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quarta-feira, 14 de maio de 2014

Como é que é? - A seca no Sistema Cantareira é de uma em 3.378 anos?

Não tive acesso ao tal relatório técnico da Sabesp que mostraria que a crise atual da falta de água no Sistema Cantareira tenha uma probabilidade geral de ocorrência de apenas 0,033% ao ano e que isso corresponderia a uma chance em 3.378 anos.

Em primeiro lugar, se a chance é de 0,033% de ocorrer em um dado ano, não sei como chegaram ao valor de 1 chance em 3.378. 1/3378 = 0,0296%. Mas, close enough. O problema é mesmo como chegaram ao valor de 0,033%.

Peguei os dados de pluviosidade mensal para Bragança Paulista-SP - onde está localizado o primeiro reservatório do sistema em em estado mais crítico. o banco de dados do Sistema de Informações para o Gerenciamento de Recursos Hídricos do Estado de São Paulo (SigRH) tem dados de 1970 a 2004. O Centro Integrado de Informações Agrometeorológicas (Ciiagro) tem dados desde 2000 até hoje. Limpando as entradas duplicadas e triplicadas no Ciiagro e combinando com os do SigRH, fiz o gráfico abaixo (Fig. 1) com as médias mensais de chuva entre outubro e março (período considerado no relatório da Sabesp segundo os jornais) e a história que podemos tirar disso parece ser bem diferente.

Figura 1. Padrão de precipitação mensal média entre outubro e abril em Bragrança Paulista-SP. Dados: SigRH e Ciiagro.

A primeira coisa que notamos é que a tal seca de 1 em 3.378 anos não é um ponto tão discrepante assim. Há anos em que chove mais, há anos em que chove menos. Em 22 ocasiões (de 42 - descontando a sobreposição das bases utilizadas), a barra de erro (representando o desvio padrão) corta a linha dos 100 mm de média mensal. Em uma distribuição normal, aproximadamente 68,2% da área da região sob a curva fica entre -1σ e +1σ em torno da média. Ou seja, pelo menos 15,9% da área fica abaixo da linha de 100 mm a cada vez que a barra a toca. 52% x 15,9% = 8,3% é a chance de que a média de chuvas entre outubro e abril fique abaixo dos 100 mm - cerca de 1 vez a cada 12 anos. Desde 1970, seriam de se esperar cerca de 3,5 episódios - escapamos de 2,5: em 2001 chegamos bem perto - 113,7 mm. Não sei qual modelo o tal relatório usou, mas tudo indica que está bem furado.

Isso considerando-se o cenário até aqui. Porém, estamos em um contexto de mudanças climáticas. Em alguns lugares deverá passar a chover (com mais frequência) mais do que a média histórica, em outros, menos. Em outros, haverá somente uma maior tendência de variação. Episódios de secas e crise de água (e, consequentemente, de energia em um país de matriz hidrelétrica predominante) podem se tornar ainda mais comuns. (E, no outro lado da moeda, episódios de enchentes também poderão se tornar ainda mais comuns.)

Upideite(15/mai/2014): A média entre as médias dos períodos de outubro a abril é de 182,6 mm de chuvas. O desvio padrão da média dessas médias é de 37,9 mm. Fazendo um teste de z-score, a probabilidade de a média de um dado período ser de 100 mm ou menos é de 1,46% ou 1 vez a cada 68,5 anos. A probabilidade de que a média fique abaixo dos 115 mm (como em 2001) é de 3,75% ou 1 vez a cada 26,7 anos. Dos 571 pontos entre outubro e abril (sem descontar as duplicações entre as bases de dados), 268, 46,9% dos pontos, estão abaixo de 100 mm. Um período de 6 meses seria esperado em mais do que (0,469)^6 = 1,07% das vezes, isto é, mais do que 1 vez a cada 93,5 anos.  Se usarmos o limite de 94,6 mm (que é a precipitação média deste último período), chegamos a mais do que 1 vez a cada 117,5 anos. Difícil ver por onde poderíamos chegar aos tais 0,033%.

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