordem entrópica na medida em que apenas um conjunto restrito de disposição das partes será considerado um quarto bem arrumado: as roupas e meias dentro das gavetas, as gavetas todas fechadas, o colchão sobre a cama, o lençol sobre o colchão e estirado, a fronha cobrindo o travesseiro e assim por diante. Uma meia fora da gaveta é um elemento de 'desordem' – quer em cima da cama, sobre a escrivaninha, em baixo do armário, sob o travesseiro, etc. Há então mais disposições diferentes que consideraremos 'desordem' (quarto desarrumado) do que 'ordem' (quarto bem arrumado). Se deixarmos a disposição ao acaso mais provavelmente ela se dará em uma das que consideraremos desarrumada. Devemos despender energia para que o quarto permaneça na disposição que consideramos arrumado. Por outro lado, imaginemos que se cometeu um crime nesse quarto – o lençol foi arrancado da cama, o colchão foi tombado, as gavetas abertas pelo criminoso que procurava alguma coisa e toda revirada, as meias espalhadas pelo chão, o armário escancarado. A cena do crime deve ser conservada para que a polícia possa desvendar o crime: a disposição dos objetos pode revelar se houve luta ou se a vítima foi pega enquanto dormia, qual foi o último lugar em que o assassino fez a sua busca e outras pistas importantes (para saber quem pode ser o assassino ou para, uma vez capturado, saber qual o grau de gravidade do crime cometido pelo assassino – se ele matou a sangue frio ou depois de uma discussão, por exemplo). Nesse caso, mesmo a disposição que consideraríamos arrumada – por nossa experiência do dia-a-dia e por nosso senso estético – não serve, ela não corresponde à disposição equivalente à cena do crime. Essa cena é bagunçada, mas corresponde a um estado particular. E agora qualquer modificação aleatória desfaz essa disposição. Para manter esse estado particular desarrumado temos que empregar energia. A ordem no caso dos seres vivos é uma disposição particular que garanta a eles a capacidade de explorar o ambiente, dele obter recursos e se reproduzir, por exemplo – a maioria das disposições possíveis dos elementos que compõem um ser vivo em particular resultariam em um ser inviável, sem essas características: se os átomos que nos compõem fossem juntados aleatoriamente dificilmente resultaria em qualquer coisa semelhante a nós.
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