O que leva uma pessoa a se embrenhar no mundo das ciências? Certo, a pergunta não é original. E eu não tenho uma resposta e talvez nem haja ou haja uma infinidade: cada pessoa tem suas razões que a motivam a tomar um caminho e não outro - e por vezes essas razões são obscuras até para si.
Ingressar em cursos de graduação de áreas científicas pode se dever à influência de um professor no ensino médio, a programas de televisão, aos pais (para seguir-lhes a carreira ou simplesmente irritá-los fazendo algo contrário ao desejo deles) ou talvez porque a concorrência para aquele curso era menor do que para o de medicina, engenharia ou direito. Mas, e depois? E quem continua o caminho da pós-graduação, do pós-doutorado, tenta uma vaga em alguma universidade de pesquisa? Pode ser por ter gostado mesmo do curso - ou então por tê-lo detestado e se debandado para uma área totalmente distinta -, influência de um outro professor (estou usado o masculino como genérico - naturalmente inclui as professoras), ter deixado o "piloto-automático" ligado (não é raro uma crise pós-defesa - logo depois do mestrado, quando se pensa: "e agora?", "é isso que quero para minha vida?"). Pode ser até por causa das bolsas - não são grandes coisas, mas só ver as filas que fazem para concursos públicos que pagam muito menos (aquela história de doutores no concurso para
gari).
Há o lado desgastante da rotina do laboratório - como em qualquer outro trabalho. Às vezes há problemas de relacionamento - como em qualquer trabalho. Problemas pessoais que interferem no projeto e problemas de projeto que intereferem na vida pessoal ("ih! mau aê, galera, meu experimento micou e não vou poder ir na balada, tenho que refazer"). Mas qual a real compensação? É
só um modo de vida?
Existe reconhecimento social? Às vezes, sim. (Serei cabotino e usarei situações por que passei como exemplos). Em parte do meu círculo social, causa uma sensação de, como direi, deslumbramento ao saber que eu faço doutorado. E nessas horas eu penso: "Não é nada demais!" (penso e tento
passar essa ideia). No Brasil, proporcionalmente não há tantas pessoas com pós-graduação. Em parte desse círculo também é motivo de certa admiração estudar em uma universidade pública de certo renome. Mesma coisa: "Não é bem assim!". Mas outras vezes, não, não há esse reconhecimento. Em parte (que pode até ser a mesma de outra) desse círculo, estudar não é exatamente algo útil, fazer ciência é coisa de quem não tem muito o que fazer: é uma brincadeira, um exercício de curiosidade. (E tento
desfazer essa ideia.)
Essa contradição existe também em mim. Afinal, qual a utilidade de se estudar a emissão de sons por moscas? Há um interesse teórico nisso. [Um dos pontos mais candentes da Biologia é uma questão velha: como surgem as espécies? Sim, o grande pano de fundo é a grande teoria do titio Chuck (Darwin, não o Norris). Mas há detalhes nisso. São diversos modelos que explicam diferentes situações. Porém há elementos ainda não totalmente claros: algum processo é mais comum? um processo que vale em um caso pode valer para outro?] Mas, convenhamos, a pesquisa que eu faço não sai de graça, e quem paga é o contribuinte (a bolsa pode não ser grande coisa, mas há gastos com materiais, energia, funcionários e infraestrutura....) - há uma satisfação a dar. Sim, o conhecimento em si - se é que irá gerar algum (ei, estou me
esforçando pra isso, sério) - é válido, porém há um retorno a se dar. Comentei de passagem essa questão
aqui.
No entanto, isso seria uma motivação
externa. O que os
outros esperam de mim e de minha pesquisa. Mas por que me sujeito a esse tipo de cobrança? Isto é, uma vez que estou dentro, isso faz parte do jogo. Porém, por que
estou jogando esse jogo? Poderia estar em outra - e não é apenas uma possibilidade genérica (eu poderia realmente estar em outra - eu
voltei para os braços da ciência - passei por aquela crise pós-defesa logo após o mestrado, saí e não estava mal).
Oquei, parte do retorno foi também por uma motivação externa: "quando você vai fazer o doutorado?", "vai mesmo continuar a trabalhar com eventos?" De qualquer modo, e acho que estou sendo honesto quando digo isto, a motivação interna pesou mais: vou dizer que é pelo desafio intelectual (como se não fosse necessário planejamento na organização e realização de eventos), porém é um de natureza diferente. Se eu disser a palavra especulativo (ué, e eu não acabei de dizer/escrever?) poderão me interpretar mal. Mas é um modo de se indagar a respeito do funcionamento do mundo - do que convencionamos a chamar de natureza - que é um tanto distinto das questões com que lidamos em uma empresa. Claro, há paralelos que se podem traçar na resolução de problemas nas duas situações. É perfeitamente possível se aplicar um pensamento científico para, p.e., solucionar a aglomeração de pessoas em um dado local que comprometa a circulação dos visitantes. (Sim, haverá sérias restrições quanto ao tamanho amostral disponível. Por isso teóricos da administração, como médicos-pesquisadores, trabalham tanto com estudos de caso e não com sistema de teste-controle com resultados submetidos à análise estatística.)
Se eu disser que era a vontade de lidar com "grandes questões", seja lá o que isso seja, não estarei mentindo, mas: pesquisar as diferenças de padrões de sons de moscas é uma grande questão? A rigor não é. No entanto, eu
sinto que há uma ligação mais imediata disso com o arcabouço teórico mais amplo por trás, do que entre a análise do sucesso de um evento pelo número de visitantes e respostas em formulários de satisfação e a teoria econômica.
Engraçado como nos dois casos tenho que desenvolver relatos do progresso do trabalho. E até demonstrá-lo numericamente. Embora, no segundo caso, jamais pudesse falar em nível de significância, teste de Tukey e coisas assim: era "o número de visitantes subiu 5% em relação ao ano passado", mesmo que isso, estatisticamente, não significasse nada. Não por enganação. Nunca. Mas simplesmente porque o que não significaria nada ao cliente é essa questão estatística. Já, se em meu relatório periódico de bolsista eu disser que a média da frequência fundamental do som da espécie 1 é 2,4 Hz maior do que a espécie 2 e pronto, o parecerista imediamente me questionaria se essa diferença tem algum significado estatístico e biológico - "é significativo?", "é", "mas então o que causa essa diferença? tamanho
maior menor da asa?", "talvez". (Claro que se o total de visitantes tivesse
caído, aí teríamos que buscar explicações, mas, de novo, pelo sistema heurístico - estaria sendo maldoso se dissesse agora "chutômetro".) Uma comparação que me vêm à mente é a diferença de linguagem entre o relatório do sumário executivo e a parte científica dos painéis do IPCC. No primeiro caso, há basicamente as explicitações das conclusões, quando muito uma argumentação resumida ligando A e B. No segundo caso, há toda a construção do argumento que resgata os antecedentes, os raciocínios intermediários são desenvolvidos e sustentados por uma pletora de dados e as conclusões são contrastadas com o que se sabia antes ou o que outras pesquisas encontraram.
Em um ambiente voltado ao ganho econômico - e não há censura nessa observação - toda essa argumentação são rodeios, coisas de desocupados. As coisas são (ou deveriam ser) pá-pum. Um "por outro lado", não que seja mal visto, mas não é bem vindo. De certo modo o oposto ocorre em um ambiente, digamos, acadêmico. E antes que os cientistas naturais torçam o nariz em desdém ao ambiente mercantil, é uma diferença simétrica a que muitos destes (os cientistas naturais) costumam achar do ambiente dos cientistas das humanas - "há volteios demais". Do ponto de vista acadêmico, porém, o que os empresários chamariam de eficiência comunicativa pode ser visto como debilidade interpretativa, ou, soltando os cachorros: preguiça intelectual.
Racionalmente não coaduno com a etiqueta da preguiça intelectual para os procedimentos empresariais, mas eu sentia falta do "mas". E, em parte, é isso também que mais me atrai à Biologia do que, digamos, à Química ou à Física. Em Biologia nunca podemos dizer "nunca" e sempre devemos evitar o "sempre". Em Física todos os elétrons são iguais, em Biologia nenhum indivíduo é igual, exceto os clones (e ainda temos que fazer a exceção da exceção - observando que mesmo clones podem apresentar diferenças entre si). Essa diversidade entre elementos que de outro modo são iguais - o que Mayr chamou de biopopulação (e eu acho que 'bio' é redundante - embora possamos ter populações não biológicas, seria mais o caso de criar um termo para estas) - é um "memento mori" constante alertando para as armadilhas das generalizações apressadas, das denegações precipitadas. E, se de um lado pede cautela em nossas afirmações e negativas, de outro, instiga-nos com um "decifra-me": bilhões e bilhões de pequenos mistérios (ei, sem conotações místicas, tá?) que tecem o quadro maior (ou seria melhor dizer "pintam"). É um tempero, a pimenta que nos diz "sou perigosa, estou queimando sua língua" (sei, pimentas não falam - ou pelo menos acredita-se que as pimentas de modo geral não falem) ao mesmo tempo em que sua ardência é exatamente o que almejamos para "colorir" o paladar de algo que, de outro modo, não teria tanta graça em mastigar. Não, seus pervertidos, não pensem em uma sessão sadomasô à luz de um microscópio. Pensem, antes, na teoria do humor (a da incongruência - há outras) que advoga que a essência do humor está no paradoxo, no jogo dos contrários. É por isso que, pra mim, a Ciência (em particular a Biologia) é divertida. É essa contradição que me motiva. Essa contradição que também existe dentro do mim.
Mas essa não é a história toda.
Upideite(12/fev/2012): Há uma subárea nova da psicologia dedicada à questão. Uma
reportagem de
Sabine Righetti publicada hoje na Folha Online aborda a questão.