— Sibele Fausto (@sibelefausto) May 13, 2015
— Ceticismo.net (@ceticismo) May 15, 2015
Segundo o texto na Nature, um dos questionamentos é se realmente é possível acreditar que tanto de gente contribuiu de modo decisivo para a produção do artigo. A Nature lembra que, por exemplo, o artigo sobre a detecção do bóson de Higgs teve quase 3.000 autores. Mas, assim, como outras pessoas a quem chamei atenção para esse detalhe, o texto diz que é "uma tradição" na física artigos com tantos autores. Implicando que, como não o é na pesquisa biológica e biomédica, o inusitado é suspeito.
Acho "tradição" um argumento fraco para ficarmos encucados - e, ainda mais, abismados ou, pior, indignados - com artigos quiloautorados em biologia/genética, enquanto ficamos sussa com artigos quiloautorados em física.
Não considero que biólogos sejam mais suspeitos do que físicos. "Tradição" quer dizer pouca coisa nesse caso. Há tradições corretas e incorretas, aceitáveis e inaceitáveis. E, do modo como a História das Ciências costuma ser narrada, a ênfase é justamente na batalha do conhecimento científico contra o conhecimento tradicional: as "verdades" passadas de geração a geração apenas por se acreditar nelas.
Se essa quantidade de autores é, por si mesma, um indício de atribuição errônea de autoria - um trem da alegria, um bonde da felicidade para incluir quem pouco ou nada fez de verdade, apenas para agradá-los e turbinar seus currículos, não há motivos para se suspeitar de biólogos/geneticistas, mas não de físicos de alta energia.
E acredito que não seja indício por si só. O importante não é apenas o número bruto de autores listados, mas também a complexidade relativa da empreitada. Estudos multicêntricos, multidisciplinares, com técnicas variadas e complexas, com grande número de dados... tendem a exigir um maior número de pessoas diretamente envolvidas.
Tampouco acho muito correto dizer que haja uma *tradição* de hiperautoria em física. A definição operacional de hiperautoria (ou mega-autoria) pode variar (p.e. Knudson 2011 define como 6 ou mais autores; Morris & Goldstein 2007, como 20 ou mais autores). De fato, há uma tendência de haver um maior número médio de autores em trabalhos de física do que em ciências biológicas; mas usando o critério de 1.000 autores ou mais - já que foi esse valor que chamou a atenção para esse estudo de genoma de drosófilas - obtive a lista abaixo (certamente não é exaustiva, mas, suponho, algo representativa).
ano | no. de autores | área | página web referente |
Artigo | ||
2015 | 5.154 | física alta energia | @RobertGaristo | Physical Review Letters* | ||
2015 | 1.014 | genômica | ||||
2012 | 2.932 | física alta energia | Nature | Physics Letters B | ||
2011 | 3.179 | física alta energia | Science Watch | Physics Letters B | ||
2010 | 3.221 | física alta energia | Science Watch | Physics Letters B | ||
2010 | 3.172 | física alta energia | Pubmed | Physical Review Letters | ||
2010 | 1.055 | física alta energia | Vivek Haldar | European Physical Journal C | ||
2008 | 3.101 | física alta energia | Science Watch | Journal of Instrumentation | ||
2007 | 2.011 | física alta energia | Science Watch | Journal of Physics G | ||
2006 | 2.517 | física alta energia | Science Watch | Physics Reports | ||
2004 | 2.459 | biomedicina | Science Watch | Circulation Journal | ||
2001 | 2.851 | genômica | Quora | Nature |
Uma "tradição" de cerca de 10 anos. Uma "tradição" com menos de 1 artigo por ano. Uma "tradição" centrada em uma subárea bem específica: "física de alta energia/partículas" (HEP). Uma tradição que envolve basicamente um projeto: os aceleradores do Cern.
Segundo Cronin (2001), a área da HEP é particularmente rica em parcerias institucionalizadas em função da escala e do montante de investimentos necessários. Com a concentração dos recursos em grandes laboratórios como o Cern e o Fermilab, é preciso uma colaboração distribuída de vários outros centros para lidar com problemas básicos. Envolvendo também o financiamento em vários níveis. Esse arranjo instrumental, operacional, administrativo e científico complexo envolve, então, facilmente centenas de especialistas e pesquisadores. (Note-se que o trabalho é de 2001, quando boa parte desses artigos na ordem de 10^3 autores ainda não havia sido publicada; mas já havia vários com 10^2 autores.)
Isso tende a ocorrer também na pesquisa biomédica/genômica. A diferença é que a comunidade biomédica - particularmente as publicações na área - criaram um sistema para inibir a hiperautoria. Até 2002, o New England Journal of Medicine, p.e., limitava o número de autores por artigo a 12. E, mesmo tendo levantado a barreira, a revista ainda discute com os autores sempre que acha que o número é excessivo.
Para Cronin, a diferença da abertura da comunidade HEP à hiperautoria e a resistência da comunidade biomédica está na força relativa da socialização e comunicação oral e sistema de valores das áreas. P.e., na HEP, um artigo só é publicado após um intenso escrutínio interno entre os colaboradores e comitês das instituições envolvidas, o pre-print como no arXiv.org é incentivado, tudo é discutido abertamente, deixando pouca margem para fraudes sistemáticas. A pesquisa biomédica, frequentemente envolvendo patentes, tende a ser bem menos transparente, dificultando a avaliação do papel de cada um dos envolvidos na pesquisa.
Então, ao contrário das vozes desconfiadas e preocupadas com a dissolução do sentido da autoria, eu vejo com bons olhos a hiperautoria também no mundo da genética e biomedicina. Salvo a existência de indícios em contrário, menos do que significar atribuição liberal de autoria para quem pouco ou nada vez, tende mais a significar que os autores - e o investigador principal - têm confiança o suficiente para defender os papéis relativos das contribuições individuais.
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Para quem quiser brincar de análise de tendências a multiautorias e hiperautorias Robert Boukhalil, de The Winnower, disponibilizou seu programa para análise de autoria na base de dados Pubmed. Chirstopher King, do Science Watch, fez uma análise usando, claro, a base da Thomson Reuters.
Upideite(15/mai/2015): O André Carvalho, do Ceticismo, também escreveu um texto. Ele, como se percebe pelo tweet acima, tem uma opinião oposta à minha. Além disso, eu também não chamaria o artigo de meia boca. Não é um breakthrough, mas tem uma contribuição original.
*Upideite(15/mai//2015): Via @SibeleFausto.
Upideite(21/out/2017):
Veja também:
.Peter Schulz/Jornal da Unicamp (17/out/2017): Já não se fazem mais autores como antigamente. via @Germana Barata fb.
.Galison, Peter. 2003. The Collective Author. In Galison, P. & Biagioli, M. (eds) Scientific Authorship: Credit and Intellectual Property in Science, Pp:325-353. New York and Oxford: Routledge.
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