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sábado, 3 de janeiro de 2015

Como é que é? - Câncer é mais questão de má sorte?

Vários sítios web noticiosos estão repercutindo um estudo recentemente publicado a respeito da variação do risco de câncer entre os diferentes tecidos do corpo humano.

BBC: "Pesquisa diz que má sorte é causa da maioria dos tipos de câncer"
EFE: "Estudo indica 'azar' como fator de peso no desenvolvimento do câncer"
Reuters: "Azar biológico é culpado por dois terços de casos de câncer, diz pesquisa"
Veja: "Maioria dos casos de câncer acontece por 'má sorte'" (sobre material da AFP)
Estadão: reproduziu reportagem da Reuters (cuidado! contém paywall poroso)
O Globo: também reproduziu material da Reuters (cuidado! contém paywall poroso)
Folha: reproduziu reportagem da BBC (cuidado! contém paywall poroso)

O próprio resumo feito pela editoria da Science vai nessa toada: "Remarkably, this 'bad luck' component explains a far greater number of cancers than do hereditary and environmental factors."

Então é isso mesmo? Estilos de vida, fatores ambientais, predisposições hereditárias têm, afinal, pouco peso no surgimento de tumores? Not so fast.

O argumento é baseado na linearidade (em curva de ajuste logarítmico) com um índice de correlação entre risco de desenvolver câncer em algum momento da vida e o número total de divisões das células-tronco no tecido de 66%. (Vide Figura 1.)

Figura 1. Correlação entre risco de desenvolver câncer durante a vida e o total de divisões de células-tronco do tecido. Fonte: Tomasetti & Vogelstein 2015/Science.

Mas agora observemos a Figura 2, que é a mesma Figura 1, mas com destaque entre os tipos de câncer correlacionados com fatores ambientais, genéticos e/ou comportamentais (destacados em vermelho - o tipo de câncer sem tais fatores, em verde).

Figura 2. Correlação câncer x divisão de células tronco. Em vermelho, câncer relacionado a alguma condição ambiental, hereditária ou de estilo de vida; em verde, câncer sem tais fatores; em azul câncer não relacionado de acordo com presença ou ausência de fatores não casuais.

Observamos que os tipos de câncer associado a fatores não casuais - fumo, infecção por vírus, casos familiares, etc. - os pontos vermelhos, estão concentrados na região de maior risco; as versões correspondentes sem tais fatores (os pontos verdes) ficam bem mais abaixo. Tipicamente a diferença nos riscos é de 9 vezes. A chance de se desenvolver câncer durante a vida é da ordem de 1%; na presença de fatores ambientais, hereditários ou comportamentais, a chance é da ordem de 10%.

Então é preciso tomar cuidado com o que esse estudo mostra. A variação *entre os diferentes tipos de tecido* se correlaciona mais com o total de divisões das células-tronco: basicamente, tecidos com células que se dividem o tempo todo, no geral, estão mais expostos a desenvolver algum tipo de câncer. O que é absurdamente diferente de dizer que a variação entre as pessoas ou o peso nos casos totais de câncer na população se devam ao acaso.

*Não* está tudo bem fumar, beber, fazer sexo desprotegido, manter dieta desregulada, aspirar ar poluído, expor-se à radiação, ter trocentos casos familiares de câncer... O achado de Tomasetti & Vogelstein está dentro do esperado - já se sabia que cerca de 1/3 dos casos de câncer eram preveníveis. Mas, note-se, *se* conseguíssemos prevenir - especialmente mudando nosso estilo de vida - esses casos de câncer, ficaríamos na situação de que 100% dos casos de câncer se dar-se-iam por mutações casuais. Seria pouco inteligente chegar à conclusão de que, em uma situação em que 100% dos casos de câncer são por acaso, então tudo bem ter um estilo de vida, digamos, excessivamente liberal e libertino. Não apenas porque causaria outros problemas (mortes no trânsito, insuficiência pulmonar, envelhecimento precoce, DSTs, obesidade...), mas aí causaria mais câncer ainda.

Cerca de 300 mil pessoas morrem de queimaduras por fogo por ano no mundo. A taxa de mortalidade total no mundo em 2012, era de 8 mortes por 1.000 pessoas, em uma população de 7,124 bilhões, isso representaria 57 milhões de mortos. Os queimados são, então, 0,5% dos mortos. Seria bobagem concluir que então tudo bem se encharcar de gasolina e riscar um fósforo.


Upideite(14/jan/2015): A jornalita Jennifer Couzin-Frankel revisita o tema de que tratou no blog da Science. Um dos autores do artigo esclarece o que foi comentado acima: "'We did not claim that two-thirds of cancer cases are due to bad luck,' Tomasetti told me gently. What the study argued, he explained, was that two-thirds of the variation in cancer rates in different tissues could be explained by random bad luck. (This is exactly the point made by the authors of the letter critiquing me.)"
Figura 3. Visualização gráfica da relação entre variância total inicial, variância residual após ajuste e coeficiente de determinação R².*

*Upideite(16/jan/2015):Imagem atualizada para corrigir a representação do coeficiente de determinação R². (Erroneamente, eu havia atribuído à barra azul.)

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