Ocorre que é absolutamente normal o uso de outros componentes para a produção do molho além da soja (e sal e água). Geralmente é adicionada uma fonte de amido para promover o crescimento do fungo e a produção de suas enzimas - no Japão e outros países orientais é comum a adição de trigo.
O ministério da agricultura do Japão padroniza cinco tipos entre os principais, mas há variantes por todo o país. O tipo mais comum de shoyu comercializado no Japão é koikuchishoyu (濃口醤油), com uma proporção de 1:1 entre soja e trigo. O shiroshoyu (白醤油), shoyu branco, pode ser feito totalmente de trigo, mas o mais comum tem uma proporção de cerca de 75% (1 parte de soja para 3 de trigo). O usukuchishoyu (薄口醤油) tem uma coloração intermediária entre o shiroshoyu e o koikuchishoyu, tendo cerca de 66% de trigo. Quanto maior a proporção de soja, geralmente, maior o teor de glutamato (e outros aminoácidos livres), que confere(m) o umami ao molho. Quanto maior a proporção de fontes de amido, maior o teor de açúcares, que conferem um toque adocicado. (Veja na tabela 1 algumas das principais características de cada tipo.)
Tabela 1. Características de composição e coloração dos cinco tipos padronizados de shoyu japonês. (Modificado de: O'Toole 2004.)
tipo | sal (g/100 ml) | nitrogênio total (g/100 ml) | açúcares redutores (g/100 ml) | álcool (ml/100 ml) | cor | razão soja:trigo | |
koikuchi | 16,9 | 1,57 | 3 | 2,3 | marrom escuro | 1:1 | mais vendido no Japão (>80% do mercado) |
usukuchi | 18,9 | 1,19 | 4,2 | 2,1 | marrom claro | mais trigo | |
tamari | 19 | 2,25 | 5,3 | 0,1 | quase preto | 10:1 | principal tipo consumido na China |
saishikomi | 18,6 | 2,39 | 7,5 | - | quase preto | 1:1 | uso de shoyu cru no lugar da salmoura para fermentação líquida |
shiro | 19 | 0,5 | 20,2 | - | amarelado | muito mais trigo |
A figura abaixo representa simplificadamente o processo industrial de produção do koikuchishoyu.
Então é preciso observar- que: 1) não há proibição na legislação brasileira de adição de milho nem estabelecimento de limites para seu uso no molho de soja (como é comentado de passagem nas reportagens como a do UOL); 2) elementos amiláceos que não a soja são acrescentados normalmente na produção de shoyu, inclusive no Japão; 3) a presença de milho (e outros ingredientes) *está* indicada normalmente nos rótulos de shoyu nacionais, como determina a lei.
Figura 1. Esquema simplificado da fabricação industrial do shoyu tipo koikuchi. Koji (ou kouji, 麹), o bolor de Aspergillus spp. sobre grãos e sementes para a iniciação da fermentação; moromi (諸味), o mosto de fermentação do shoyu (Modificado de Luh 1995.)
Então é preciso observar- que: 1) não há proibição na legislação brasileira de adição de milho nem estabelecimento de limites para seu uso no molho de soja (como é comentado de passagem nas reportagens como a do UOL); 2) elementos amiláceos que não a soja são acrescentados normalmente na produção de shoyu, inclusive no Japão; 3) a presença de milho (e outros ingredientes) *está* indicada normalmente nos rótulos de shoyu nacionais, como determina a lei.
A única restrição que se poderia fazer é se a *ordem* dos ingredientes nos rótulos está de acordo com a quantidade de milho: se há mais milho do que soja, o milho precisa estar listado antes da soja nos ingredientes.
Os autores do estudo observam que a maioria das amostras estudadas (40 de 70 amostras de marcas brasileiras) apresentou um teor estimado de soja menor do que 20%. É preciso observar que o que o estudo determinou mais diretamente é a proporção de isótopos de carbono-13 (C-13). O milho, ao contrário da maioria das plantas, inclusive soja (e também trigo), tem o chamado metabolismo C4, em que o carbono é inicialmente fixado (incorporado) em um composto de quatro átomos de carbono (a maioria tem um metabolismo chamado de C3, que, como se pode deduzir, fixa o carbono inicialmente em um composto com três átomos de carbono). Nas plantas com metabolismo C4, ocorre uma fixação de gás carbônico com isótopo C-13 em proporção ligeiramente superior às plantas C3. Um nível mais elevado de C-13 indicaria o uso em maior quantidade de uma fonte como o milho. A metodologia, então, é bem indireta para se estabelecer a quantidade exata de milho usado - tanto é que, para pelo menos um dos pontos, a extrapolação a partir da medição de C-13 indicaria uma quantidade superior a 100% de soja, o que não faz sentido a não ser considerando-se as incertezas da avaliação para o teor de milho.
Para os pesquisadores, a possível alta quantidade de milho poderia se dever ao fato dos preços desses grãos serem, na média, menores do que os da soja. É possível e faz muito sentido (mesmo que correspondendo a alguns centavos por frasco). Mas um fator a se considerar é a diferença de gosto entre brasileiros e japoneses. Será que, em tudo o mais sendo igual (preço, quantidade de sal, cor...), o brasileiro preferiria um molho com maior umami ou um com mais açúcares? É possível que haja estudos de mercado sobre a preferência do consumidor, no entanto, como não sou da área, não tenho conhecimento a respeito.
Seria o caso de promover uma padronização do shoyu brasileiro? Não sei. Em termos de saúde - tirante legislações mais genéricas como em relação ao uso de sal, aviso de alergênicos, data de validade, tabela nutricional... -, não parece haver necessidade em função de um eventual risco pelo uso de milho. Em termos econômicos: em 2013, as vendas totais de shoyu no Brasil eram o equivalente a cerca de R$ 180 milhões/ano, não chega a ser insignificante (para fins de comparação, o ketchup movimentou cerca de 500 milhões BRL/ano em 2016); mas há lesão ao consumidor - exceto se no rótulo não for indicado o uso do milho ou a listagem sugerir um uso menor -? Essa discussão deixo para a leitora ou o leitor do GR.
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Algumas manchetes, excertos e comentários:
Exame 25.abr.2018: Estudo mostra que shoyu brasileiro é feito à base de milho
"Foram feitas análises com 70 amostras do condimento vendidas no Brasil. A presença média de soja nos produtos avaliados era de menos de 20%. Apesar de normalmente ser à base de soja no Oriente, ele é feito com milho no mercado nacional. O trigo e a cevada podem ser misturados ao shoyu, mas não fazem parte da composição principal do produto."
UOL 25.abr.2018: Shoyu produzido no Brasil não é de soja, é feito à base de milho
"Em países como Japão, China e Coreia do Sul, o molho shoyu é feito de soja com proporções pequenas de outros cereais como trigo ou cevada."
.O shoyu mais comumente vendido no Japão, por exemplo, leva 50% de trigo, o que é longe de pequeno e pode ser qualificado como fazendo parte da composição principal. Há variações que têm até 100% de trigo na composição (excetuando-se água e sal).
Terra 26.abr.2018: Estudo revela real composição do Shoyu fabricado no Brasil.
"O molho fabricado pelas indústrias brasileiras é composto por milho, e não por soja. [...] Já o milho, nesse mesmo processo apresenta o sistema de fotossíntese de C4 por gerar moléculas de açúcar que contêm quatro átomos de carbono. Essas moléculas de açúcar continuam presentes nos alimentos mesmo após seu processamento, portanto torna-se mais fácil identificar cada um deles."
.Embora o milho fosse o principal componente, havia soja - mesmo que apenas 5% (o menor teor estimado para algumas amostras), não houve nenhuma em que o molho tivesse apenas milho. O método usado não tem a ver com a quantidade de átomos de carbono nas moléculas de açúcares - porque, embora inicialmente nas plantas de metabolismo C4 o carbono seja fixado em uma molécula de 4 átomos de carbono, essa molécula é processada depois e a via fotossintética é muito similar às plantas C3; a diferença é pela fração de isótopos de carbono-13 que são incorporados (devido a afinidades das enzimas que realizam a reação).
3 comentários:
Dei uma olhada rápida no mercado e os nacionais colocam a soja primeiro enquanto os importados colocam o trigo ou a soja em primeiro lugar na lista de ingredientes.
Salve, André,
Valeu pela visita e comentário.
Tem que ver se essas marcas e lotes apresentam teor de soja diferente do sugerido (em termos relativos) pela ordem. Se soja aparece em primeiro, precisam ter usado mais soja do que milho ou outro ingrediente que vem depois.
[]s,
Roberto Takata
UAU!
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