Lives de Ciência

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segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Por que pesquiso? 7

O físico Marcelo Gleiser em sua coluna na Folha, em 2013:

"Por que fazer ciência? Esse é o mais importante deles, e o que requer mais cuidado. A primeira razão para se fazer ciência é ter uma paixão declarada pela natureza, um desejo insaciável de desbravar os mistérios do mundo natural. Essa visão, sem dúvida romântica, é essencial para muita gente: fazemos ciência porque nenhuma outra profissão nos permite dedicar a vida a entender como funciona o mundo e como nós humanos nos encaixamos no grande esquema cósmico. Mesmo que o que cada um pode contribuir seja, na maioria dos casos, pouco, é o fazer parte desse processo de busca que nos leva em frente.

Existe também o lado útil da ciência, ligado diretamente a aplicações tecnológicas, em que novos materiais e novas tecnologias são postos a serviço da criação de produtos e da melhoria da qualidade de vida das pessoas. Mas dado que a preparação para a carreira é longa --depois da graduação ainda tem a pós com bolsas bem baixas-- sem a paixão fica difícil ver a utilidade da ciência como a única motivação. No meu caso, digo que faço ciência porque não me consigo imaginar fazendo outra coisa que me faça tão feliz. Mesmo com todas as barreiras da profissão, considero um privilégio poder pensar sobre o mundo. E poder dividir com os outros o que vou aprendendo no caminho."

O biólogo Stevens Rehen, em seu blogue, em 2010:

"Uma pergunta que ouço com freqüência é 'por que decidiu ser cientista?' A resposta é... não sei! Acho que se herdasse a estatura de meu terceiro irmão continuaria arriscando no voleibol. Se tivesse a mesma habilidade percussiva do caçula, estaria na música. Cogitei também veterinária e jornalismo.

Não houve portanto um momento mágico em minha vida quando decidi pela ciência. É como no filme da campanha 'ciência vale a pena' do Instituto Ciência Hoje: 'todo ser humano é um cientista por natureza, é só continuar'. Acho que foi o que aconteceu comigo.

É fato que meus pais sempre defenderam a opção dos filhos por um ofício prazeroso, independente de qual fosse, e isso ajudou bastante em minha decisão.

[...]

Fazer ciência é um barato. Há dificuldades e dissabores, óbvio que sim, mas nada supera a satisfação de participar de uma descoberta científica."

terça-feira, 25 de maio de 2010

Por que pesquiso? 6

Mais um comentário de um leitor do GR e mais duas respostas de nobelistas.

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Felipe Beijamini do Sonhos do Neuro

"Tentando responder a pergunta do tópico, de modo sucinto:

Após a tão comentada crise 'pós mestrado' fui para o mercado de trabalho, vivi o suficiente da vida de professor, mas em momento algum consegui me desligar da academia, permaneci acompanhando os grupos de estudo, participando das discussões de resultados, lendo e bolando perguntas. Até que um dia bolei a pergunta, ao MEU ver, forte o suficiente para se transformar no meu projeto de doutorado.
Sendo assim, pesquiso para TENTAR responder perguntas."

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John C. Mather, Nobel de Física de 2006

"I don’t think I can answer any better than Jack Szostak!"

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Ada E. Yonath, Nobel de Química de 2009

"Questions 1 and 2 are general and I cannot provide any original/personal comments to them, unless I write a comprehensive article... The answer to question 3: I am a curious person, who wishes to understand the secrets of nature."
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terça-feira, 11 de maio de 2010

Por que pesquiso? 5

Perguntei a alguns nobelistas sobre as motivações pessoais para pesquisar e a importância das ciências. O primeiro a responder foi Jack W. Szostak (um dos vencedores do Nobel de Medicina de 2009):

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GR: What is science? [O que é ciência?]

JS: Science is the ongoing effort to learn more about how our world works, through continuous exploration and careful testing of our ideas. By our world I mean everything from the physical universe to ourselves. [A ciência é um esforço em curso para se aprender mais sobre como nosso mundo funciona, através da exploração contínua e testes cuidadosos de nossas ideias. Por nosso mundo quero dizer tudo: do universo físico a nós mesmos.]

GR: How and why is science important to people in general? [Como e por que a ciência é importante para as pessoas em geral?]

JS: There are many reasons, from the practical (medicine, technology) to the more fundamental, such as the development of a rational approach to understanding how we came to exist and how we should act and live. Science enables us to live without superstition, and teaches us to live in a thoughtful manner, questioning ideas that others may wish us to accept without thinking. [Há várias razões, das práticas (medicina, tecnologia) às mais fundamentais, como o desenvolvimento de uma abordagem racional para compreender como viemos a existir e como devemos agir e viver. A ciência nos permite viver sem superstições e nos ensina a viver de um modo pleno, questionando ideias que outros podem querer nos fazer aceitar sem questionamentos.]

GR: What is your personal motivation to do scientific research? [Qual sua motivação pessoal para fazer pesquisa científica?]

JS: Its a lot of fun trying to figure out how some aspect of nature works, and actually making a discovery and gaining a new understanding is very exciting. [É muito divertido imaginar como alguns aspectos da natureza funcionam e fazer uma descoberta de verdade chegando a um novo entendimento é muito excitante.]
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Fiquem à vontade para fazer comentários, incluindo reparos sobre meu "broken english".

domingo, 9 de maio de 2010

Por que pesquiso? 4

Mais dois comentários à minha postagem sobre o tema. Outros comentários aqui.

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Mauro
"Não é apenas a ciência que é contraditória, mas toda a natureza de maneira geral é contraditória. Vejo como esse sendo o 'motor' da curiosidade humana e realização da pesquisa."

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Mônica Lobo, do Comendo com os Olhos
"É, também sofri dessa crise pós-mestrado. Não por questionar se o que eu fazia tinha sentido/importância ou não. Pesquisar é algo que sempre quis fazer, desde criancinha (rsrs). Sou muito interessada em ciência de maneira geral. E não gosto de usar a palavra "curiosidade" por ciência porque sempre me dá a sensação de ser algo volúvel... Sou até fiel demais (quanta nerdice!).Trabalhei com pesquisa básica...

Sei bem dessa coisa de desmistificar a figura do pesquisador, embora não precise fazer isso com muita frequência porque a maioria dos meus amigos fazem pesquisa.

Só posso dizer que é algo que não vivo sem. Sou nutricionista e tentei trabalhar em empresa, consultório depois do mestrado, mas o comichão da pesquisa sempre aparecia. É um chamado irresistível. Eu fugia e para onde quer que eu fosse, acabava voltando pra pesquisa.

Hoje faço doutorado fora da área que trabalhei no mestrado e estou feliz. Não era pesquisar que estava errado, era o tipo de pesquisa que eu tinha escolhido.

Seja lá porque for que trabalhamos com ciência, deve ser culpa de alguma mutação genética ou algo do tipo. rsrsrsrs"

Upideite(10/mai/2010): Mônica Lobo faz um acréscimo nos comentários:
"Aproveito pra acrescentar aqui um comentário meu no Ciência na mídia, num texto em que se pergunta: qual a importância da ciência? Acho que tem a ver com o questionamento: Por que pesquiso?

Nem saberia dizer ao certo em termos de definições. Só sei que desde pequena queria saber o que havia de misterioso contido em tudo que existe. São os fenômenos que observamos e que nos seduzem a querer devendar seus ingredientes para talvez reproduzi-los ou mesmo compreende-los. Acredito que o entedimento do que nos é externo ou mesmo interno, daquilo que não nos parece claro, é um impulso de interagir com a natureza da qual fazemos parte, assim, nos sentimos racionalmente incluídos. Mais, nos sentimos acolhidos e munidos de ferramentas para nos proteger de tudo que nos amedontra. Porque o que nos cerca e mesmo o que somos, nos fascina e apavora também. Acaba sendo a ciência a busca da ciência de si mesmo enquanto resultado da natureza e modificador dela."
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sábado, 8 de maio de 2010

Por que pesquiso? - 3

Physics is like sex: Sure, it may give some practical results but that’s not why we do it.
Richard Feynman

Há algum tempo provoquei o pessoal do ScienceBlogs Brasil via formspring:

Como ordenariam? - "Fazer ciência é": "produzir conhecimento", "ajudar os outros", "divertido", "um modo de ganhar dinheiro". (Não vale citar Feynman sobre sexo e bebês.)

Responderam de um modo bem-humorado:
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O que o cientista acha:
1- "divertido"
2- "produzir conhecimento"
3- "ajudar os outros"
4- "um modo de ganhar dinheiro"

O que o cientista diz para as pessoas:
1- "produzir conhecimento"
2- "ajudar os outros"
3- "um modo de ganhar dinheiro"
4- "divertido"

O que o cientista escreve nos projetos:
1- "ajudar os outros"
2- "produzir conhecimento"
3- "um modo de ganhar dinheiro"
4- "divertido"

O que a população acha:
1- "ajudar os outros"
2- "um modo de ganhar dinheiro"
3- "produzir conhecimento"
4- "divertido"
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quinta-feira, 6 de maio de 2010

Por que pesquiso? - 2

Minhas perguntas algo confusas sobre as motivações pessoais a se fazer ciência levantaram algumas respostas muito interessantes nos comentários. Subo-as aqui.

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Fernando 'Joey Salgado' Bartoloni, do Joey Salgado, mas bem temperado
"Bom, mesmo tendo em vista que seu texto aborda a questão de forma retórica, não posso deixar de compartilhar minha motivação para entrar na pós-graduação: sinto-me bem fazendo pesquisa.

E na verdade, acho que me sentiria bem fazendo pesquisa em diversas áreas diferentes, até mesmo fora da Química, como também acho que trabalharia numa boa fora da Academia. Acredito que o único pré-requisito para me interessar por uma função seria a necessidade de pensar. Se tem que pensar, deve ser legal, seja como cientista ou piloto de testes de palavras-cruzadas.

Pensando bem, o fato de eu ter parado na pós-graduação tem muito a ver com uma vontade incrível de fazer alguma coisa que poucas pessoas consigam entender. Nem mesmo eu.

Acho que é isso...

Abraço!"

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Juliana Galaschi, do A Vergonha das Princesas
"'...pesquisar as diferenças de padrões de sons de moscas é uma grande questão?'

Bom, sou suspeita para responder a esse tipo de pergunta. É como pensar se elaborar uma hipótese evolutiva sobre um gênero de cigarrinhas é uma grande questão.

É um pedaço de quebra-cabeças. Perceber que resolver partes do quebra-cabeça colaboram para resolver (ou ao menos ter a intenção de resolver)a grande questão é o que torna a pesquisa tão gratificante.

Pensar em como escolhi a biologia, e especificamente a área acadêmica é um tanto curioso. Talvez porque tenha decidido na infância, meus motivos eram (e ainda são) pueris: eu queria saber como a vida funciona. Claro que o fato de ter sido criada em uma família de professores influenciou muito.

Enfim, acredito que tenha acabado parando na pesquisa por um egoísmo saudável, por essa satisfação pessoal de saciar a curiosidade de 'como a vida funciona'. Tô quase ficando louca, mas não me imagino fazendo outra coisa."
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Carlos Hotta, do Brotossauros em Meu Jardim, também escreveu um texto a respeito de sua paixão (vício) pela pesquisa científica.

Mais alguém gostaria de trazer suas reflexões para compartilhar?

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Por que pesquiso?

O que leva uma pessoa a se embrenhar no mundo das ciências? Certo, a pergunta não é original. E eu não tenho uma resposta e talvez nem haja ou haja uma infinidade: cada pessoa tem suas razões que a motivam a tomar um caminho e não outro - e por vezes essas razões são obscuras até para si.

Ingressar em cursos de graduação de áreas científicas pode se dever à influência de um professor no ensino médio, a programas de televisão, aos pais (para seguir-lhes a carreira ou simplesmente irritá-los fazendo algo contrário ao desejo deles) ou talvez porque a concorrência para aquele curso era menor do que para o de medicina, engenharia ou direito. Mas, e depois? E quem continua o caminho da pós-graduação, do pós-doutorado, tenta uma vaga em alguma universidade de pesquisa? Pode ser por ter gostado mesmo do curso - ou então por tê-lo detestado e se debandado para uma área totalmente distinta -, influência de um outro professor (estou usado o masculino como genérico - naturalmente inclui as professoras), ter deixado o "piloto-automático" ligado (não é raro uma crise pós-defesa - logo depois do mestrado, quando se pensa: "e agora?", "é isso que quero para minha vida?"). Pode ser até por causa das bolsas - não são grandes coisas, mas só ver as filas que fazem para concursos públicos que pagam muito menos (aquela história de doutores no concurso para gari).

Há o lado desgastante da rotina do laboratório - como em qualquer outro trabalho. Às vezes há problemas de relacionamento - como em qualquer trabalho. Problemas pessoais que interferem no projeto e problemas de projeto que intereferem na vida pessoal ("ih! mau aê, galera, meu experimento micou e não vou poder ir na balada, tenho que refazer"). Mas qual a real compensação? É um modo de vida?

Existe reconhecimento social? Às vezes, sim. (Serei cabotino e usarei situações por que passei como exemplos). Em parte do meu círculo social, causa uma sensação de, como direi, deslumbramento ao saber que eu faço doutorado. E nessas horas eu penso: "Não é nada demais!" (penso e tento passar essa ideia). No Brasil, proporcionalmente não há tantas pessoas com pós-graduação. Em parte desse círculo também é motivo de certa admiração estudar em uma universidade pública de certo renome. Mesma coisa: "Não é bem assim!". Mas outras vezes, não, não há esse reconhecimento. Em parte (que pode até ser a mesma de outra) desse círculo, estudar não é exatamente algo útil, fazer ciência é coisa de quem não tem muito o que fazer: é uma brincadeira, um exercício de curiosidade. (E tento desfazer essa ideia.)

Essa contradição existe também em mim. Afinal, qual a utilidade de se estudar a emissão de sons por moscas? Há um interesse teórico nisso. [Um dos pontos mais candentes da Biologia é uma questão velha: como surgem as espécies? Sim, o grande pano de fundo é a grande teoria do titio Chuck (Darwin, não o Norris). Mas há detalhes nisso. São diversos modelos que explicam diferentes situações. Porém há elementos ainda não totalmente claros: algum processo é mais comum? um processo que vale em um caso pode valer para outro?] Mas, convenhamos, a pesquisa que eu faço não sai de graça, e quem paga é o contribuinte (a bolsa pode não ser grande coisa, mas há gastos com materiais, energia, funcionários e infraestrutura....) - há uma satisfação a dar. Sim, o conhecimento em si - se é que irá gerar algum (ei, estou me esforçando pra isso, sério) - é válido, porém há um retorno a se dar. Comentei de passagem essa questão aqui.

No entanto, isso seria uma motivação externa. O que os outros esperam de mim e de minha pesquisa. Mas por que me sujeito a esse tipo de cobrança? Isto é, uma vez que estou dentro, isso faz parte do jogo. Porém, por que estou jogando esse jogo? Poderia estar em outra - e não é apenas uma possibilidade genérica (eu poderia realmente estar em outra - eu voltei para os braços da ciência - passei por aquela crise pós-defesa logo após o mestrado, saí e não estava mal).

Oquei, parte do retorno foi também por uma motivação externa: "quando você vai fazer o doutorado?", "vai mesmo continuar a trabalhar com eventos?" De qualquer modo, e acho que estou sendo honesto quando digo isto, a motivação interna pesou mais: vou dizer que é pelo desafio intelectual (como se não fosse necessário planejamento na organização e realização de eventos), porém é um de natureza diferente. Se eu disser a palavra especulativo (ué, e eu não acabei de dizer/escrever?) poderão me interpretar mal. Mas é um modo de se indagar a respeito do funcionamento do mundo - do que convencionamos a chamar de natureza - que é um tanto distinto das questões com que lidamos em uma empresa. Claro, há paralelos que se podem traçar na resolução de problemas nas duas situações. É perfeitamente possível se aplicar um pensamento científico para, p.e., solucionar a aglomeração de pessoas em um dado local que comprometa a circulação dos visitantes. (Sim, haverá sérias restrições quanto ao tamanho amostral disponível. Por isso teóricos da administração, como médicos-pesquisadores, trabalham tanto com estudos de caso e não com sistema de teste-controle com resultados submetidos à análise estatística.)

Se eu disser que era a vontade de lidar com "grandes questões", seja lá o que isso seja, não estarei mentindo, mas: pesquisar as diferenças de padrões de sons de moscas é uma grande questão? A rigor não é. No entanto, eu sinto que há uma ligação mais imediata disso com o arcabouço teórico mais amplo por trás, do que entre a análise do sucesso de um evento pelo número de visitantes e respostas em formulários de satisfação e a teoria econômica.

Engraçado como nos dois casos tenho que desenvolver relatos do progresso do trabalho. E até demonstrá-lo numericamente. Embora, no segundo caso, jamais pudesse falar em nível de significância, teste de Tukey e coisas assim: era "o número de visitantes subiu 5% em relação ao ano passado", mesmo que isso, estatisticamente, não significasse nada. Não por enganação. Nunca. Mas simplesmente porque o que não significaria nada ao cliente é essa questão estatística. Já, se em meu relatório periódico de bolsista eu disser que a média da frequência fundamental do som da espécie 1 é 2,4 Hz maior do que a espécie 2 e pronto, o parecerista imediamente me questionaria se essa diferença tem algum significado estatístico e biológico - "é significativo?", "é", "mas então o que causa essa diferença? tamanho maior menor da asa?", "talvez". (Claro que se o total de visitantes tivesse caído, aí teríamos que buscar explicações, mas, de novo, pelo sistema heurístico - estaria sendo maldoso se dissesse agora "chutômetro".) Uma comparação que me vêm à mente é a diferença de linguagem entre o relatório do sumário executivo e a parte científica dos painéis do IPCC. No primeiro caso, há basicamente as explicitações das conclusões, quando muito uma argumentação resumida ligando A e B. No segundo caso, há toda a construção do argumento que resgata os antecedentes, os raciocínios intermediários são desenvolvidos e sustentados por uma pletora de dados e as conclusões são contrastadas com o que se sabia antes ou o que outras pesquisas encontraram.

Em um ambiente voltado ao ganho econômico - e não há censura nessa observação - toda essa argumentação são rodeios, coisas de desocupados. As coisas são (ou deveriam ser) pá-pum. Um "por outro lado", não que seja mal visto, mas não é bem vindo. De certo modo o oposto ocorre em um ambiente, digamos, acadêmico. E antes que os cientistas naturais torçam o nariz em desdém ao ambiente mercantil, é uma diferença simétrica a que muitos destes (os cientistas naturais) costumam achar do ambiente dos cientistas das humanas - "há volteios demais". Do ponto de vista acadêmico, porém, o que os empresários chamariam de eficiência comunicativa pode ser visto como debilidade interpretativa, ou, soltando os cachorros: preguiça intelectual.

Racionalmente não coaduno com a etiqueta da preguiça intelectual para os procedimentos empresariais, mas eu sentia falta do "mas". E, em parte, é isso também que mais me atrai à Biologia do que, digamos, à Química ou à Física. Em Biologia nunca podemos dizer "nunca" e sempre devemos evitar o "sempre". Em Física todos os elétrons são iguais, em Biologia nenhum indivíduo é igual, exceto os clones (e ainda temos que fazer a exceção da exceção - observando que mesmo clones podem apresentar diferenças entre si). Essa diversidade entre elementos que de outro modo são iguais - o que Mayr chamou de biopopulação (e eu acho que 'bio' é redundante - embora possamos ter populações não biológicas, seria mais o caso de criar um termo para estas) - é um "memento mori" constante alertando para as armadilhas das generalizações apressadas, das denegações precipitadas. E, se de um lado pede cautela em nossas afirmações e negativas, de outro, instiga-nos com um "decifra-me": bilhões e bilhões de pequenos mistérios (ei, sem conotações místicas, tá?) que tecem o quadro maior (ou seria melhor dizer "pintam"). É um tempero, a pimenta que nos diz "sou perigosa, estou queimando sua língua" (sei, pimentas não falam - ou pelo menos acredita-se que as pimentas de modo geral não falem) ao mesmo tempo em que sua ardência é exatamente o que almejamos para "colorir" o paladar de algo que, de outro modo, não teria tanta graça em mastigar. Não, seus pervertidos, não pensem em uma sessão sadomasô à luz de um microscópio. Pensem, antes, na teoria do humor (a da incongruência - há outras) que advoga que a essência do humor está no paradoxo, no jogo dos contrários. É por isso que, pra mim, a Ciência (em particular a Biologia) é divertida. É essa contradição que me motiva. Essa contradição que também existe dentro do mim.

Mas essa não é a história toda.

Upideite(12/fev/2012): Há uma subárea nova da psicologia dedicada à questão. Uma reportagem de Sabine Righetti publicada hoje na Folha Online aborda a questão.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Uma história de João

O euclipo começou já na sexta. Eu, porém, tinha coleta (saída a campo para obtenção de material a ser estudado em laboratório) para fazer, de modo que só cheguei a Arraial do Cabo no sábado. Um bate e volta de São Paulo até Ubatuba, passando pelas cidades do litoral norte do estado (mas sem poder apreciar a paisagem... trabalho). Das sete da matina na USP, saindo às sete e meia, estrada toda vida, voltando às seis e meia da tarde à sampa, mais uma hora até a USP pelas marginais (engarrafadas, claro), descarregar o material. Oito e tanto da noite na pensão, ducha rápida para readquirir um pouco de humanidade (em que condições deploráveis ficamos nessas viagens), dez para as dez na rodoviária do Tietê. Ônibus das 22h45 para o Rio. 5h00 da matina no terminal Novo Rio. 5h15 partindo para Arraial do Cabo. Chegando lá finalmente às 8h30 da manhã de sábado. Fui estropiado ao evento (barba de oito dias...).

Mas quero falar um pouco da coleta. De um episódio dela.
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Seu João (nome fictício) saiu do fundo de sua casa para ver quem acabava de adentrar sua propriedade.

Meu colega se apresentou: "Somos da USP, a gente está procurando por bichinhos que dão na goiaba e nos frutos..."

- Eu me lembro de vocês, respondeu João.

De fato estivéramos ali ao fim do ano passado. Seu pequeno terreno fica em São Luís (ou Luiz) do Paraitinga, na região do Vale do Paraíba, SP, à beira da estrada. Como da primeira vez, em que ainda éramos estranhos desconhecidos, recebeu-nos com toda a cortesia. Rapidamente guiou-nos por seu pomar, ajudando-nos a recolher aqui e ali uns poucos frutos caídos a apodrecer. Não havia muitos - apenas dois caixotes (bandejas) -, mas uma certa surpresa que ainda houvesse laranjas na época.

Enquanto nos contava, todo orgulhoso, de seus cinco (acho que eram cinco) filhos - todos feitos e encaminhados na vida (um que é gerente em uma empresa, uma que é coordenadora de escola, outro que é dono de padaria...) -, começou a retirar laranjas do próprio pé.

- Mas, seu João, a gente quer só os frutos estragados, disse eu. (Pois é, há esse lado pouco glamoroso na vida de pesquisadores: botar a mão na massa, enfiar o pé na lama, catar frutos apodrecidos cheios de larvas de moscas...)

- É pra vocês levaram para casa.

Meio constrangidos - embora da outra vez também seu João fizesse questão de que levássemos para provar o, literalmente, fruto de seu trabalho - pegamos uma bandeja. Rapidamente ela ficou cheia e depois uma segunda.

- Seu João, muito obrigado!

- Calma que tem mais.

- Mas seu João, não queremos dar prejuízo para o senhor... falamos.

- Que prejuízo? Eu acabei de doar cinco sacas para uma creche da cidade.

E, quase tão orgulhoso quanto dos filhos, apresenta-nos o pomar. Já o víramos na vez anterior, mas as pequenas mudas agoram eram vigorosas e carregadas arvoretas. Vindo do mato-grosso, trabalhou a vida inteira em São Paulo como ajudante e depois pedreiro e mestre-de-obras. Com a lida e os ganhos honestos criou os filhos. Agora aposentado, fugindo do agito da cidade grande, estabeleceu-se no interior. Cidadezinha com seus pouco mais de 10 mil habitantes, pacata no mais das vezes. Só no carnaval, no famoso carnaval de rua de S. Luís do Paraitinga, que os turistas chegam às pencas a ponto de tornar a fuzarca um tanto insuportável aos locais - preferem alugar suas casas e sair enquanto duram as festas. (Infelizmente, no último carnaval, os foliões forasteiros andaram a quebrar os bens. Há dúvida sobre se vale a pena tudo isso.) Tenta convencer os filhos a irem para lá. Mas todos têm suas próprias vidas e parecem preferir o dinamismo da cidade grande. A alegria maior de João é quando eles o visitam com seus netinhos.

A casa dos fundos da propriedade, construído por ele mesmo, muito maior do que as necessidades de um homem solitário, é para receber a comitiva familiar.

No resto do tempo dedica-se ao seu cultivo - principalmente laranja, de todo tipo: pera, pera Rio, lima, uma que se parece com uma toranja no interior (arroxeado), mas menor... Pretende ainda plantar caqui. Ladeando as duas parcelas de laranjeiras, mudas de araucária - daqui a alguns anos, João planeja ter uma boa produção garantida de pinhões. Rodeando o terreno pelo lado mais alto, pinheiros que impede que o gado do terreno ao lado invadam a cerca e tentem pastar de sua plantação. Pelo lado da rodovia, mais abaixo, cerca viva de Hibiscus em plena floração. Com seu jeito pacato, cordato, João explica como capinou todo o terreno, à mão, sozinho. Cavou cada cova, curtiu serragem com esterco para preencher as covas e só depois de 30 dias para completar o processo é que plantou as mudas. Pela quantidade de laranjas que temos à mão - a essa altura já íamos pela quarta bandeja - toda a trabalheira valeu a pena.

- O senhor aluga colmeias para polinizar as laranjeiras? pergunto.

- Ah! Tem uma colmeia ali para cima, em um cupinzeiro. Já me picaram. Pensei em chamar os bombeiros para tirar, mas pensando melhor, elas ajudam aqui a produzir os frutos. Então, não tem problema me picarem de vez em quando. Dói bastante, mas não fico todo inchado, não.

Quase que como se tivesse entreouvido nosso diálogo, uma abelha abelhuda se intromete e adeja perto de meu rosto. Fico ligeiramente apreensivo, no entanto, ela logo se cansa e vai embora.

Apanhando mais frutos, seu João explica o sistema de irrigação que desenvolveu, de modo que a água não se perca escorrendo terreno abaixo - ele tem uma inclinação razoável (e o jardim e o pomar de seu João ajudam a estabilizar). Ela corre pelos canais e vai a todas as covas, que não foram enchidas de terra até o topo, de modo que cada uma retém a água para as plantas. Há ainda sulcos que impedem que a água da chuva também escoe diretamente para a rodovia. Retém a umidade no solo e diminui o escoamento superficial. Isso (o escoamento) seria terrível para seu João, toda a camada superficial do solo acabaria sobre a pista de rodagem.

Tudo isso aprendeu e aprende aqui e ali, em conversas com amigos e técnicos. Prudente, testa cada sugestão antes de aplicar em toda a cultura. Comento que os produtores de laranja aplicam ácido giberélico nos frutos de modo que sua casca permaneça verde, mas continue a amadurecer por dentro - evitando a infestação por moscas-das-frutas e obtendo uma produção mais valorizada (com um maior teor de Brix, o preço a ser pago pela indústria de sucos é maior). João acha interessante, toma nota mental. Vai procurar saber mais sobre isso e deixa escapar uma observação:

- Ah! Por isso que a laranja deles é diferente...

Estamos - sujeitos da cidade grande - com certa pressa para voltar. Pegaremos São Paulo bem na hora do rush, no anoitecer de sexta-feira...

Voltamos à sampa com cinco bandejas repletas da melhor laranja. Mas o melhor mesmo que levamos é a boa conversa de seu João.

Pé na lama, mão na massa, frutos podres... e gente de primeiríssima - sem glamor, mas quem precisa? Como é bom ser pesquisador e poder encontrar com pessoas como seu João. Tomara que a gente consiga - um dia (eu sei, distante) - controlar as moscas-das-frutas nos cultivos, especialmente dos pequenos produtores, que mais sofrem com essas perdas.
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Nota: os diálogos são reconstituídos a partir da memória, procuram ser fiéis aos acontecimentos, mas não são transcrições literais do que foi dito.

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