Parabéns a todas as mulheres - cientistas ou não - e meus agradecimentos especiais às entrevistadas, que tiveram infinita paciência comigo. (Mais abaixo uma seleção de links de material relacionado.)
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“Mas como tantas?”
A respeito da participação das mulheres na produção científica
Roberto Takata/DICYT A Académie des science de Paris, uma das mais antigas agremiações científicas em funcionamento contínuo, foi fundada em 1666 pelo rei Luís 14. Ela assistiu a uma revolução que derrubou a monarquia, à ascensão e queda do império napoleônico, a duas guerras mundiais, o sufrágio feminino, o maio de 1968, e à descolonização da África e à guerra da independência da Argélia, para, só em 1979 admitir a primeira mulher em seu quadro associativo. Nem os dois nobéis científicos de Marie Curie garantiram-lhe espaço ali. Em 1910, sua candidatura foi rejeitada por dois votos após calorosos debates (em uma votação subsequente a respeito de se mulheres poderiam ser aceitas, o placar foi de 90 contra a 52 a favor - o que talvez diga algo a respeito tanto da enorme contribuição científica de Marie Curie, ainda que insuficiente para dobrar os homens da academia de Paris, quanto ao fato de ela mal ser vista como uma mulher pelos mesmos homens). Em 2008, dos 236 membros da instituição, 18 (7,6%) eram mulheres.
A situação não é muito diferente em outras academias.
A National Academy of Sciences, dos EUA, foi fundada em 1863 e o primeiro membro feminino foi admitido em 1925. Dos 2.038 membros ativos em 2012, 216 (10,6%) são mulheres. Na Academia Brasileira de Ciências, fundada em 1916, elegeu a primeira mulher para seu quadro em 1952. Atualmente 10,4% de seus associados são acadêmicas (50 mulheres em 482 membros). Ainda mais antiga do que a academia francesa, a britânica Royal Society, fundada em 1660, aceitou entre seus pares uma mulher pela primeira vez em 1945, depois de uma alteração em seus estatutos no ano anterior. Mas hoje apenas 99 (6,8%) de seus 1.450 membros são do sexo feminino.
“A academia não foi estruturada prevendo a presença feminina”, observa Mariana Feiteiro Cavalari, doutora em Educação Matemátia pela Unesp, professora de História da Matemática na Federal de Itajubá (UNIFEI) e autora de estudo sobre a presença de mulheres na docência de matemática nas universidades estaduais paulistas (2010, Rev. Bras. Hist. Matem. v. 10, n.19, pp: 89-102).
Mas o fechamento à participação feminina não estava claro entre os séculos 17 e 18, diz Londa Schiebinger em seu “Has Feminism Changed Science?” (1999, Harvard University Press, 252 pp.). Nesse período poucas pessoas eram cientistas profissionais de ocupação em tempo integral. Boa parte da ciência era feita por amadores em laboratórios e observatórios improvisados em suas casas. Muitas esposas atuavam como assistentes de seus maridos e várias conduziam suas próprias pesquisas e observações. Em 1678, a veneziana Elena Cornaro Piscopia foi a primeira mulher a se graduar em uma universidade europeia; em 1732, Laura Bassi, seria a primeira a obter uma cátedra professoral universitária no Velho Continente, na Universidade de Bolonha. As universidades, no entanto, nunca chegaram a ser um ambiente acolhedor à presença feminina. Mesmo assim, como os trabalhos científicos não exigiam uma instrução formal, a maioria dos pesquisadores e das pesquisadoras atuavam por meio da instrução autodidática e por experiência prática. À medida em que surgia a ciência moderna, com o declínio do papel central das universidades e ascensão das academias científicas e em que os cientistas se profissionalizavam - com a pesquisa transferida para centros especializados - as mulheres que quisessem contribuir para a construção do conhecimento científico se viam diante de apenas duas opções: ou perseguiam a graduação nas universidades ou atuavam na esfera privada como assistentes cada vez menos visíveis de seus maridos e irmãos.
A partir de meados do século 19 o ambiente universitário e científico gradativamente passa a se abrir à presença feminina junto com a primeira onda do movimento feminista - como a das sufragistas. Uma segunda onda ocorre entre as décadas de 1960 e 1970, com questionamentos não apenas quanto ao acesso às universidades, mas também aos domínios quase exclusivos de homens em áreas como as ciências exatas. No Brasil, a participação feminina passa a crescer justamente na segunda onda, época também em que a ciência se institucionaliza com o Plano Estratégico do Desenvolvimento Nacional e com a constituição de várias universidades públicas e institutos de pesquisas. Ainda assim, hoje as mulheres ainda são uma minoria dentro do corpo docente no Ensino Superior. Na USP, em 2012, pouco mais de um terço (37,7%, 2.207 entre 5.860 professores no total) dos docentes eram mulheres.
A questão da divisão entre as esferas públicas e privadas, no entanto, parece não estar adequadamente resolvida. “Esse é um aspecto presente em várias pesquisas realizadas sobre a condição da mulher hoje inserida no mercado de trabalho, pois, quando lhe é exigido responder pelas tarefas familiares, se sente numa situação limite”, explica Nadia Regina Loureiro de Barros Lima, psicanalista, doutora em Psicologia pela Universidade do Minho, Portugal, e em Linguística pela UFAL, onde atua no Núcleo Temático de Mulher e Cidadania (NTMC/UFAL). Barros Lima completa: “Se por um lado, o trabalho é fonte de prazer e realização pessoal, por outro, propicia conflitos existenciais, diante da dificuldade de conciliar os espaços público e privado. É como se o e espaço público ocupasse um lugar de fascínio mas, ao mesmo tempo, está sempre em rivalidade com o privado, daí o sentimento de se sentirem divididas.” Fernanda Regina Casagrande Giachini Vitorino, doutora em Farmacologia pela USP, docente de Fisiologia e Farmacologia na UFMT e uma das vencedoras do Prêmio L'Oreal/ABC/Unesco “Mulheres na Ciência” 2013, concorda: “Acho que os dilemas que uma cientista mulher enfrenta são os mesmos que uma funcionária de qualquer área enfrenta. Faltam creches e horários flexíveis para as mulheres em geral, principalmente quando nos tornamos mães. O sistema foi moldado para uma realidade que não existe mais. Temos que repensá-lo de forma a incluir todos de uma maneira mais digna.”
Mas como repensar o sistema científico-acadêmico? Apenas creches e horários flexíveis bastariam? Anayansi Correa Brenes, doutora em História Social pela UFF e professora da UFMG, onde coordena o Núcleo de Estudo da Mulher e Saúde (NEMS/UFMG) crê que não: “Certamente não ter creches criará problemas, mas elas não os resolvem diante da competição. Lembro falas de cientistas de outras épocas que textualmente anunciaram ter nas empregadas domésticas a aliança para chegar onde chegaram. Cuidando da casa, filhos e maridos. Posto isso, hoje, sem esse apoio, o custo da reprodução ficou impossível. Então, certamente, mulheres que desejem galgar poder, se não contarem bom estruturas familiares, evitarão ter filhos, casamentos…”. Cavalari segue na mesma linha: “Penso que a criação de creches, por exemplo, seria uma das possibilidades, mas não a única. Aquelas iniciativas mais organizacionais, me parecem mais adequadas para tentar prover uma relação igualitária para os diferentes gêneros na academia. A questão da produtividade atrapalha o trabalho de homens e mulheres na academia, mas me parece mais cruel as mulheres.” Mas Giselda Durigan, doutora em Biologia Vegetal pela Unicamp e pesquisadora do Instituto Florestal do Estado de São Paulo, coautora de um trabalho pioneiro sobre a contribuição feminina na produção científica botânica no Brasil (2011, Hoehnea, v. 38, pp: 115-21) discorda: “Acho que os filtros que dificultam a carreira acadêmica feminina são mais culturais do que relativos à infraestrutura organizacional. Há várias alternativas de 'sucesso' feminino na vida que são socialmente reconhecidas, enquanto para os homens o sucesso profissional e um bom salário são quase que um alvo único.”
Durigan, com a graduanda em Ciências Biológicas pela Unesp, Natashi Aparecida Lima Pilon, analisou a autoria dos trabalhos submetidos aos Congressos Nacionais de Botânica da Sociedade Botânica do Brasil. A participação de trabalhos em que um ou mais dos autores eram mulheres aumentou de 51,6% em 1988 para 57,7% em 2009; mas a proporção de trabalhos em que o primeiro autor era do sexo feminino praticamente não se alterou, mantendo-se em torno de 40%. Enquanto isso, trabalhos publicados por mulheres em autoria única recuaram de pouco menos de 60% em 1988 para pouco mais de 40% em 2009. Utilizando-se de uma base de dados maior e cobrindo várias áreas científicas, Jevin D. West e colaboradores (2013, PLoS ONE, v. 8, n. 7, e66212) encontraram o mesmo padrão: aumento da participação feminina como autor, mas redução de trabalhos em que uma mulher é autora única. “Nós fechamos o nosso artigo sem explicar este resultado, que nos pareceu surpreendente, mas não imaginávamos que fosse um fenômeno mundial” - comenta Durigan. “Não saberia dizer se é bom ou ruim um cientista publicar sozinho, mas existe uma diferença importante, que possivelmente passa pelo perfil psicológico distinto entre homens e mulheres. E que deve ser levado em conta na formação de grupos de pesquisa.” - completa.
Segundo censo de 2010 na base do Diretório de Grupos de Pesquisa (DGP) do CNPq, as mulheres constituem metade do total de pesquisadores cadastrados, mas apenas 45% dos líderes de pesquisa. (Ainda que represente uma melhora substancial em relação ao quadro de 1995: 39% dos pesquisadores e 34% dos líderes.) Mulheres predominam em áreas sociais e de saúde como: Fonologia (89% dos pesquisadores são do sexo feminino), Enfermagem (87%), Serviço Social ((81%), Nutrição (81%) e Educação (67%); e estão em minoriais nas exatas: Engenharia Elétrica (13%), Naval e Oceânica (13%), Elétrica (14%), em Física (20%) e Engenharia Aeroespacial (22%). Por que essas diferenças?
Barros Lima descarta explicações puramente biológicas: “Como bem explicita [Sharon Berstch] McGrayne [em sua obra “Nobel Prize Women in Science”, 1993, NAP, 464 pp.], 'pais e professores acreditam plenamente em estatísticas desatualizadas, destinadas a mostrar as meninas como congenitamente incapazes de aprender matemática tão bem quanto os meninos'”.
Para a psicóloga o distanciamento começaria já na própria escola constituindo o “currículo oculto” (elementos fora do currículo oficial que fazem parte da aprendizagem social). Denise Bastos de Araujo, mestra em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo pela UFBA e professora da Secretaria da Educação e Cultura do Estado da Bahia, também enfatiza o papel negativo que a escola e outras instituições sociais podem exercer: “Escola, família e mídia constroem para que as meninas não assumam posição de destaque e não tenham posição de liderança”. Dá como exemplo dessa construção o filme Gravidade (2013, direção de Alfonso Cuarón, com Sandra Bullock e George Clooney): “Enquanto o artista [Clooney] decide por soltar-se da nave, mesmo sabendo que ia morrer, e faz isso com total segurança e dignidade, a protagonista [Bullock] não apenas chora sem aceitar a decisão dele, como fica desestruturada. Olha só, o fato de ela estar no espaço, presume-se que tenha tido formação e treinamento. Precisa vê-la folheando atarantada as páginas de um manual de orientações, sem saber o que fazer. Essa forma de retratar as mulheres é uma constante em filmes, livros etc.”
Mesmo superando a barreira de entrada, as mulheres ainda sofrem para continuar e progredir na academia: publicam menos, ocupam menos cargos mais altos de direção e estão menos presentes em espaços mais nobres, de mais prestígio - como nas academinas nacionais de ciência. Para Cavalari o foco na produtividade para avaliação dos cientistas é prejudicial particularmente às mulheres que são mães: “Enquanto as mulheres passaram a trabalhar fora de casa, as relações de divisão do trabalho domestico, em geral, não foram redistribuídas. Esta situação faz com que a mulher seja sobrecarregada e, isto atrapalha o seu desenvolvimento profissional em diversas áreas, e, também, na academia. Pois esta exige muito tempo de dedicação, horas de estudo, trabalho, muitas viagens (participação de eventos, bancas). Além disto, cada vez mais, a academia tem exigido dos professores a produtividade... Existe, também, a situação dos filhos, pois os anos de consolidação da carreira, acabam coincidindo com os anos aconselháveis para se ter filhos, neste sentido, as mulheres vivem um dilema. Penso que a produtividade deva ser repensada e não entendo que a as mulheres tenham que se adaptar a ela.”
“Isso é totalmente verdade” - concorda Vitorino. “Por exemplo, a avaliação da nossa produtividade como pesquisadora muitas vezes não leva em conta o período de licença maternidade. O prazo dos meus orientandos do programa de pós-graduação não levam em conta que eu me ausentei por 6 meses pra cuidar do meu bebê. Os editais de pesquisa, tampouco. Para a ciência, prazos são prazos e devem ser respeitados incondicionalmente. A minha produtividade é comparada a de um homem solteiro. Logo, quando decidimos nos casar e ter filhos, isso é quase que tomar uma medida de suicídio de produção, mesmo que de forma temporária. É o preço que pagamos por nossas escolhas.”
“No momento que uma pesquisadora se torna mãe é inevitável que sua produção científica fica prejudicada. Isso deveria ser levado em conta pelas agências de fomento à pesquisa para que os prejuízos não sejam tão grandes.” - diz Raquel Giulian, doutora em Física pela Australian National University, docente da UFRGS e outra ganhadora do Prêmio “Mulheres na Ciência” 2013.
Durigan, no entanto, tem uma visão distinta: “De novo aqui, aparecem preconceitos velados. Por que é que somente as mulheres precisam dividir o tempo entre o trabalho e a família? Por que é que o mundo mudou e as relações entre homens e mulheres dentro de casa continuam arcaicas? As mulheres precisam tratar é de reivindicar divisão equitativa de tarefas dentro de casa. O sistema atual de produtividade acadêmica é tirano porque menospreza a qualidade. Mas esta é uma outra história e não tem nada a ver com as questões de gênero.”
Fatores culturais, históricos, institucionais, de infraestrutura, metodologia da avalição, tudo isso e mais aparecem como obstáculos na caminhada da mulher em sua contribuição para as ciências em geral e para a área de exatas em particular. “Diante das dificuldades que tem de enfrentar pelo caminho na sua carreira científica, faz sentido se dizer que a questão não seria 'por que tão poucas?', mas 'como tantas?'”, conclui Barros Lima de modo provocativo citando McGrayne a respeito da desproporção entre laureadas e laureados com o Nobel.
------------------------Publicado originalmente em "DiCYT: 'Mas como tantas?'". © 2014 Fundación 3CIN
Veja também (a lista deve ser atualizada posteriormente):
- Mulheres na Ciência - Dragões de Garagem (podcast)
- Mulheres (parte 1 e parte 2) - SciCast (podcast)
- La Ciencia y la Historia, dos palabras en femenino y singular - DiCYT
- As conquistas da mulher brasileira na ciência - ABC (via @ciencianamidia)
- Desigualdade de gêneros no Brasil é menor do que em outros países - ABC
- Construção cultural versus diferenças naturais - ABC
- Grandes Nomes da Ciência: As computadoras esquecidas de Pickering - Ceticismo
- Mulher e matemática combinam sim - Cognando
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