Abaixo reproduzo a íntegra da entrevista gentilmente concedida via email por Elidiomar Silva (e, ao fim, o resumo do trabalho).
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GR. Poderia falar resumidamente (para um público que não é da área) sobre a linha de trabalho desenvolvida por sua equipe?
ES. Sou professor de zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), lecionando nos cursos de Ciências Biológicas (tanto Bacharelado quanto Licenciatura). Minha pesquisa principal é sobre a taxonomia de determinados grupos de insetos. Recentemente passei a me interessar pela ligação entre o conhecimento científico e as manifestações culturais. Dentro dessa área o tema que mais me interessa de fato é a utilização de animais de um modo geral como inspiração para a criação de personagens de histórias em quadrinhos. O pessoal que me acompanha nessa empreitada (quase todos biólogos, a maior parte cursando Pós-Doc, doutorado ou mestrado) têm diferentes áreas de especialização. Na maioria são entomólogos como eu, mas há também um aracnólogo e até um botânico.
GR. Como surgiu a ideia do trabalho e como ele foi desenvolvido?
ES. Há tempos venho observando algo que me preocupa. O homem sempre foi fascinado pelos animais de um modo geral. Prova desse interesse é o sucesso que fazem os canais por assinatura que têm em sua grade documentários sobre natureza e vida selvagem. É impossível hoje em dia não se impressionar tanto com a qualidade dos vídeos quanto com as informações que eles passam. Isso é Zoologia, uma parte da Ciência extremamente interessante e atrativa até para o público leigo. Porém, nas aulas, o quadro é diferente. Temos um conteúdo técnico vasto (morfologia, fisiologia, taxonomia, filogenia) que deve ser ministrado e, embora a clientela seja amigável (afinal, alunos de Ciências Biológicas naturalmente têm interesse no estudo dos animais), eu percebia que faltava algo em meus alunos, faltava tipo um "brilho nos olhos". Brilho que muitas vezes eu vejo nos telespectadores (eu, inclusive) de documentários da TV. Conversando com colegas e alunos que passaram pelas minhas disciplinas chegamos à conclusão que o caminho é tentar tornar as aulas mais agradáveis, palatáveis (mas sem abrir mão do conteúdo técnico). Assim, de uns tempos para cá, tenho proposto aos alunos uma atividade opcional: escolher um personagem de HQ que tenha sido baseado em algum artrópode e fazer uma análise, à luz dos conhecimentos técnicos obtidos na disciplina, das suas características (poderes, comportamento, vestimentas, etc.). O resultado tem sido bem satisfatório, os alunos se empolgam completamente com a atividade. Aí reuni um pessoal com interesse no tema, pesquisamos e nos impressionamos com a quantidade de personagens. Realmente há muita coisa a fazer.
GR. Quando submeteram o resumo, tinham confiança de que a organização do congresso teria abertura para um trabalho dessa natureza?
ES. O primeiro trabalho que elaboramos dentro desse tema foi centrado em 50 personagens baseados em animais, tendo sido apresentado em um congresso interno da minha universidade. O segundo trabalho foi apresentado no II Entomorio (Simpósio de Entomologia do Rio de Janeiro) e versava sobre personagens baseados em insetos. Houve ainda um terceiro, constituído do relato das atividades dos alunos da minha disciplina, também apresentado internamente na UNIRIO. Os três resumos foram submetidos ao crivo de avaliadores anônimos, mas que certamente me conhecem de alguma forma. Eu achava que talvez isso pudesse ter ocasionado um cenário favorável à aceitação dos resumos. Ao submetermos o trabalho sobre personagens baseados em aracnídeos a um congresso de âmbito nacional, não tínhamos a menor noção do que poderia acontecer. Na verdade, penso que o trabalho tem qualidade, está bem escrito, é relevante e apresenta uma abordagem inédita dos dados, ou seja, considero justíssima sua aprovação por parte da organização do congresso. Mas como normalmente o cientista é um sujeito conservador por natureza (embora paradoxalmente viva de descobertas e novidades) e nosso trabalho não é lá muito convencional, eu tinha um certo receio que ele fosse rejeitado.
GR. Como foi a reação dos participantes do CBZ durante a sessão de pôsteres?
ES. Infelizmente não pude estar presente na apresentação, mas meus colegas me relataram que a reação foi a melhor possível. O trabalho já é por si só atraente por fugir do padrão, mas, além disso, o pessoal conseguiu ver Ciência na nossa abordagem.
GR. Há, claro, um lado inusitado da abordagem da cultura pop dentro de um evento de ciências naturais; mas, para além do inusitado, como seu grupo enxerga a contribuição que o trabalho traz: dentro da academia e em termos de divulgação das ciências?
ES. Estamos muito entusiasmados. Se em uma sala de aula de graduação a incorporação de elementos da cultura pop (ou seja, coisas que estão no nosso dia a dia) se mostrou benéfica, o que dirá no ensino fundamental e médio? Grande parte dos alunos da minha disciplina é formada por licenciandos. Daqui a pouco essa garotada estará lecionando, muitas vezes em locais carentes, e a busca pela atenção dos alunos será um desafio. Esse pode ser um caminho a ser explorado. Quanto à academia, tenho percebido um cenário cada vez mais favorável, vejo com bons olhos o número crescente de publicações que abordam a associação entre ciência e literatura, música, cultura de um modo geral. Estamos finalizando um artigo sobre o tema e, tudo correndo bem, acredito que dentro de 1 ou 2 meses partiremos para a submissão.
Os Aracnídeos como inspiração para personagens dos Universos Marvel e DC
Elidiomar Ribeiro Da-Silva*, Luci Boa Nova Coelho**, Thiago Rodas Müller de Campos*, Allan Carelli***, Gustavo Silva de Miranda***, Edson Luiz de Souza dos Santos*, Tainá Boa Nova Ribeiro Silva**** & Maria Inês da Silva dos Passos*
* Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, **Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro,***Museu Nacional, Rio de Janeiro, ****Sistema Elite de Ensino
A despeito de ser um processo com liberdade criativa, a composição de um personagem das histórias em quadrinhos (HQs) muitas vezes recebe interessantes influências da vida real. Face à forte ligação dos aracnídeos (especialmente aranhas, escorpiões e ácaros) com o ser humano, não é de se estranhar que eles tenham servido de inspiração para muitos personagens da ficção. Considerando apenas as duas principais editoras estadunidenses de HQs, a DC Comics e a Marvel Comics, foi realizado um inventário dos personagens de algum modo inspirados em aracnídeos. Os personagens foram classificados de acordo com a editora, o papel social (herói ou vilão), a classificação taxonômica (ordem) do aracnídeo que o inspirou e a década de criação. Os personagens foram ainda classificados quanto à presença ou ausência de alguma característica popularmente associada a aracnídeos, como produção de teia, inoculação de peçonha, quatro pares de pernas e capacidade de escalar superfícies verticais. As classes foram estatisticamente comparadas por meio do teste do Qui-quadrado de Pearson. Até o presente foram contabilizados 78 personagens da Marvel e 22 da DC com algum tipo de inspiração em aracnídeos. A maioria dos personagens foi criada mais recentemente, a partir dos anos 1990. Como provável consequência do extremo sucesso do Homem-Aranha, sua principal criação e um dos ícones da cultura pop, a Marvel possui significativamente mais personagens aracnídeos que a DC. Quanto à classificação taxonômica, os personagens foram baseados majoritariamente na ordem Araneae, em relação às outras ordens (Scorpiones e Acari). Significativa parcela do montante de personagens é formada por vilões, o que está dentro do esperado, posto que aranhas, escorpiões e ácaros costumam ser considerados “nocivos” pelo público em geral. A esmagadora maioria dos personagens possui pelo menos uma das características consideradas como típicas de aracnídeos. É interessante destacar que, embora os personagens aracnídeos constituam um grupo relativamente numeroso, pouquíssimos são aqueles de reconhecido destaque, todos concentrados na Marvel. Além do já citado Homem-Aranha, suas encarnações em realidades alternativas e universos paralelos, e seus vilões (como Venom, Carnificina, Tarântula e Escorpião), somente a Viúva Negra é bem conhecida por parte do não-aficionados em HQs. Isso devido aos recentes lançamentos da Marvel no cinema.
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O pôster pode ser melhor visualizado aqui.
Upideite(16/jul/2014): O professor Elidiomar Silva e colaboradores publicaram um novo trabalho: Da Silva, E. R.; Coelho, L.B.N. & Silva, T.B.N.R. 2014 - A Zoologia de 'Sete Soldados da Vitória': análise dos animais presentes na obra e sua possível utilização para fin didáticos. Encicl. Biosf. 10(18): 3502-25.
Upideite(10/out/2015): Leia também "Revista em quadrinhos é objeto de estudo de zoólogos"
4 comentários:
A preocupação em planejar uma aula para conseguir atingir o aluno deve ser um hábito natural a todos os professores. Trazer a cultura pop para a sala de aula é um jeito muito interessante de se fazer isso.
Parabéns professor pelo trabalho e pela coragem de inovar.
Caro Lucas Teles,
Obrigado pela visita e comentário.
Transmitirei seus cumprimentos ao Prof. Elidiomar Silva.
[]s,
Roberto Takata
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