Tyson, em resposta a uma carta crítica, insiste que foi só uma brincadeira e indica uma conversa com Dawkins sobre o tema como uma representação mais fiel de sua visão.
Mas, a despeito de se Tyson apenas brincou ou se nutre um real preconceito contra a filô, a ideia de que ela é apenas blablablá inútil é muito comum entre os defensores mais ativos das ciências e dentro da comunidade cético-racionalista. É uma ironia dupla já que: 1) o ceticismo e racionalismo são posições filosóficas; 2) as ciências ainda são o ramo da filosofia natural (ainda que os filósofos analíticos talvez tendam a discordar). E pode se tornar tripla se considerarmos que as ciências básicas (como a cosmologia) são frequentemente alvo de acusações de ser uma perda de tempo: "por que gastar bilhões com um acelerador de partículas gigantes? seria mais útil investir em escolas e hospitais".
Alguns exemplos da utilidade da filosofia:
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A democracia é um posicionamento filosófico a respeito do sistema político (sim, a ditadura também) e não apenas o resultado de um pragmatismo a respeito de como a sociedade funciona melhor (aliás, a democracia é frequentemente alvo de críticas de que seja disfuncional) - aliás(2), pragmatismo também é uma posição filosófica. Discussões em torno de conceitos como "justiça" e "igualdade" orientam os fundamentos jurídicos para julgamentos sobre o tema: "ações afirmativas promovem a justiça e a igualdade?", "é justo que alguns paguem mais impostos do que outros?"; "por que é errado ser racista, homofóbico, xenófobo, sexista?".
O critério de demarcação é um dos tópicos da filosofia das ciências, e a discussão em torno dela - como o popperismo - orienta a política de financiamento de pesquisas. E é com base nisso que se sustentam as críticas (de parte dos que acham que a filosofia é inútil) da aceitação de disciplinas tidas por pseudocientíficas no corpo acadêmico: como o reconhecimento pelo CFM da homeopatia.
A navalha de Occam, princípios estéticos e a busca por simetrias em leis naturais são de base filosófica.
Os motores de impulsão das ciências são grandes questões filosóficas: de onde viemos, quem somos, para onde vamos?
Questões mais específicas (com trocadilho) como o conceito de espécie tem consequências práticas como na biologia da conservação ou nas medidas quarentenárias contra pragas. A depender do conceito, duas populações podem ser da mesma espécie ou não. Outras, como o conceito de planeta (com o que o próprio Tyson esteve envolvido, e que resultou no rebaixamento de Plutão para a divisão dos planetas-anões - aparentemente terminou sem ressentimentos pessoais), no momento não tem tanta consequência prática, mas o aclaramento teórico tem sua importância.
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As ciências, então, estão mergulhadas em um contexto filosófico, dela não podem se desvencilhar, dela dependem e dela são *parte integrante*. Não é uma simples relação de origem histórica, como a astronomia a partir da astromancia ou da química a partir da alquimia. Astronomia surge da astromancia, mas rompe com as premissas desta; idem da química em relação à alquimia. As ciências, no entanto, não romperam com as premissas básicas da filosofia natural (p.e. que há ordem discernível nos fenômenos naturais e que isso é racionalmente apreensível) - é uma continuação e sua atualização.
Claro que há parte do blablablá das filosofias que são essencialmente de nenhuma utilidade (nas ciências ou na sociedade em geral). Assim como há discussões de certas áreas das ciências que não tem nenhuma aplicação prática à vista em outras áreas ou na sociedade em geral. Enquanto os físicos se debatiam a respeito da identidade entre a massa inercial e a massa gravitacional (discussão que ainda não se fechou), a pesquisa sobre biologia evolutiva avançou; enquanto biólogos se debatiam sobre gradualismo e equilíbrio pontuado (discussão que ainda persiste), a cosmologia avançou.
Algumas áreas e alguns tópicos são mais complexos do que outros, o que, muitas vezes, não permitem um surgimento rápido de consenso entre os especialistas. Muitas questões filosóficas são complexas mesmo que sua formulação seja simples: "o que é o eu?", "o que é consciência?", "é possível se fugir dos zumbis?"
Há alguma utilidade nessa peroração sem fim ou é apenas discussão sobre sexo dos anjos? A utilidade que vejo é que ela mapeia a paisagem conceitual e das possibilidades - sugerem vias de ataque das ciências quando elas tiverem desenvolvido métodos que permitam testar tais hipóteses. Muita dessa discussão se dá no mesmo limbo em que vivia a questão sobre as teorias das cordas e das branas antes dos supercolisores de hádrons e da possibilidade de aceleradores ainda mais poderosos.
As visões adversárias na filosofia que os detratores têm como mera metafísica preparam o terreno em que as ciências poderão se assentar. Aí esses mesmos detratores acharão que toda a discussão prévia foi inútil porque bastou as ciências chegarem e acabar com as dúvidas.
4 comentários:
Gostei, Takata. A filosofia é a possibilidade da transcendência humana. A crítica da ideologia. E ela que reúne o pensamento fragmentado da ciência o reconstrói na sua unidade. Muito bom seu texto!
Salve, Kurono,
Valeu pela visita e comentário.
Não vejo a filosofia como a única possibilidade de transcendência humana - além das próprias ciências, as artes também.
Também não vejo como função da filosofia dar unidade às ciências. A unidade, de um lado, é buscada nas próprias ciências - as buscas por teorias de unificação -, de outro, há fragmentação também na própria filosofia (e nas demais áreas de conhecimento e práticas humanas).
[]s,
Roberto Takata
Excelente texto, Takata.
Valeu, dNap.
[]s,
Roberto Takata
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