Segundo manual da Polícia Federal, "[s]eu emprego visa à intimidação psicológica do agressor, preservando uma distância de segurança entre este e o vigilante"; uso similar é preconizado pela Polícia Militar do Espírito Santo "[u]tilizadas principalmente pelo atirador, carregadas com munições de elastômero, a fim de assegurar que manifestantes ou detentos rebelados não se aproximem da tropa". Não deve ser, portanto, empregada para simplesmente dispersar a multidão (ou para proteção patrimonial). Não rara vez, no entanto, é utilizada exatamente para debandada de pessoas agrupadas (ou para impedir invasão de prédios públicos).
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O elastômero é um polímero elástico. Sendo um dos mais comumente empregados em munições a borracha butílica: um copolímero de isobutileno e isopreno (IIR) (Fig. 1).
Figura 1. Fórmula molecular de borracha butílica IIR (copolímero de isobutileno e isopreno). Fonte: Wikimedia Commons.
Figura 2. a) Configuração compacta da borracha. b) Configuração estirada. Fonte: Wikimedia Commons.
Ao atingir uma superfície dura, como pavimento asfáltico, a força de impacto deforma a munição de elastômero, acumulando parte da energia cinética do projétil. Essa energia é liberada ao fim do processo de impacto, acelerando o projétil à medida em que a bala readquire sua forma normal. Parte da energia é dissipada no choque, na forma de calor e ondas mecânicas (som e tremulação do solo) e na quebra de ligações covalentes da borracha - fragmentos podem ficar retidos no local do impacto e alguma deformação permanente pode ocorrer.
A elasticidade do projétil de borracha produz um amortecimento do impacto - prolongando o período de transferência de momento e diminuindo a força média de interação. A deformação também permite um aumento da superfície de contato, reduzindo a pressão.
Dessa forma, uma bala de elastômero tem um menor potencial de dano em comparação a uma munição rígida metálica. Mas será mesmo não-letal?
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Considerando-se uma energia de dissociação da ligação C-C de 348 kJ/mol, uma massa molar de 150.000 g/mol do colágeno, uma espessura cutânea média de 1,2 mm, densidade cutânea de 1,09 g/cm3 e uma composição de 60% de água; a energia necessária para romper todas as moléculas de colágeno em uma área de 1 mm2 da pele seria de cerca de 0,001 J. Considerando-se uma dissipação esférica, um projétil a atingir a superfície com uma densidade energética de 0,1 J/mm2 seria o suficiente para penetrar 1 cm - a depender da região atingida, seria o suficiente para danificar órgãos internos.
Um projétil de 19 g atingindo um alvo a uma velocidade final 137 m/s quando disparado de 20 m de distância tem uma energia cinética de 178,3 J (caso do principal projétil de tarugo único utilizado pelas forças policiais no país). Com 18,5 mm de diâmetro (calibre 12), isso representa uma densidade energética de 0,083 J/mm2. Mais do que o suficiente para lacerar a pele e muito próximo de valores suficientes para atingir órgãos internos. Com não pouca frequência são disparadas a distâncias muito menores, a despeito de recomendações em contrário.
O tecido adiposo subcutâneo na região abdominal varia de 1,5 mm a 18 mm em espessura em pessoas normais (chegando a 70 mm em pessoas obesas) (Lancerotto et al 2011). A parede muscular abdominal tem uma espessura média total de 20 mm (Whittaker et al. 2013). A parede torácica tem uma espessura entre 30 e 60 mm (Britten & Palmer 1996) e uma média de 42,4 mm (Givens et al. 2004). Seria necessário algo como 2 J/mm2 ao se atingir a superfície do corpo para se penetrar 4 cm: 23 vezes o valor da densidade energética, nas condições de uso especificadas pelo fabricante, do projétil de elastômero de uso mais comum no Brasil. Mesmo assim há casos de ferimentos internos graves ocasionados pelo impacto de balas de borrachas nessas áreas. Pelo menos um caso resultou em perfuração torácica; os tipos mais comuns de lesões no tórax são fraturas das costelas, contusão pulmonar, pneumotórax; podendo ocorrer lesões no coração (Rezende-Neto et al. 2009).
A espessura do tecido mole externo na cabeça de um indivíduo adulto varia de acordo com a etnia e a região. Na região supraorbital pode ir de 3,6 mm a 8,25 mm; na região maxilar (acima do segundo molar), de 12,3 mm a 22 mm. (Phillips & Smuts 1996.) Considerando-se uma densidade de energia de fratura de 1.700 J/m2 para ossos (0,0017 J/mm2) e uma espessura craniana entre 16,1 e 20,2 mm (Ross et al. 1976), um projétil com densidade energética de 0,67 J/mm2 poderia atingir o cérebro. É um valor 8 vezes maior do que o de condições especificadas pelo fabricante. Porém em outras regiões, os ossos são mais finos e há registro de penetração de projétil - como uma bala de borracha alojada no sino etmoidal (Gross et al. 2005); além de danos ao globo ocular (Lavy & Asleh 2003).
Em um estudo de 90 casos de ferimentos a munição de elastômero no Reino Unido (principalmente da ação
As recomendações de uso nos manuais das forças brasileiras de segurança são de mirar na região das pernas, ainda assim várias pessoas são feridas na região do baixo ventre, tórax e cabeça - algumas por projéteis ricocheteados ou por falta de precisão da munição (particularmente os balins), outras por simplesmente o atirador, contrariamente às recomendações, mirar nas porções superiores do corpo.
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Britten S, & Palmer SH (1996). Chest wall thickness may limit adequate drainage of tension pneumothorax by needle thoracocentesis. Journal of accident & emergency medicine, 13 (6), 426-7 PMID: 8947807
Givens ML, Ayotte K, & Manifold C (2004). Needle thoracostomy: implications of computed tomography chest wall thickness. Academic emergency medicine : official journal of the Society for Academic Emergency Medicine, 11 (2), 211-3 PMID: 14759970
Gross M, Regev E, Hamdan K, & Eliashar R (2005). Penetrating rubber bullet into the ethmoid sinus: should the bullet be removed? Otolaryngology--head and neck surgery : official journal of American Academy of Otolaryngology-Head and Neck Surgery, 133 (5), 814-6 PMID: 16274819
Lancerotto L, Stecco C, Macchi V, Porzionato A, Stecco A, & De Caro R (2011). Layers of the abdominal wall: anatomical investigation of subcutaneous tissue and superficial fascia. Surgical and radiologic anatomy : SRA, 33 (10), 835-42 PMID: 21212951
Lavy T, & Asleh SA (2003). Ocular rubber bullet injuries. Eye (London, England), 17 (7), 821-4 PMID: 14528243
Mahajna A, Aboud N, Harbaji I, Agbaria A, Lankovsky Z, Michaelson M, Fisher D, & Krausz MM (2002). Blunt and penetrating injuries caused by rubber bullets during the Israeli-Arab conflict in October, 2000: a retrospective study. Lancet, 359 (9320), 1795-800 PMID: 12044373
Millar R, Rutherford WH, Johnson S, & Malhotra VJ (1975). Injuries caused by rubber bullets: a report on 90 patients. The British journal of surgery, 62 (6), 480-6 PMID: 1148650
Phillips, V.M., & Smuts, N.A. (1996). Facial reconstruction: utilization of computerized tomography to measure facial tissue thickness in a mixed racial population Forensic Science International, 83, 51-59 DOI: 10.1016/0379-0738(96)02010-5
Rezende-Neto J, Silva FD, Porto LB, Teixeira LC, Tien H, & Rizoli SB (2009). Penetrating injury to the chest by an attenuated energy projectile: a case report and literature review of thoracic injuries caused by "less-lethal" munitions. World journal of emergency surgery : WJES, 4 PMID: 19555511
Whittaker JL, Warner MB, & Stokes M (2013). Comparison of the sonographic features of the abdominal wall muscles and connective tissues in individuals with and without lumbopelvic pain. The Journal of orthopaedic and sports physical therapy, 43 (1), 11-9 PMID: 23160368
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