A revista ComCiência, editada em parceria entre o Labjor/Unicamp e a SBPC, deste mês tem como tema a "intolerância". Em parceira com a Tatiana Venancio, fizemos uma reportagem a respeito do racismo (e do racismo no futebol), com edição da Profa. Dra. Simone Pallone. Acabou ficando de fora a parte da xenofobia (que inicialmente eu faria - e a Tati ficaria com a parte do racismo; no fim, ela escreveu sobre o racismo em geral e eu foquei na parte do racismo no futebol), porque não conseguimos a tempo da edição declarações originais exclusivas dos entrevistados sobre o tema. Embaixo reproduzo a parte que fiz sobre o preconceito e intolerância contra pessoas nascidas em outros países (e seus descendentes).
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Era tarde da noite 11 de maio de 2008, grupo de homens armados com tacos de golfe, pedaços de paus, facões e machados avançaram sobre um conjunto de barracos de madeira no distrito de Alexandra, na região nordeste de Johannesburgo, África do Sul. Alguns apontavam: “este é estrangeiro, este não é”. Casas foram queimadas, lojas saqueadas e destruídas. A violência era direcionada a imigrantes de outras partes da África: Malauí, Zimbábue, Moçambique, Somália, Etiópia… Ela se espalhou para outras cidades do país ao longo do mês, em episódio de convulsão social que seria chamada de Distúrbios Xenofóbicos de Maio de 2008 da África do Sul com saldo de 62 mortos, inclusive 21 sul-africanos, e mais de 100.000 desalojados, muitos dos quais tornaram-se refugiados.
Depois disso, o governo nacional instituiu uma série de programas para tentar combater a xenofobia; mas esse episódio foi apenas o ápice de um processo que existia já no início da redemocratização em 1994, e talvez antes, mas os efeitos poderiam ter sido mascarados sob o regime do apartheid. Ataques a imigrantes e refugiados foram denunciados em relatório da Humans Right Watch de 1998. Os esforços das autoridades sul-africanas, preocupadas com a realização da Copa dali a dois anos, parecem ter surtido algum efeito. Pesquisas de opinião encomendadas pelo Programa de Migração no Sul da África mostram que houve uma redução generalizada na visão negativa dos sul-africanos em relação a imigrantes e refugiados, inclusive os ilegais, entre 2006 e 2010.
Na história recente do Brasil não vivenciamos ações de violência explícita contra estrangeiros nessas dimensões*. E os casos velados e explícitos de discriminação no futebol, ao contrário do que ocorre na Europa, parecem não ter ligações quanto à nacionalidade das vítimas.
Quando, tomando de empréstimo ao diplomata Ribeiro Couto, o historiador Sérgio Buarque de Holanda empregou o termo “homem cordial” em sua obra maior “Raízes do Brasil” para definir o brasileiro, usou-o no sentido de alguém fortemente influenciado pelas emoções - o coração (cordis, em latim) -, em oposição ao “homem racional, civilizado”. Com o tempo, adquiriu um significado mais positivo, moldando a imagem do cordial como cortês, receptivo, caloroso. Em entrevista com um grupo focal de universitários brasileiros, Szilvia Simai e Rosana Baeninger, pesquisadoras do Núcleo de Estudos da População (Nepo) da Unicamp, verificaram que os estudantes tinham uma imagem do país como receptivo à imigração, do brasileiro como respeitoso aos vários grupos étnicos e raciais com origem em outros países [2012. "Discurso, negação e preconceito: bolivianos em São Paulo”. In: Baeninger, R. (org.) Imigração Boliviana no Brasil. Nepo/Unicamp. 316 pp. Pp: 195-210.]
Essa imagem parece ser partilhada com os estrangeiros. A CNN listou o povo brasileiro como o mais “legal”; a Forbes, o Brasil como um dos 15 países mais amistosos; em tabulação realizada pelo Estadão Dados a partir de uma pesquisa em 65 países realizada por um grupo de institutos de pesquisas, a WIN, o país ficou em 12° lugar entre os destinos mais desejados para os que sonham em emigrar de sua terra natal.
O ideário projetado de povo alegre e receptivo a quem vem de fora, porém, pode ocultar um lado mais negativo. Segundo pesquisa do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD realizada entre 2005 e 2006, apenas 9% dos brasileiros concordavam em liberar a entrada de estrangeiros no país, 43% defendiam uma lei de imigração mais restritiva e 45% concordavam com a entrada de estrangeiros desde que houvesse emprego disponível. Uma resistência similar à dos espanhóis e intermediária entre os países pesquisados (23° entre 46 nações).
Em outra pesquisa de atitudes sobre imigração, de 2011, realizada pela Ipsos-MORI, 41% dos brasileiros concordavam que havia imigrantes demais no país (66% dos sul-africanos), 37%, que sobrecarregavam o serviço público (63% dos respondentes na África do Sul) e 38% (contra 64%), que sua presença tornavam mais difícil encontrar empregos - mesmo o total de estrangeiros residentes no Brasil sendo de cerca de 680 mil indivíduos (0,34% da população). Ainda assim, entre os 23 países avaliados, o Brasil foi o que se mostrou mais positivo em relação à contribuição dos imigrantes: 49% concordaram que eles tornam o país um lugar mais interessante e 47%, que sua presença é boa para a economia. 26% e 18% respectivamente entre os sul-africanos têm a mesma opinião sobre os imigrantes.
Nas redes sociais não é difícil de se encontrar manifestações ofensivas e hostis a determinados grupos de estrangeiros. Como o boato de que os haitianos concentrados no Acre formariam um exército mercenário para o governo brasileiro realizar um autogolpe de estado e publicações sistemáticas de denúncias não averiguadas contra médicos cubanos por supostas falhas. Segundo os dados da Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos da ONG SaferNet, em 2006, 519 páginas distintas (1% do total) com origem no Brasil foram relatadas como disseminadoras de conteúdos de intolerância contra estrangeiros; em 2013, foram 1.998 IPs (3% do total) - depois de um pico de 2.423 páginas denunciadas em 2009, os valores têm oscilado em torno de 2.000.
Em relatório de 2005, o enviado especial da ONU reportou que os imigrantes latino-americanos no Brasil “se sentem discriminados em suas vidas cotidianas e são vistos e tratados como inferiores, principalmente por causa da imagem negativa retratada pela mídia, a qual os mostra como pessoas criminosas e não civilizadas”. Segundo o relatório, alguns imigrantes parecem ser discriminados pela origem indígena. Em consequência da legislação restritiva, são empregados como trabalhadores ilegais, inclusive em condições análogas à escravidão, têm medo constante da polícia e enfrentam dificuldades de matricular seus filhos nas escolas pela falta de documentação exigida. No relatório de 1995, não havia nenhuma menção a casos de xenofobia.
Simai e Baeninger descrevem as formas retóricas da negação pelos brasileiros da existência de xenofobia/racismo em relação aos bolivianos em São Paulo. Há desde a negação explícita até alegação de desconhecimento sobre o tema, seguida de algum fato que poderia indicar que não existe a xenofobia. Esse comportamento para as pesquisadoras é uma forma de autoproteção: “ao lidar com a realidade, as pessoas recusam vê-la e expressam suas experiências através da negação”, concluem no artigo. Mas também elas, ao contrário da conclusão do relatório da ONU, identificaram um discurso positivo dos bolivianos entrevistados em relação aos brasileiros, ao mesmo tempo em que criticavam os demais bolivianos. Segundo as pesquisadoras igualmente seria um mecanismo de autoproteção: “Para tolerar todos os tipos de desigualdades, a comunidade de imigrantes bolivianos, bem como a sociedade hospedeira brasileira, dão suporte ou racionalizam o status quo, mesmo quando isso contradiz seu próprio autointeresse.”
Alex Manetta, então doutorando do Instituto de Geografia da Unicamp e atualmente pós-doutorando da Escola Nacional de Ciências Estatísticas, analisou como os bolivianos são retratados na mídia brasileira [2012. “Bolivianos no Brasil e o discurso da mídia jornalística”. In: Baeninger, S. (org.) op. cit. Pp: 257-70]. Do mesmo modo como o discurso dos brasileiros em relação aos bolivianos entrevistados por Simai e Baeninger, nossos vizinhos são quase sempre associados a uma situação negativa: trabalhos degradantes, conflitos com policiais e outros imigrantes, tráfico de drogas. “As opiniões formuladas ou sustentadas com base no discurso jornalístico tendem, portanto, a associar os bolivianos à miséria e ao crime, por exemplo, ignorando outros aspectos não veiculados pela mídia e também relacionados à presença de bolivianos no Brasil”, conclui Manetta.
Duval Magalhães Fernandes, da PUC-MG, a pedido do Conselho Nacional de Imigração, do Ministério do Trabalho e Emprego e da Organização Internacional para a Migração, coordenou a pesquisa “Migração Haitiana ao Brasil: Diálogo Bilateral”, para a qual foram entrevistados 340 haitianos vivendo no Brasil. Vários casos de discriminação pelos brasileiros são denunciados pelos haitianos, especialmente de marca racial e agravada pela barreira da língua. “Às vezes nós somos mal vistas por causa da cor da nossa pele. Sofremos de muito preconceito até no trabalho, quando a patroa quer demitir a gente, ela inventou algumas coisas, isso é uma forma de preconceito. O que piora as coisas é que nós não falamos o português direito.” - relata uma haitiana, baseada em Porto Velho/RO, para o relatório.
A imigração de haitianos no Brasil começou em 2010, com não mais do que 200 pessoas. Para 2014 estima-se que haja um total de 50.000 haitianos no Brasil. “Tal fluxo fez com que a percepção da presença dos haitianos fosse vista com alguma desconfiança por certa parcela da sociedade, nesse grupo estando incluídos alguns órgãos da impressa nacional que compararam a chegada dos imigrantes a uma invasão”, diz o relatório.
Essa discriminação não se estende a todos os grupos de imigrantes. No relatório de 2005 da ONU, os membros da comunidade japonesa em São Paulo disseram ser respeitados e estarem muito bem integrado; sendo livres para praticar sua religião e havendo alta taxa (65%) de casamentos mistos.
O fluxo migratório atual de latino-americanos difere da imigração ocorrida nos séculos XIX e início do XX, quando mais de 6% da população era constituída por pessoas nascidas em outros países. Apesar de ser em um número bem menor, dirige-se mais aos grandes centros urbanos - São Paulo, Belo Horizonte, Curitiba, Campinas, Porto Velho… “Dessa forma, mesmo que os volumes sejam menores do que em períodos anteriores, esses imigrantes são muito mais visíveis”, explicou Baeninger em uma entrevista ao Jornal da Unicamp. Além disso, o fluxo de imigrantes europeus e japoneses deu-se dentro da política de branqueamento da população, substituindo os escravos negros como força de trabalho nas lavouras, em vários casos com concessão de terrenos para produção. Os sul-americanos e caribenhos, em sua maior parte, vêm por conta própria e, no caso dos haitianos, dependentes de “coiotes” - agentes de tráfico humano - no Peru, que cobram de US$ 1.000 a US$ 12.000 para transportá-los através da fronteira do Brasil, sobretudo entre Peru e Acre.
No estado de São Paulo, os asiáticos - em particular chineses e coreanos - são principalmente empreendedores, abrindo pequenas lojas de confecção e de comércio - as famosas lojinhas de 1,99 -; os sul-americanos - sobretudo os bolivianos, mas também peruanos e paraguaios - ocupam principalmente o nicho de mão de obra em confecções; os haitianos têm substituído os migrantes nordestinos - cujo fluxo a São Paulo tem diminuído - em ocupações nas lavouras e na construção civil, mesmo com qualificação, os haitianos dificilmente conseguem empregos melhores.
Muitos africanos - sobretudo os cabo-verdianos e de outros países africanos lusófonos - vêm para estudar, mas também não estão livres do preconceito. Na Unesp de Araraquara, por exemplo, houve uma ação xenofóbica e racista contra estudantes africanos em 2012: uma parede da Faculdade de Ciências e Letras foi pichada com os dizeres: “sem cotas aos animais da África”.
Na mesma entrevista ao Jornal da Unicamp, Baeninger conclui: “Se não houver um trabalho para que a sociedade receptora entenda a importância dessa migração, a visão negativa pode ser reafirmada.” Medidas como as tomadas pelo governo sul-africano mostraram-se eficazes.
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*Upideite(22/ago/2018): Um caso gravíssimo ocorreu em 18.ago em Pacaraima-RR, em que um grupo de brasileiros atacou um campo de refugiados venezuelanos, expulsando-os e destruindo seus pertences. Talvez a maior ação de violência contra estrangeiros no país desde a redemocratização.
segunda-feira, 9 de junho de 2014
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