No meu tempo de estudante do ensino médio (na época tinha o nome de educação do 2o grau) meu professor de biologia dava como exemplo de evolução o dente do siso - dizia o mestre que o órgão (sim, dentes são órgãos) estava desaparecendo citando que algumas pessoas já nasciam sem (na verdade todos nascem sem e vão começar a desenvolvê-lo lá pelos 5 anos de idade, mas claro que o que ele quis dizer é que nasciam sem a tendência de desenvolvê-lo depois).
Aparentemente essa história ainda é repetida nas escolas: ao menos a julgar pela recorrência com que o tema aparece por aí, incluindo uma comunidade sobre evolução no orkut que ajudo a moderar.
Mas será que é assim mesmo?
Para analisar uma característica sob o ponto de vista evolutivo precisamos estabelecer duas coisas:
a) a característica em questão é herdável? (ou de outro modo, ela tem um componente genético?);
b) ela apresenta variação?
Um terceiro elemento deve ser considerado se estivermos a analisar sob o ponto de vista da seleção natural (ou artificial):
c) a variação está ligada a um maior ou menor sucesso reprodutivo? (a posse de uma variante causa morte? infertilidade? diminui as chances de sobrevivência do indivíduo ou de sua prole? diminui suas chances de encontrar um parceiro reprodutivo?) - note-se que isso não precisa ser em termos absolutos, basta ser um pouco maior ou um pouco menor do que o sucesso médio de indivíduos com outras variantes.
No caso do dente do siso a resposta às duas primeiras perguntas é sim. Há variantes genéticas do gene Pax9 ligadas à agenesia (isto é, a ausência de formação do dente) do terceiro molar (Nieminen et al. 2001, Klein et al. 2005, Pereira et al. 2006), possivelmente outros genes como o MSX1 também podem estar associados à condição (Saito et al. 2006). A prevalência da agenesia em uma população pode variar de 0,2% a quase 100% (citações em Pereira et al. 2006), com uma média de cerca de 20% (citações em Vastardis 2000).
A terceira pergunta é mais complicada de se responder. Há várias complicações associadas com a presença do terceiro molar - especialmente o desalinhamento dos demais dentes quando o siso se desenvolve torto (caso de cerca de 1/3 dos jovens jordanianos - Hattab et al 1995; 11% entre pacientes dentários de uma faculdade de odontologia finlandesa - Aitasalo et al 1972) e também a pericoronite (inflamação da gengiva sobre dente que ainda não saiu) aguda (Leone et al. 1986). Além disso, o terceiro molar é o dente mais exposto à cárie (36,5% com sinais de cárie contra 32% dos molares 2, 16,4% dos molares 1, 10,4% dos premolares, 6,8% dos caninos e 6,7% dos incisivos em finlandeses da Idade Média, Varrela 1991). Mas é difícil de dizer o impacto dessas complicações no sucesso reprodutivo dos indivíduos***. A pericoronite pelo menos pode ser bem incapacitante pela dor provocada e sabemos que a dor crônica, incluindo a de dente, diminui bastante o desejo sexual (se nunca passou por isso, pode conferir em Laursen et al. 2006). Então faz sentido, sim, supor que a posse do terceiro molar possa causar alguma redução do valor adaptativo.
Mas e a ausência de dente do siso causa algum problema? A extração do dente não é livre de riscos - em casos extremos de complicação cirúrgica, ainda que raros, pode levar à morte (Kunkel et al. 2007)**. Porém e a agenesia? Aparentemente ela, em si, não causa maiores problemas. Vários casos de agenesia estão associadas a outros problemas: p.e., portadores de síndrome de Down têm uma maior prevalência de agenesia do terceiro molar (Shapira et al 2000), mas não é a agenesia a causar Down.
Isso, porém, na situação *atual*. Do contrário, por quê, afinal, existiria o terceiro molar para começar? Silvestri & Singhi (2003) especulam que a presença do terceiro molar, ao aumentar a superfície masticatória total, diminuiria a taxa de desgaste de oclusão dos dentes - cáries não seriam particularmente um problema, posto que a dieta pré-histórica, com baixa ingestão de açúcares, levaria à baixa incidência desse problema bucal (citações em Larsen 1995).
Especula-se, também, que, com a mudança de dieta, menos rica em fibras, o aparelho masticatório - em particular, os ossos das maxilas - seria menos submetido à tensão, resultado em um menor desenvolvimento e havendo menos espaço para o terceiro molar: o que seria o responsável pela alta incidência de complicações associadas ao dente. O padrão de erupção do terceiro molar em população rural nigeriana (Odusanya & Abayomi 1991) parece dar suporte à isso.
Mas há mesmo um aumento da incidência de agenesia do terceiro molar? A incidência geral de agenesia do siso no sítio de Ban Chiang, Tailândia, em vestígios humanos que datam de 2100 a.C. a 200 d.C. é de 6,4% (Pietrusewsky & Douglas 2002, p. 69). Em sítios neolíticos da província de
Shaanxi, China, é de 22%. Em populações das ilhas Canárias dos séculos 6o a 14o d.C. (que vivam em condições similares à Eurásia neolítica), variava de 9,3% (Gran Canaria) a 14,6% (Tenerife) (Guatelli-Steinberg et al. 2001). Entre egípcios pré-dinásticos e os primeiros núbios do período histórico, a prevalência é de até cerca de 13% (citações em Greene 1972).
Deve se levar em conta que estudos que não são baseados em exames radiológicos podem superestimar os valores de prevalência (ao contar como agenesia casos em que o dente simplesmente não irrompeu, embora esteja presente no interior da maxila); porém, para além de que também havia uma grande variação do polimorfismo da ausência do terceiro molar nas populações antigas é difícil concluir que havia uma prevalência geral menor.
Na literatura é comum se mencionar que fósseis humanos do Paleolítico (de cerca de 2,6 milhões de anos atrás a 10 mil anos atrás) raramente apresentam agenesia do terceiro molar. Mas não sabemos a partir de que momento a ausência do siso passou a ser comum. E, como nesse período a espécie humana pode ter passado por gargalos evolutivos (Ambrose 1998), é possível que o aumento tenha se dado por deriva (puro acaso) sem envolver seleção de alguma espécie.
Assim, a hipótese de que há uma tendência evolutiva para o desaparecimento do siso é tentadora, mas falta uma base fatual maior a sustentá-la. Em termos perspectivos, é difícil cravar que haverá uma tendência ao desaparecimento - mesmo se estivermos certos de que hoje a presença do terceiro molar seja desvantajoso, isso porque não sabemos como será o futuro. *Se* a presença for desvantajosa hoje e *se* as condições atuais se mantiverem, então seria razoável supor o desaparecimento em algum ponto por seleção.
Uma objeção aparentemente comum à hipótese do desaparecimento futuro é de que as condições atuais - como a possibilidade de remoção cirúrgica dos dentes - teriam eliminado a desvantagem de se ter os sisos. Porém, há que se lembrar de que o acesso aos cuidados dentários - e aos médicos em eventuais complicações - dá-se para uma *minoria* da população mundial.
Outro fator que devemos levar em conta é que há também diferenças regionais quanto aos hábitos alimentares - como o exemplo das populações rurais da Nigéria nos lembra. Nem todo mundo tem uma dieta baseada em produtos industrializados com quase nenhuma fibra. Paixão-Côrtes et al. (2011), para polimorfismo do éxon 3 do gene PAX9 (região associada à agenesia do terceiro molar), detectaram padrões distintos para populações da África sub-Saariana e populações não-africanas*.
Se a hipótese ainda é usada em salas de aula, ela não deve ser apresentada como uma previsão segura da evolução humana por incerta demais.
Uma tendência mais bem registrada em hominídeos é a redução do *tamanho* dos dentes (Bailit & Friedlaender 1966, Brace et al. 1987)4. Mas, de novo, projetar essa tendência passada para o futuro é um tanto arriscado.
Referências
Aitasalo, K. et al. (1972). An orthopantomography study of prevalence of impacted teeth International Journal of Oral Surgery, 1 (3), 117-120 DOI: 10.1016/S0300-9785(72)80001-2
Ambrose, S. (1998). Late Pleistocene human population bottlenecks, volcanic winter, and differentiation of modern humans Journal of Human Evolution, 34 (6), 623-651 DOI: 10.1006/jhev.1998.0219
Bailit, H., & Friedlaender, J. (1966). Tooth Size Reduction: A Hominid Trend American Anthropologist, 68 (3), 665-672 DOI: 10.1525/aa.1966.68.3.02a00030
Brace, C., Rosenberg, K., & Hunt, K. (1987). Gradual Change in Human Tooth Size in the Late Pleistocene and Post- Pleistocene Evolution, 41 (4) DOI: 10.2307/2408882
Greene, D. (1972). Dental anthropology of early Egypt and Nubia☆ Journal of Human Evolution, 1 (3), 315-324 DOI: 10.1016/0047-2484(72)90067-X
Guatelli-Steinberg, D. et al. (2001). Canary islands-north African population affinities: measures of divergence based on dental morphology. Homo : internationale Zeitschrift fur die vergleichende Forschung am Menschen, 52 (2), 173-88 PMID: 11802567
Hattab FN, Rawashdeh MA, & Fahmy MS (1995). Impaction status of third molars in Jordanian students. Oral surgery, oral medicine, oral pathology, oral radiology, and endodontics, 79 (1), 24-9 PMID: 7614155
Klein, M. et al. (2005). Novel Mutation of the Initiation Codon of PAX9 Causes Oligodontia Journal of Dental Research, 84 (1), 43-47 DOI: 10.1177/154405910508400107
Kunkel, M. et al. (2007). Severe third molar complications including death-lessons from 100 cases requiring hospitalization. Journal of oral and maxillofacial surgery : official journal of the American Association of Oral and Maxillofacial Surgeons, 65 (9), 1700-6 PMID: 17719386
Larsen, C. (1995). Biological Changes in Human Populations with Agriculture Annual Review of Anthropology, 24 (1), 185-213 DOI: 10.1146/annurev.an.24.100195.001153
Laursen, B. et al. (2006). Ongoing Pain, Sexual Desire, and Frequency of Sexual Intercourses in Females with Different Chronic Pain Syndromes Sexuality and Disability, 24 (1), 27-37 DOI: 10.1007/s11195-005-9001-5
Leone, S. et al. (1986). Correlation of acute pericoronitis and the position of the mandibular third molar Oral Surgery, Oral Medicine, Oral Pathology, 62 (3), 245-250 DOI: 10.1016/0030-4220(86)90001-0
Nieminen, P. et al. (2001). Identification of a nonsense mutation in the PAX9 gene in molar oligodontia. European journal of human genetics : EJHG, 9 (10), 743-6 PMID: 11781684
Odusanya SA, & Abayomi IO (1991). Third molar eruption among rural Nigerians. Oral surgery, oral medicine, and oral pathology, 71 (2), 151-4 PMID: 2003009
*Paixão-Côrtes, V.R. et al. (2011). Genetic Variation among Major Human Geographic Groups Supports a Peculiar Evolutionary Trend in PAX9. PloS one, 6 (1) PMID: 21298044
Pereira, T. et al. (2006). Natural selection and molecular evolution in primate PAX9 gene, a major determinant of tooth development Proceedings of the National Academy of Sciences, 103 (15), 5676-5681 DOI: 10.1073/pnas.0509562103
Pietrusewsky, M. & Douglas, M. T. 2002. Ban Chiang, a prehistoric village site in northeast Thailand: the human skeletal remains. U Penn Museum of Archaeology. 493 pp.
Saito, B. et al. (2006). Suggestive Associations Between Polymorphisms in PAX9, MSX1 Genes and Third Molar Agenesis in Humans Current Genomics, 7 (3), 191-196 DOI: 10.2174/138920206777780256
Shapira J, Chaushu S, & Becker A (2000). Prevalence of tooth transposition, third molar agenesis, and maxillary canine impaction in individuals with Down syndrome. The Angle orthodontist, 70 (4), 290-6 PMID: 10961778
Silvestri AR Jr, & Singh I (2003). The unresolved problem of the third molar: would people be better off without it? Journal of the American Dental Association (1939), 134 (4), 450-5 PMID: 12733778
Varrela, T. (1991). Prevalence and distribution of dental caries in a late medieval population in Finland Archives of Oral Biology, 36 (8), 553-559 DOI: 10.1016/0003-9969(91)90104-3
Vastardis, H. (2000). The genetics of human tooth agenesis: New discoveries for understanding dental anomalies American Journal of Orthodontics and Dentofacial Orthopedics, 117 (6), 650-656 DOI: 10.1067/mod.2000.103257
*Upideite(04/mar/2011): Adido a esta data.
**Upideite(03/abr/2013): Não são tããããão raras assim: como aqui e aqui. Claro, nada que deva causar uma preocupação desmedida.
***Upideite(03/abr/2013): Infecção não tratada no dente do siso
pode levar à morte.
4
Upideite(25/fev/2016): Um estudo apresenta um modelo matemático para a
evolução da dentição em homininos. ht
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