Para Meirelles, “[n]ão adianta só números, estatísticas, planilhas … se não vocês estão falando só pra sua tribo. O único jeito é contar histórias”.
Embora à primeira vista pareça um conselho razoável, mantenho minhas reticências. Já expressei minhas preocupações com a ênfase demasiada no storytelling na apresentação do trabalho científico.
Particularmente no processo de engajamento do público na discussão sobre as bases científicas das pesquisas sobre aquecimento global e mudanças climáticas, pelo menos uma estatística parece ter um efeito importante: 90% dos especialistas concordam que está havendo um aumento das temperaturas médias globais causadas, em grande parte, pelas atividades humanas como emissão de CO2 e mudanças no uso do solo.
Segundo van der Linden e colaboradores (2015), a demonstração do consenso a respeito do AGA funciona como elemento de porteira que ajuda a abrir a mente do público leigo para a realidade do fenômeno e das graves perspectivas que nos esperam se nada for feito para diminuir as emissões dos gases-estufa.
"There is currently widespread public misunderstanding about the degree of scientific consensus on human-caused climate change, both in the US as well as internationally. Moreover, previous research has identified important associations between public perceptions of the scientific consensus, belief in climate change and support for climate policy. This paper extends this line of research by advancing and providing experimental evidence for a “gateway belief model” (GBM). Using national data (N = 1104) from a consensus-message experiment, we find that increasing public perceptions of the scientific consensus is significantly and causally associated with an increase in the belief that climate change is happening, human-caused and a worrisome threat. In turn, changes in these key beliefs are predictive of increased support for public action. In short, we find that perceived scientific agreement is an important gateway belief, ultimately influencing public responses to climate change." Van der Linden et al. 2015.
["Há uma compreensão errônea disseminada entre a população a respeito do grau do consenso científico em torno das mudanças climáticas causadas pelos seres humanos, nos EUA e em outros países. Além disso, estudos anteriores identificaram importante associação entre a percepção pública a respeito do consenso científico, crença nas mudanças climáticas e apoio às políticas climáticas. Este artigo estende essa linha de pesquisa apresentando e fornecendo indícios experimentais para o 'modelo da porteira de crença' (GBM, 'gateway belief model'). Com o uso de dados nacionais (n = 1.104) de um experimento de mensagem de consenso, encontramos que um aumento na percepção publica do consenso cientifico é associado significativa e causalmente com um aumento na crença de que as mudanças climáticas estão ocorrendo, são causadas pelos seres humanos e são uma ameaça preocupante. Por outro lado, mudanças nessas crenças-chave são preditivas de um aumento no apoio à ação pública. Em suma, encontramos que o consenso científico percebido é uma importante porteira de crença, influenciando decisivamente na resposta do público às mudanças climáticas."]
Claro, se interpretarmos a fala do cineasta com uma ênfase diferente: "não adianta só números, estatísticas, planilhas", podemos compatibilizar com o que foi apresentado acima do efeito da percepção do consenso científico em torno do AGA (o número *é* importante para o efeito - não adianta apenas dizer que há um consenso ou vagamento dizer que a maioria dos cientistas acredita). Mas é mais complicado compatibilizar com a segunda parte: "O único jeito é contar histórias". Não que histórias não contem, mas é bastante discutível de que seja o único jeito.
De outra feita, "Cidade de Deus" é uma obra prima. Importantíssima. Tocante. Chocante. Um tapa na cara. Mas o quanto isso mudou a percepção do público em relação à questão não apenas do tráfico de drogas, mas, principalmente, da vida das comunidades nas favelas do Rio de Janeiro, do Brasil e do mundo? Não apenas a visão estereotipada da violência, da resposta padrão da repressão policial?
Como eu disse aqui no GR em outra ocasião, não que a história do storytelling seja fajuta, mas precisamos de indícios mais sólidos a respeito de sua eficácia e funcionamento - e dos eventuais problemas -, antes de sair abraçando-a como *a* solução da comunicação pública de ciências. Será que Meirelles engajar-se-ia em financiar pesquisas científicas sobre o tema (não necessariamente metendo a mão no próprio bolso, mas ajudando a convencer as empresas a pingarem suas contribuições)?
Upideite(28/set/2015): Vídeo da apresentação de Meirelles no 8o. CBUC.
Upideite(02/out/2015): Complementos: "Liguem para o sapo: um conto em contas", "Divagação científica - divulgando ciências cientificamente 23".
Outra(s) leitura(s):
Ceticismo.net "Cineastas, eu não quero saber da sua opinião sobre Ciências"
Upideite(24/out/2015): Minha leitura da proposta de Meirelles.
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