A lenga lenga é que, na Índia, os casos de poliomielite induzidos pela vacina Sabin seriam em maior número do que os casos de pólio de ocorrência natural (por linhagens selvagens). É bem possível que isso seja verdade, mas e daí? E daí nada. A questão é menos a relação entre casos de pólio induzidos e casos naturais em situação de vacina por si mesma do que em comparação entre o número de casos de pólio em situação de cobertura vacinal adequada contra o número de casos de pólio em situação de cobertura vacinal inadequada ou inexistente.
Casos de indução de poliomielite por vacina Sabin ocorrem - por usar vírus atenuados e não desativados -, mas são raríssimos: da ordem de 1 caso a cada milhão de pessoas vacinadas. Se 30 milh
Reproduzo abaixo um texto que publiquei em 2001 no Observatório da Imprensa (infelizmente é outro texto que se perdeu nas mudanças do sítio web do OI, mas este ainda é encontrável no Internet Archive) a respeito de um texto antivacinista publicado na Superinteressante (a revista se retratou recentemente de abrigar a tese de que a Aids não seria causada pelo HIV; poderia aproveitar e fazer um mea culpa também por dar corda à turma contra as vacinas).
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SUPERINTERESSANTE
A volta do velho bacilo
Roberto Takata (*)
A propósito do artigo do médico José Antonio Palhano neste O. I., sobre problemas epidemiológicos [1], há outro produto – a santa paciência – que, devido aos usos e abusos, tem perdido a eficácia contra um outro grande agente infeccioso de alta periculosidade a dar as caras por aí: o bacilo da irresponsabilidade.
Mais uma vez a Superinteressante presta um desserviço a seus leitores. Em matéria de capa da última edição (fevereiro de 2001), a revista apresenta de modo leviano acusações levantadas contra a validade da vacinação [2]. Em outra ocasião, a revista já havia apresentado em seção dedicada a assuntos supostamente polêmicos espaço para argumentações semelhantes [3a-c].
A reportagem é um desserviço na medida em que comete erros crassos, desinformando o leitor em vez de esclarecê-lo. Os erros são muitos, enumero alguns mais evidentes (todos interrelacionados):
* Ausência de senso crítico
A reportagem procura dar uma demonstração de "imparcialidade". Faz suspensão de juízo. Ora, suspende-se o juízo quando não há indícios claros suficientes para se apoiar um lado em detrimento de outro – não é certamente o caso.
* Uso de referências inadequadas
A certa altura da reportagem, o repórter faz menção a Fritjof Capra, autor entre outros de "O tao da física" e "O ponto de mutação" (esta última, a obra citada na matéria), livros que deturpam conhecimentos científicos para que se encaixem na visão mística do autor [4]. Passagem do livro de Capra é utilizada como suporte de argumentação da própria reportagem.
No livro "O ponto de mutação", no qual discute, entre outros temas, o atual modelo médico, o físico americano Fritjof Capra afirma que, mais tarde, Pasteur reconheceu a importância do "terreno" [i.e., do corpo] para as enfermidades, tendo ressaltado a influência dos fatores ambientais e dos estados mentais na resistência às infecções. O químico, porém, segundo Capra, não teve tempo para empreender novas pesquisas, e seus seguidores persistiram na trilha original.'
* Ausência de apuração dos fatos e informações
É dado espaço para que os antivacinistas dêem seus argumentos sem qualquer verificação posterior de validade ou não. Um deles diz que 95% dos casos de sarampo nos EUA teriam sido eliminados entre o início e os meados do século passado, antes da adoção da vacinação contra a doença, simplesmente em função das melhorias sanitárias e alimentares. Uma rápida pesquisa mostra que isso é uma mentira que não foi contestada na reportagem, embora já tenha sido refutada alhures [5a,b]. E mais: na versão impressa essa informação recebeu destaque, sem identificação, adquirindo status de informação bem-estabelecida:
"'As mortes por sarampo caíram 95% antes da criação da vacina."
* Mistura de contestações válidas com acusações sem base
A reportagem não distingue preocupações procedentes (como a contaminação esporádica das vacinas, o que deveria levar à exigência de uma fiscalização mais severa dos fornecedores dos produtos) de discussões em andamento – ocorrência, caracterização e causa do chamado "Mal do Golfo" (também denominado "Síndrome do Golfo"; recentemente, tem-se atribuído o mal até a munições de urânio empobrecido) –, ou de especulações sem base alguma (a de que o HIV seria um vírus da poliomielite mutante utilizado em vacinações no Congo em meados do século passado); e das mentiras deslavadas (as estatísticas sobre o sarampo apresentadas). Essa colagem mal-engendrada acaba emprestando de preocupações legítimas ares de validade aos livres desvarios.
* Adoção de teorias conspiratórias
As frases seguintes são afirmações do próprio autor da reportagem:
"Ressalvas às imunizações são tema tabu na maioria dos círculos médicos. De um lado, não são raros os casos de pediatras que, de forma quase clandestina, aconselham pais a moderar a vacinação dos filhos ou a simplesmente evitá-la. De outro, as divergências com o pensamento médico hegemônico, que manda vacinar a qualquer custo, acontecem sempre de forma discreta e subterrânea."
"Em quase todos os casos, os círculos oficiais da ciência, os governos e os técnicos em saúde pública optaram por desconhecer a polêmica, no pressuposto de que o atual modelo de imunização é inquestionável."
* Tendenciosidade injustificada
Este último item – haveria muitos mais possíveis – pode ser visto como fruto da confluência dos cinco itens anteriores. Na parte das leituras recomendadas ao leitor para se aprofundar mais no tema aparecem apenas livros e sítios web que são francamente contrários à vacinação, quebrando a suposta imparcialidade da reportagem. Poder-se-ia justificar a indicação apenas de fontes de visão contrária se os leitores estivessem totalmente a par da visão corrente. Mas certamente não é o caso do público-leigo brasileiro e leitor da revista. Além disso, os destaques estão quase todos fora de contexto, distorcendo-os contra a vacinação.
"O Brasil utiliza vacinas e substâncias proibidas nos Estados Unidos"
Meia-verdade, ou nem isso. Não informam que a decisão sobre a substituição da vacina Sabin pela Salk se deu justamente porque garantiu-se uma baixa incidência de poliomielite na população americana, de forma que uma vacina menos eficaz, mas com menos riscos (o risco nos dois casos é proporcionalmente pequeno – um caso de paralisia a cada 2,4 milhões de doses aplicadas ou um caso a cada 750 mil crianças que recebem a primeira dose, no caso de vacinas do tipo Sabin; com vírus atenuado [6]) passa a ser mais vantajosa. É quase o equivalente a alarmar-se porque no Brasil aplica-se vacina contra febre amarela e nos EUA não. Não tem nada a ver com proibição. Sobre o Timerosal, aparentemente, também não houve nenhuma proibição, mas uma recomendação para a eliminação do produto [7a,b]. No Congresso americano houve discussão sobre o tema, mas não há nada no sítio indicando a conclusão pela proibição [8].
"Vacinar é adoecer, só que brandamente, sob controle médico."
Meia-verdade. Citação fora de contexto, como se percebe no corpo da reportagem. A afirmação é de um pró-vacinação, e não é um reconhecimento da ineficácia da vacina em nenhum sentido. A descontextualização leva a uma distorção que permite erros de interpretações.
"No Iraque, os soldados americanos tomaram 17 vacinas. Metade adoeceu"
Falácia de falsa implicação de causalidade. "Depois disso, então por causa disso" é o que se sugere nessa frase destacada. É tão descaradamente falaciosa que, caso fosse válida essa inferência, sua contrapartida também teria que ser verdadeira: "No Iraque, os soldados americanos tomaram 17 vacinas. Metade não adoeceu." Adoeceram por causa das vacinas? E se não tivessem tomado as vacinas? É preciso haver parâmetros de comparação para saber se esse número significa alguma coisa em relação a uma variável – no caso, as vacinas. Não há nada, até o momento, que indique claramente essa conexão causal [9a-i]. Eventualmente, pode ser que estabeleçam essa conexão, mas isso não desmentirá os dados de que os programas de vacinação em massa são eficazes e, embora possam ser melhorados, certamente são muito melhores do que a alternativa de abandoná-los.
"As mortes por sarampo caíram 95% antes da criação da vacina."
Isso, como dito acima, é uma mentira deslavada, que foi aceita sem contestação ou questionamento.
É sintomático também que os dados numéricos citados ao longo da reportagem refiram-se praticamente apenas aos utilizados e manipulados pelos contrários à vacinação. E o único número apresentado nas falas dos pró-vacinação é:
"Aguinaldo e Cláudio admitem que não existem vacinas 100% seguras."
Como dito, não é a primeira vez que a SI comete esse atentado à saúde da população, desinformando-a a respeito de um assunto de grande seriedade. Em relação à Aids e ao HIV também foram cometidos os mesmos equívocos. Ela já apresentou a tese de que Aids não seria causada por HIV – tese que considera tão consistente como a de que a causa seria virótica, desconsiderando a montanha de indícios favoráveis à última hipótese em detrimento da primeira [10].
Isso tudo faz lembrar a piada da campanha pelo banimento do monóxido de hidrogênio, também chamado de hidróxido de hidrogênio ou ácido hidroxílico. Uma substância causadora de freqüentes mortes por asfixia, lesões ao contato com a forma gasosa e sólida, sendo o principal componente da chuva ácida, causando corrosão de construções e estruturas de ferro. Apesar de tudo isso, o governo não impede que as indústrias lancem essa substância em nossos rios e no ar. A danada que faz tudo isso tem singela fórmula: H2O – a água, que causa afogamentos, queimaduras na forma de vapor e lesões na forma de gelo, obviamente é o principal componente das chuvas (ácidas ou não), que por sua vez causam paulatina degradação dos edifícios e enferruja metais. [11a,b]
Na carta do editor dessa edição, a revista volta a se gabar dos números de exemplares vendidos: "A capa de dezembro, 'Aids: o HIV é inocente?", vendeu 106.000 exemplares em banca. É a primeira vez na história da revista que essa venda rompe a barreira dos seis dígitos. O que permite à Super ingressar num clube bastante seleto, do qual fazem parte apenas uma dúzia de publicações no Brasil", "[...] A capa de janeiro, "O fim do câncer?", tem números preliminares que apontam para uma venda também superior a 100.000 exemplares". Gostaria de acreditar que a ética jornalista, a busca da informação acurada e o compromisso com o leitor ainda tenham espaço frente a uma análise puramente financeira, a busca do lucro fácil e o pouco caso com a qualidade do que se veicula. Mas isso me parece cada vez mais tão real quanto o duende que a Xuxa viu. Ou outras amenidades que a mídia cobre.
(*) Mestrando em Biologia no Instituto de Biociências da USP
Leia também
Rifampicina, usos e abusos – José Antonio Palhano
Grave risco de contágio – J.A.P.
Espírito de porco – Roberto Takata
Referências
1) Rifampicina, usos e abusos
2) Vacinas fazem bem ou mal?
3a) Fernando Travi – Vacina assassina, Superinteressante, pag. 114, Out/2000.
3b) Sociedade Biogênica Brasileira –
3c) Grave risco de contágio
4) Quantum Quackery
5a) Six Common Misconceptions about Vaccinations
5b) Misconceptions about Immunization
6) Poliomyelitis Prevention in the United States
7a) Questions and Answers about Thimerosal
7b) Center for Biologics Evaluation and Research Letter – Dear Vaccine Manufacturer
8) Committee on Government Reform
9a) Gulf War Syndrome
9b) Everson MP, Shi K, Aldrige P, Bartolucci AA, Blackburn WD 2000 – Is there immune dysregulation in symptomatic Gulf War veterans? ZEITSCHRIFT FUR RHEUMATOLOGIE 59: 124-26, Suppl. 2.
9c) Steele L 2000 – Prevalence and patterns of Gulf War illness in Kansas veterans: Association of symptoms with characteristics of person, place, and time of military service. AMERICAN JOURNAL OF EPIDEMIOLOGY 152: (10) 992-1002.
9d) Hotopf M, David A, Hull L, Ismail K, Unwin C, Wessely S 2000 – Role of vaccinations as risk factors for ill health in veterans of the Gulf war: cross sectional study. BRITISH MEDICAL JOURNAL 320: (7246) 1363-7.
9d) Turnbull PCB 2000 – Current status of immunization against anthrax: old vaccines may be here to stay for a while. CURRENT OPINION IN INFECTIOUS DISEASES 13: (2) 113-20.
9e) Fiedler N, Lange G, Tiersky L, DeLuca J, Policastro T, Kelly-McNeil K, McWilliams R, Korn L, Natelson B 2000 – Stressors, personality traits, and coping of Gulf War veterans with chronic fatigue. JOURNAL OF PSYCHOSOMATIC RESEARCH 48: (6) 525-35.
9f) Sartin JS 2000 – Gulf War illnesses: Causes and controversies. MAYO CLINIC PROCEEDINGS 75: (8) 811-9.
9g) Knoke JD, Smith TC, Gray GC, Kaiser KS, Hawksworth AW 2000 – Factor analysis of self-reported symptoms: Does it identify a Gulf War syndrome? AMERICAN JOURNAL OF EPIDEMIOLOGY 152: (4) 379-88.
9h) Jamal GA 1998 – Gulf War Syndrome – a model for the complexity of biological and environmental interaction with human health. ADVERSE DRUG REACTIONS AND TOXICOLOGICAL REVIEWS17: (1) 1-17.
9i) Ronald MG, Blanck R, Hiatt J, Hyams KC, Kang H, Mather S, Murphy F, Roswell R, Thacker SB 1995 – Unexplained illnesses among Desert-storm veterans – a search for causes, treatment, and cooperation. ARCHIVES OF INTERNAL MEDICINE 155: (3) 262-8.
10) Espirito de Porco
11a) Banir o monóxido de dihidrogênio
11b) The Invisible Killer
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As mesmas críticas gerais podem ser feitas ao texto publicado no blogue do Nassif.
Upideite(02.nov.2021): Vitória! Tardia e temporária, mas vitória mesmo assim (não minha, obviamente, mas de todos os que criticaram e trabalharam pela correção): o site da Super finalmente eliminou (ao menos enquanto durar a pandemia de covid-19) de seu acervo a edição com essa reportagem que atenta contra a saúde pública, informa Maurício Stycer em seu blog.