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sábado, 8 de fevereiro de 2014

Os senões dos senões da vacina contra o HPV

Eu respeito muito o trabalho da Claudia Collucci na Folha em seu jornalismo de saúde, até por isso me causou uma estranheza maior o espaço que ela deu - sem um contraponto adequado** - às alegações a respeito da eficiência ou não da vacinação contra o HPV.

O entrevistadoespecialista**** diz que há mais de 100 subtipos do vírus HPV, o que é verdade; mas ele não diz que: a) somente cerca de 40 são capazes de infectar o trato anogenital; b) são cerca de 13 subtipos que são considerados oncogênicos (com potencial de causar o desenvolvimento de câncer) e c) dois (os subtipos 16 e 18) estão presentes em 70% dos casos de câncer (Divisão de Apoio à Rede de Atenção Oncológica - DARAO/INCA). A quadrivalente oferecida pelo SUS cobre esses dois subtipos, mais o 6 e o 11.

O exame papanicolau é de fato muito importante, ainda assim todos os anos cerca de 17.500 novos casos são detectados (uma incidência de 17 novos casos/ano a cada 100 mil mulheres), dos quais 95% são atribuíveis ao HPV (ou seja, se nem toda infecção por HPV causa câncer - apenas cerca de 5% das mulheres infectadas virão a desenvolver -, a quase totalidade dos casos de câncer de colo deve ser causada pelo HPV). A taxa de mortalidade devido à doença é estimada em torno de 5 mortes a cada 100.000 mulheres: com uma população feminina de 100 milhões de habitantes, isso representa mais de 5.000 mortes por ano.

A vacina não é 100% eficiente (nenhuma é, mais, nenhum procedimento é 100% eficiente, nem o papanicolau: que tem uma eficiência entre 80% e 90%, com cobertura suficiente boa e regularmente realizado) e as mulheres que já têm uma vida sexual ativa muito provavelmente já estão infectadas (80% das mulheres sexualmente ativas estão infectadas por um ou mais subtipos), mas o grupo alvo são meninas de 11 a 13 anos - boa parte das quais ainda não iniciaram sua vida sexual - nas quais a eficiência é de 98,8%.

Ao custo anual de R$ 1,1 bilhão, o programa é o financeiramente mais custoso dentro do Programa Nacional de Imunização. Serão 5,2 milhões de meninas, cobrindo 80% da população na faixa etária. Se (e é um enorme se) as complicações atribuídas por alguns estudos se confirmarem e usarmos a taxa aceita pelo especialista (de 1 caso a cada 30.000), estaremos falando em cerca de 173 casos por ano.

Então temos 173 casos/ano de complicações contra 5.000*0,95*0,7*0,8*0,988=3.7542.628 mortes evitadas (13.1409.198 casos evitados) por ano - cerca de R$ 300.000418.500 por morte evitada. Deal.

As quatro perguntas:
1) Já temos alguma estratégia efetiva na prevenção da doença? O que a vacina traz de novo?
2) A vacina realmente funciona?
3) Ela é segura?
4) Vale a pena substituir a estratégia anterior pela vacina?

Merecem, então, outras respostas:
1) Sim. A vacina ajuda a evitar os casos que o papanicolau não evita;
2) Sim. E tem exatamente como público-alvo da campanha de vacinação aquelas para quem a eficiência foi verificada (meninas de 11 a 13 anos).***
3) Sim. Mesmo admitindo-se o taxa utilizada pelo especialista para tentar sugerir o contrário.
4) Pergunta sem sentido porque a vacinação declaradamente *não* procura substituir o exame papanicolau, mas procura *complementar* a estratégia.

É muito, muito estranho que o especialista se valha de argumentos falaciosos (quando muito dizem apenas meia verdade) para criticar o programa de vacinação contra o HPV. Críticas são importantes para o melhor cálculo de riscos e benefícios e a relação com os custos*, mas devem ser críticas pertinentes. Jornalistas devem estar atentos para evitar armadilhas - a necessidade de ouvir o "outro lado" é compreensível, porém não dá pra ser ingênuo e dar espaço sem exercer uma análise crítica.

(Via @Cardoso)

*Upideite(08/fev/2014): Bom dizer que foi realizado um estudo a pedido do governo brasileiro da eficácia da vacinação e uma análise benefício/custo.
**Upideite(08/fev/2014): No dia seguinte à publicação da coluna, a jornalista publicou um contraponto (não por coincidência exatamente com o mesmo nome que dei a esta postagem - não combinamos, claro, mas é um título bem óbvio).
***Upideite(08/fev/2014): Há estudos mostrando eficiência profilática (para os casos em que as mulheres já estão infectadas pelo HPV) das vacinas (e.g. The Future II Study Group 2007Koutsky & Harper 2006)
****Upideite(09/fev/2014): Especialista em medicina da família.

Upideite(13/mar/2014): Outros blogues estão também comentando sobre a vacinação e a resistência à ela.

Upideite(26/mar/2014): Aqui um estudo de 2007 da OMS sobre o HPV e as vacinas.
*****Upideite(26/abr/2014): Adido a esta dada.

2 comentários:

Leandro R. Tessler disse...

Há 4 anos, quando minhas filhas tinham 14, 14 e 17 anos, investi uma pequena fortuna para vacinar as 3 contra HPV. A vacina não fazia ainda parte dos programas oficiais e era relativamente cara. Como no caso das demais vacinas que elas tomaram, todas em Posto de Saúde, não tenho a menor dúvida de que foi um excelente investimento.
Teve ainda um evento curiosíssimo: uma vizinha delas, amiga da família, enfermeira que as conhece desde que nasceram, recusou-se a injetar a vacina nelas porque é evangélica. Os evangélicos em geral não são contra vacinas, mas alguns entendem que a vacina pode estimular a vida sexual antes do casamento. Por via da dúvidas eu preferi ter as filhas vacinadas.

none disse...

Salve, Tessler,

No caso específico desse especialista, pelo que pude ver, não é evangélico - e critica a motivação dos médicos para não vacinar.

Mas, realmente, para piorar tem essa resistência religiosa. Parece a ICAR contra a camisinha. É como ser contra o uso de cinto de segurança porque acham que os motoristas iriam correr mais. (E pra "provar" pegam estatísticas de mortes no trânsito, notando que depois da adoção do cinto, a fração dos motoristas mortos que estavam acima do limite de velocidade aumentou. Ignorando que o total de mortes caiu.)

[]s,

Roberto Takata

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