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segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Na saúde e na doença: distorções representativas e sensacionalismo na cobertura da Aids e do câncer

Talvez o suprassumo do sensacionalismo no jornalismo e na divulgação científicas seja na área de saúde. Em especial quanto aos anúncios de curas do câncer e da Aids. Por motivos de... é o que vende mais.

Outros temas de saúde amplamente explorados nas capas são envelhecimento, dietas, saúde do coração. O padrão geral é que se destacam as questões de saúde que mais interessam às classes mais altas - o perfil do público alvo de boa parte dos impressos (Tabela 1).

Tabela 1. Número de artigos de O Estado de São Paulo que citam 
determinadas doenças ou fatores de saúde humana.*

Período
Fator/doença 1990-atual 1875-atual %
câncer 38.512 65.417 58,9
aids 15.834 18.291 86,6
dengue 5.782 6.280 92,1
cardíaca 4.501 10.811 41,6
diabetes 3.694 11.688 31,6
hipertensão 2.795 4.394 63,6
polio/poliomielite 2.741 7.892 34,7
tuberculose 2.425 26.002 9,3
malária 2.282 7.171 31,8
desnutrição 1.440 2.984 48,3
sarampo 1.003 4.121 24,3
esquistossomose 176 1.338 13,2
Para alguns termos como câncer, o contexto é difícil de se analisar - 
pode, p.e., referir-se a um signo zodiacal.

A tentação é grande, até uma revista primordialmente voltada aos negócios dá de botar uma capa sobre a "cura do câncer", como a edição do mês passadode junho* da revista Forbes. Na verdade é uma terapia gênica com células T, específica para leucemia linfoblástica aguda. A versão brasileira transformou em um tratamento geral para câncer - usando incidência para todos os tipos da doença para falar do potencial de alcance do novo tratamento: "Cerca de 14 milhões de pessoas são diagnosticadas anualmente com câncer. Já imaginou se fosse possível encontrar uma cura? Pois é o que a Novartis propõe com um tratamento revolucionário." A LLA tem uma incidência anual global estimada entre 1 a 4,75 novos casos por 100.000 pessoas. O que significa entre 75.000 e cerca de 360.000 novos casos por ano - significativo, mas bem longe dos 14 milhões mencionados pela Forbes Brasil.

Em julho de 1992, a revista Globo Ciência (hoje Galileu) anunciava: "Aids sob controle. Comprovada a eficiência da droga brasileira SB-73." (Não sei em que pé está a pesquisa com isso, buscando no Google Scholar por "hiv"+"Streptomyces brasiliensis" não encontro nenhum artigo. Em 1992, foi apresentado resultados de experimento clínico em fase II - com apenas 14 sujeitos experimentais - na 8a. Conferência sobre Aids em Amsterdã, Países Baixos.)  Em novembro de 1995, a mesma Globo Ciência voltaria à carga, agora dupla: "Câncer e Aids. A cura nas plantas.".

Em outubro de 1996, foi a vez da Superinteressante: "Aids a 1% da cura". A pior de todas, em dezembro de 2000, a Super vinha com a capa: "Aids. O HIV é inocente?" abrindo espaço para a hipótese não substanciada em fatos de que a Aids seria causada por desequilíbrio químico (em outubro, a revista tinha publicado uma entrevista com Duesberg, na qual o químico defendia essa ideia, por essa entrevista a revista se sentiu na obrigação de se desculpar, treze anos depois.). Janeiro de 2001, capa: "O fim do câncer?". A machete mudava pra "Câncer: viramos o jogo" em maio de 2013. No mesmo ano em agosto, a revista se saiu com "Enfim, a cura da Aids".

Um blogue da revista Time tentou fazer gracinha com um achado de uma pesquisa, sobre o papel protetor às mitocôndrias do sulfeto de hidrogênio produzido no interior das células em situação de estresse (mas, deve-se admitir, foi na toada do release infeliz - lá se faz associação do gás com o odor de flatulência). Levou na cabeça com a resposta do Boing Boing no facebook (Fig. 1).

Figura 1. O processo de distorção entre o que é produzido e o que é anunciado. Fonte: Boing Boing FB.

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Embora mesmo a OMS esteja esperançosa quanto ao controle e até erradicação da Aids, não é pra agora. Anúncios recentes de casos de eliminação de HIV do corpo de pacientes sofreram um baque na segunda semana de julhoretrasada*: um bebê tido por "curado" há dois anos, voltou a apresentar carga virótica detectável em seu organismos. Não é tão simples combater o HIV, sua taxa de mutação é relativamente alta e partículas virais podem se esconder no interior de células progenitoras de células de defesa  - onde ficam a salvo do ataque de medicamentos dos coquetéis e dos anticorpos. A sobrevida média, no Brasil, após o diagnóstico de Aids, é de cerca de 9 anos atualmente. Mas os infectados pelo HIV que começam o tratamento antes de desenvolver os sintomas da Aids podem viver décadas. No entanto, a despeito de uma dezena de casos isolados relatados na literatura, não há ainda uma cura - os pacientes precisam continuar tomando seus medicamentos para manter a carga virótica suficientemente baixa.

O câncer, por sua vez, não é uma única doença. Há mais de 200 tipos. E, praticamente, cada evento de câncer é único, com seu próprio conjunto de alterações genéticas. Não É muito complicado (impossível?) desenvolver um tratamento único, sem contar as diferenças de reações de indivíduo para indivíduo. Muitos tipos têm tratamentos adequados e até bons índices de cura - especialmente com diagnóstico precoce. Falar em "cura do câncer", assim, de modo genérico, denota, então, um tratamento único com índice de cura muito alto (mais de 90%) para uma ampla gama de tipos em praticamente qualquer fase de desenvolvimento da doença - estamos, infelizmente, longe disso.

Os meios de comunicação não apenas refletem o gosto de seu público alvo, eles também o molda, influenciando seus leitores. Não é de se surpreender que o brasileiro pense que no país morra-se mais de câncer do que de infarto ou AVC. As distorções representativas, o enviaesamento da cobertura, o sensacionalismo, o alarmismo... atingem não apenas a reputação dos veículos, mas expõem a saúde dos próprios leitores/telespectadores/ouvintes.
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via Ruth Helena Bellinghini FB, @oatila, Adalberto Cesari FB.

*Upideite(04/ago/2014): Fui postergando a publicação desta postagem que as datas relativas originalmente referidas ficaram bem defasadas.

2 comentários:

Unknown disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
none disse...

Cara suposta Victoria, um dos poucos vetos que faço é em relação a spam. Por tal motivo, excluí seu comentário.

[]s,

Roberto Takata

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