Lives de Ciência

Veja calendário das lives de ciência.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Gênero musical

Dá para montar uma pequena orquestra com os nomes científicos e populares de alguns organismos vivos.

Guitarra - gênero de esponjas. (Nos comentários, Roberto Berlinck, do Química de Produtos Naturais, explica que o nome se deve ao fato de as espículas terem o formato de um violão.**)
Harpa - gênero de caramujos marinhos predadores.
Viola - gênero de plantas floríferas que inclui as violetas.
Tuba - gênero de poliquetos. Aparentemente há também gastrópodos marinhos, mas não sei em que pé está a questão (em nomenclatura zoológica não é possível se atribuir o mesmo nome para organismos distintos, havendo o critério de antiguidade: o organismo para o qual o nome foi atribuído primeiro retém a designação, devendo ser os demais renomeados).

Moraea vuvuzela - planta Iridaceae batizada em homenagem às infames vuvuzelas.

Aranha-violino - outra designação da aranha-marrom (gênero Loxosceles).
Besouro-violino - besouro asiático de mais de 10 cm de comprimento (Mormolyce phyllodes).
Cação-viola - na verdade, uma raia (Rhinobatos percellens).
Pássaro-lira - ave australiana do gênero Menura, cujo macho possui penas desenvolvidas que lembra a uma lira.
Peixe-banjo - bagres da família Aspredinidae.
Peixe-flauta - também chamado de peixe-cachimbo arlequim (Solenostomus paradoxus), parente do cavalo-marinho.
Peixe-trombeta - às vezes também chamado de peixe-flauta (Aulostomus maculatus), também parente, mais distante, do cavalo-marinho.*

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O instrumento musical mais antigo já encontrado é uma flauta feita de osso de asa de abutre datado de cerca de 35 mil anos atrás.***

Conchas de gastrópodos marinhos têm sido usadas como instrumentos de sopro por diferentes povos pelo globo.

Chimpanzés podem se comunicar batucando raízes tabulares com as mãos ou os pés. Também costumam produzir sons por "leaf-clipping": estalos produzidos quando mordiscam e rasgam folhas.

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*Upideite(30/mar/2011): peixe-trombeta ou peixe-corneta (como lembrou @luciamalla nos comentários) é a designação não apenas de peixes Aulostomidae, mas também de Fistularidae.
**Upideite(13/abr/2011): adido a esta data.
***Upideite(26/mai/2012): um novo achado, Geissenkloesterle, Alemanha, recua  data do mais antigo instrumento conhecido - também flautas - para 42 a 43 mil anos atrás.

domingo, 6 de março de 2011

Mais sobre os "fósseis" em meteoritos

Algumas considerações extras a respeito da interpretação de Hoover de que estruturas mineralizadas em meteoritos CI1 seriam fósseis de cianobactérias.

Veja abaixo uma representação simplificada da "árvore da vida" - as relações evolutivas de membros dos três grandes grupos de organismos vivos inferidas por análise genética.


Figura 1. Árvore da vida.

O balão vermelho indica a posição das cianobactérias. A seta vermelha indica a posição inferida da raiz da árvore - a posição do último ancestral em comum de todos os organismos atuais da Terra.

Segundo a interpretação de Hoover, as estruturas seriam de organismos que estariam em algum ponto dentro do balão. Se aceitarmos isso, há duas interpretações possíveis: 1) A raiz verdadeira estaria em algum ponto dentro do balão ou 2) a Terra foi 'semeada' também com ancestrais das arqueas, de outras bactérias e também de eucariotos.

O deslocamento da posição da raiz tornaria completamente estranho o padrão genético encontrado. Há certos genes que estão duplicados no genoma de bactérias, arqueas e eucariotos. Esses genes surgiram de uma mesma cópia ancestral e divergiram a partir disso. Analisando-se a sequência, pode-se inferir a sequência da cópia ancestral - e comparando-se com isso, podemos posicionar a raiz da árvore. Esse esquema elegante é bagunçado se a verdadeira raiz estiver longe da posição inferida por essa técnica. Um padrão altamente improvável de evolução das sequências haveria de ocorrer - a partir das cianobactérias, os dois genes iriam *convergir* suas sequências e voltariam a divergir rumo às arqueas e aos eucariotos.

Consideremos então que toda uma diversidade ancestral aportou na Terra, incluindo nossos ancestrais protoeucariotos. Ocorre que o meteorito tem idade que remonta às origens do Sistema Solar. Essa diversidade teria surgido em um intervalo de não muito mais do que alguns milhões de anos. E ficado oculta por bilhões de anos no registro fóssil de nosso planeta. Se as cianobactérias já estavam presentes praticamente desde o início na Terra, por que a crise ou a revolução do oxigênio (ou ainda o Grande Evento da Oxigenação) ocorreria só há uns 2,4 bilhões de anos atrás?

Outra coisa. Os meteoritos CI1 devem ser restos ou de cometas ou de asteroides - não de corpos como planetas ou protoplanetas. Os organismos apontados como parentes próximos dos supostos fósseis como o Titanospirillum velox são móveis - deveria haver água líquida. Cometas são formados basicamente de gelo; quando se aproximam do Sol, o gelo não se liquefaz, mas sublima. Asteroides não são também bons locais em que esperaríamos água líquida em abundância. #comofaz?

Nasa strikes again... Strikeout!

ResearchBlogging.orgAcaba de ser publicado um artigo de Richard B. Hoover sobre estruturas minerais no interior de um meteorito. A conclusão do cientista é estampada logo no título, sem rodeios: "Fossils of Cyanobacteria in CI1 Carbonaceous Meteorites".

Não queria comentar agora, mas também não é a primeira nem a segunda vez que faço aqui uma postagem a respeito de algo em plena hype.

Não é também uma tradição que nunca foi rompida aqui fazer uma afirmação mais forte.

Então eu escrevo com todas as letras: Nasa, 'tá' na hora de fechar as pesquisas de astrobiologia pra balanço. (Phil Plait, do Bad Astronomy, tem também uma opinião bastante cética, mas é mais comedido do que eu nesta história.)

Junte um tema pulsante: vida extraterrestre, a uma instituição renomada: a Nasa; e pronto, quem segura a onda?

Há pouco tivemos uma hype do gênero com as tais bactérias que usariam arsênio. Na ocasião, o erro maior foi a divulgação para o público e a imprensa, o artigo em si era bem mais cuidadoso. Agora os cuidados foram - não resisto ao trocadilho - jogados para o espaço.

O Yahoo!News vai na onda e anuncia: "Cientista da Nasa encontra evidência de vida alienígena". Não irei culpá-los (como não atribuo à imprensa a culpa maior pela onda das bactérias arseniófilas), mas botaram de ilustração, não o fóssil, e sim a foto de uma cianobactéria de verdade - terrestre e atual (não alienígena e fóssil) - que está presente no artigo. O fóssil é bem mais decepcionante. Reproduzo abaixo (Figura 1) lado a lado as imagens.


Figura 1. À esquerda, estrutura mineralizada no meteorito; à direita, Titanospirillum velox (bactéria atual terrestre, formadora de biofilmes)

O autor é mais do que ousado em propor não apenas a natureza biogênica das estruturas, mas ainda classificás-la como fósseis de um grupo que encontramos na Terra atualmente (as cianobactérias mencionadas no título do artigo). Como a idade do meteorito remonta à formação do Sistema Solar e da Terra (uns 4,5 bilhões de anos), obviamente está implicando que a vida na Terra é exógena. É uma possibilidade, mas seria preciso bem mais do que formações minerais superficialmente similares às formas de vida atuais (desconte-se o conservadorismo morfológico implicado - isso, conservação da forma ao longo da evolução, é perfeitamente possível e há casos confirmados para pelo menos algumas centenas de milhões de anos).

Para afastar a hipótese de contaminação por micróbios terrestres, Hoover argumenta que muitas das estruturas aparecem parcialmente incrustradas na matriz e que a composição química delas é diferente da de minerais terrestres - indicando, assim, que os fósseis putativos formaram-se fora da Terra.

Em 1996 também foram-nos apresentadas estruturas minerais no interior de um meteorito (ALH84001) interpretadas como fósseis de bactérias (McKay et al. 1996) - à parte o tamanho diminuto (de nanômetros), posteriormente argumentou-se que processos abióticos poderiam produzir as estruturas e explicar a co-ocorrência de outros sinais (como compostos orgânicos e certas deposições minerais, como a magnetita). Aliás, no trabalho de Hoover é digno de nota a *ausência* da citação desse trabalho.

Estranho ainda o artigo ser monoautoral. Hoover realmente teve muito trabalho de preparar as amostras, micrografá-las, analisar a morfologia e a composição química sozinho. ONo de McKay et al. 1996 foram 9 autores, no de Wolfe-Simon et al. 2010 (das bactérias arseniófilas), 12 autores.

O artigo foi publicado em um periódico bastante suspeito. Seu quadro conta com pessoas que, embora tenham contribuições importantes em suas áreas, têm lá suas hipóteses de estimação bastante estranhas: Chandra Wickramasinghe, defensor entusiasmado da panespermia; e Roger Penrose, e sua esquisita teoria da consciência quântica; já publicaram artigos muitos estranhos e estão para encerrar suas atividades. A Nasa também anda enfrentando severos cortes de verba.

O Journal of Cosmology apresentou o artigo para 100 especialistas e convidou outros 5.000 para analisá-lo; irá publicar os comentários entre os dias 7 e 10/mar/2011. Estou curioso para ver se a revista levou em conta as opiniões dadas para publicar o artigo: terão mesmo os revisores dado o aceite?

Usando de bastante eufemismo, é um trabalho *muito* estranho. (Não que não devesse ser publicado, mas deveria haver muito mais cuidado do que parece que foi tomado.)

Referências
Hoover, R.B. 2001. Fossils of Cyanobacteria in CI1 Carbonaceous Meteorites. Journal of Cosmology 13.

McKay, D., Gibson, E., Thomas-Keprta, K., Vali, H., Romanek, C., Clemett, S., Chillier, X., Maechling, C., & Zare, R. (1996). Search for Past Life on Mars: Possible Relic Biogenic Activity in Martian Meteorite ALH84001 Science, 273 (5277), 924-930 DOI: 10.1126/science.273.5277.924

Wolfe-Simon, F., Blum, J., Kulp, T., Gordon, G., Hoeft, S., Pett-Ridge, J., Stolz, J., Webb, S., Weber, P., Davies, P., Anbar, A., & Oremland, R. (2010). A Bacterium That Can Grow by Using Arsenic Instead of Phosphorus Science DOI: 10.1126/science.1197258

Upideite(06/mar/2011): Outras análises.
Rosie Redfield, no RRResearch, observa que o tamanho dos filamentos varia bastante.
PZ Meyers, no Pharyngula, claro, é ainda mais ácido do que eu: "This isn't science, it's pareidolia".

Upideite(07/mar/2011):
Charlie Petit no Knight Science Journalism Tracker: "This will be hard for any serious science journalists to cover – even to debunk it."

A Nasa, escaldada, parece não endossar a opinião de Hoover. (Dica da @alesscar)

Upideite(08/mar/2011):
Aqui tem mais algumas informações.

O Journal of Cosmology publicou alguns comentários (21 até esta data). A maioria estranhamente favorável; continuando na esquisitice, incluíram comentário de um dos editores da própria revista, além de outros autores que publicaram também na própria revista. Será que ninguém com objeções mais fortes se dignou a apresentá-las? O que me faz questionar a respeito dos tais 100 especialistas (e, sinceramente, enviar convites gerais para mais de 5.000 outros caracterizaria spam - duvido que tenham assinado newsletter da revista).

Upideite(09/mar/2011): Phil Plait volta à carga . PZ Meyers também. A história na New Scientist. David Dobbs na Neuron Culture.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Documento GR: Aquecimento Global

Aqui manterei a compilação de todas as postagens no GR sobre "aquecimento global" e "mudanças climáticas".

Série que apresenta os indícios que levam os cientistas a concluírem que passamos por uma época em que a temperatura média do planeta está aumentada e que a ação humana tem um papel importante nessa alteração.
Aquecimento global (parte 1 de 3)
Aquecimento global (parte 2 de 3)
Aquecimento global (parte 3 de 3)

Comentários e respostas aos comentários sobre a série acima.
Aquecimento global (parte 1 de 3): leitor comenta
Aquecimento global (parte 1 de 3): resposta
Aquecimento global (parte 1 de 3): leitor comenta (2)
Aquecimento global (parte 1 de 3): resposta (2)

Postagens com observações a respeito de matérias na imprensa e em outros blogues.
O papel do CO2 nas mudanças climáticas‏ - a respeito de um artigo no Observatório da Imprensa
Jogo dos erros - sobre as objeções de Luiz Carlos Molion da UFAL à hipótese do aquecimento global
Quente ou frio? Quente - frio em alguns lugares, às vezes. - sobre postagem no blogue do Nassif
Jogo dos erros 3, Jogo dos erros 3b, Jogo dos erros 3c, Jogo dos erros 3d - sobre a entrevista de Ricardo Augusto Felício da USP ao Programa do Jô negando o aquecimento global.
Jogo dos erros 4 - sobre a carta de Molion, Felício e cia.
Jogo dos erros 5 - contra-argumentos a uma coluna da Folha.
Jogo dos erros 6 - análise de mais um texto de Luiz Molion.
Perdendo-se na linha fina: como o G1 atribuiu o aquecimento global a causas naturais - como o G1 inverteu completamente o achado de um trabalho científico.

A respeito dos emails roubados dos pesquisadores da East Anglia.
Dos email roubados dos cientistas do IPCC
Mais sobre os emails roubados - a coisa tá ficando feia...
Mais sobre os emails roubados - agora pegaram uma coisa séria

Outros.
O cálculo da forçante radioativa - link para livro sobre o, claro, cálculo dessa variável.
Ceticismo sobre o ex-"ceticismo" de Lomborg
Como estão as previsões sobre a temperatura? - comparação das previsões feitas pelos relatórios do IPCC e os dados reais obtidos.

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Nos comentários das postagens acima há também complementações em respostas às observações dos leitores.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Como é que é? - Dentes do siso estão desaparecendo?

ResearchBlogging.orgNo meu tempo de estudante do ensino médio (na época tinha o nome de educação do 2o grau) meu professor de biologia dava como exemplo de evolução o dente do siso - dizia o mestre que o órgão (sim, dentes são órgãos) estava desaparecendo citando que algumas pessoas já nasciam sem (na verdade todos nascem sem e vão começar a desenvolvê-lo lá pelos 5 anos de idade, mas claro que o que ele quis dizer é que nasciam sem a tendência de desenvolvê-lo depois).

Aparentemente essa história ainda é repetida nas escolas: ao menos a julgar pela recorrência com que o tema aparece por aí, incluindo uma comunidade sobre evolução no orkut que ajudo a moderar.

Mas será que é assim mesmo?

Para analisar uma característica sob o ponto de vista evolutivo precisamos estabelecer duas coisas:
a) a característica em questão é herdável? (ou de outro modo, ela tem um componente genético?);
b) ela apresenta variação?

Um terceiro elemento deve ser considerado se estivermos a analisar sob o ponto de vista da seleção natural (ou artificial):
c) a variação está ligada a um maior ou menor sucesso reprodutivo? (a posse de uma variante causa morte? infertilidade? diminui as chances de sobrevivência do indivíduo ou de sua prole? diminui suas chances de encontrar um parceiro reprodutivo?) - note-se que isso não precisa ser em termos absolutos, basta ser um pouco maior ou um pouco menor do que o sucesso médio de indivíduos com outras variantes.

No caso do dente do siso a resposta às duas primeiras perguntas é sim. Há variantes genéticas do gene Pax9 ligadas à agenesia (isto é, a ausência de formação do dente) do terceiro molar (Nieminen et al. 2001, Klein et al. 2005, Pereira et al. 2006), possivelmente outros genes como o MSX1 também podem estar associados à condição (Saito et al. 2006). A prevalência da agenesia em uma população pode variar de 0,2% a quase 100% (citações em Pereira et al. 2006), com uma média de cerca de 20% (citações em Vastardis 2000).

A terceira pergunta é mais complicada de se responder. Há várias complicações associadas com a presença do terceiro molar - especialmente o desalinhamento dos demais dentes quando o siso se desenvolve torto (caso de cerca de 1/3 dos jovens jordanianos - Hattab et al 1995; 11% entre pacientes dentários de uma faculdade de odontologia finlandesa - Aitasalo et al 1972) e também a pericoronite (inflamação da gengiva sobre dente que ainda não saiu) aguda (Leone et al. 1986). Além disso, o terceiro molar é o dente mais exposto à cárie (36,5% com sinais de cárie contra 32% dos molares 2, 16,4% dos molares 1, 10,4% dos premolares, 6,8% dos caninos e 6,7% dos incisivos em finlandeses da Idade Média, Varrela 1991). Mas é difícil de dizer o impacto dessas complicações no sucesso reprodutivo dos indivíduos***. A pericoronite pelo menos pode ser bem incapacitante pela dor provocada e sabemos que a dor crônica, incluindo a de dente, diminui bastante o desejo sexual (se nunca passou por isso, pode conferir em Laursen et al. 2006). Então faz sentido, sim, supor que a posse do terceiro molar possa causar alguma redução do valor adaptativo.

Mas e a ausência de dente do siso causa algum problema? A extração do dente não é livre de riscos - em casos extremos de complicação cirúrgica, ainda que raros, pode levar à morte (Kunkel et al. 2007)**. Porém e a agenesia? Aparentemente ela, em si, não causa maiores problemas. Vários casos de agenesia estão associadas a outros problemas: p.e., portadores de síndrome de Down têm uma maior prevalência de agenesia do terceiro molar (Shapira et al 2000), mas não é a agenesia a causar Down.

Isso, porém, na situação *atual*. Do contrário, por quê, afinal, existiria o terceiro molar para começar? Silvestri & Singhi (2003) especulam que a presença do terceiro molar, ao aumentar a superfície masticatória total, diminuiria a taxa de desgaste de oclusão dos dentes - cáries não seriam particularmente um problema, posto que a dieta pré-histórica, com baixa ingestão de açúcares, levaria à baixa incidência desse problema bucal (citações em Larsen 1995).

Especula-se, também, que, com a mudança de dieta, menos rica em fibras, o aparelho masticatório - em particular, os ossos das maxilas - seria menos submetido à tensão, resultado em um menor desenvolvimento e havendo menos espaço para o terceiro molar: o que seria o responsável pela alta incidência de complicações associadas ao dente. O padrão de erupção do terceiro molar em população rural nigeriana (Odusanya & Abayomi 1991) parece dar suporte à isso.

Mas há mesmo um aumento da incidência de agenesia do terceiro molar? A incidência geral de agenesia do siso no sítio de Ban Chiang, Tailândia, em vestígios humanos que datam de 2100 a.C. a 200 d.C. é de 6,4% (Pietrusewsky & Douglas 2002, p. 69). Em sítios neolíticos da província de Shaanxi, China, é de 22%. Em populações das ilhas Canárias dos séculos 6o a 14o d.C. (que vivam em condições similares à Eurásia neolítica), variava de 9,3% (Gran Canaria) a 14,6% (Tenerife) (Guatelli-Steinberg et al. 2001). Entre egípcios pré-dinásticos e os primeiros núbios do período histórico, a prevalência é de até cerca de 13% (citações em Greene 1972).

Deve se levar em conta que estudos que não são baseados em exames radiológicos podem superestimar os valores de prevalência (ao contar como agenesia casos em que o dente simplesmente não irrompeu, embora esteja presente no interior da maxila); porém, para além de que também havia uma grande variação do polimorfismo da ausência do terceiro molar nas populações antigas é difícil concluir que havia uma prevalência geral menor.

Na literatura é comum se mencionar que fósseis humanos do Paleolítico (de cerca de 2,6 milhões de anos atrás a 10 mil anos atrás) raramente apresentam agenesia do terceiro molar. Mas não sabemos a partir de que momento a ausência do siso passou a ser comum. E, como nesse período a espécie humana pode ter passado por gargalos evolutivos (Ambrose 1998), é possível que o aumento tenha se dado por deriva (puro acaso) sem envolver seleção de alguma espécie.

Assim, a hipótese de que há uma tendência evolutiva para o desaparecimento do siso é tentadora, mas falta uma base fatual maior a sustentá-la. Em termos perspectivos, é difícil cravar que haverá uma tendência ao desaparecimento - mesmo se estivermos certos de que hoje a presença do terceiro molar seja desvantajoso, isso porque não sabemos como será o futuro. *Se* a presença for desvantajosa hoje e *se* as condições atuais se mantiverem, então seria razoável supor o desaparecimento em algum ponto por seleção.

Uma objeção aparentemente comum à hipótese do desaparecimento futuro é de que as condições atuais - como a possibilidade de remoção cirúrgica dos dentes - teriam eliminado a desvantagem de se ter os sisos. Porém, há que se lembrar de que o acesso aos cuidados dentários - e aos médicos em eventuais complicações - dá-se para uma *minoria* da população mundial.

Outro fator que devemos levar em conta é que há também diferenças regionais quanto aos hábitos alimentares - como o exemplo das populações rurais da Nigéria nos lembra. Nem todo mundo tem uma dieta baseada em produtos industrializados com quase nenhuma fibra. Paixão-Côrtes et al. (2011), para polimorfismo do éxon 3 do gene PAX9 (região associada à agenesia do terceiro molar), detectaram padrões distintos para populações da África sub-Saariana e populações não-africanas*.

Se a hipótese ainda é usada em salas de aula, ela não deve ser apresentada como uma previsão segura da evolução humana por incerta demais.

Uma tendência mais bem registrada em hominídeos é a redução do *tamanho* dos dentes (Bailit & Friedlaender 1966, Brace et al. 1987)4. Mas, de novo, projetar essa tendência passada para o futuro é um tanto arriscado.

Referências
Aitasalo, K. et al. (1972). An orthopantomography study of prevalence of impacted teeth International Journal of Oral Surgery, 1 (3), 117-120 DOI: 10.1016/S0300-9785(72)80001-2

Ambrose, S. (1998). Late Pleistocene human population bottlenecks, volcanic winter, and differentiation of modern humans Journal of Human Evolution, 34 (6), 623-651 DOI: 10.1006/jhev.1998.0219

Bailit, H., & Friedlaender, J. (1966). Tooth Size Reduction: A Hominid Trend American Anthropologist, 68 (3), 665-672 DOI: 10.1525/aa.1966.68.3.02a00030

Brace, C., Rosenberg, K., & Hunt, K. (1987). Gradual Change in Human Tooth Size in the Late Pleistocene and Post- Pleistocene Evolution, 41 (4) DOI: 10.2307/2408882

Greene, D. (1972). Dental anthropology of early Egypt and Nubia☆ Journal of Human Evolution, 1 (3), 315-324 DOI: 10.1016/0047-2484(72)90067-X

Guatelli-Steinberg, D. et al. (2001). Canary islands-north African population affinities: measures of divergence based on dental morphology. Homo : internationale Zeitschrift fur die vergleichende Forschung am Menschen, 52 (2), 173-88 PMID: 11802567

Hattab FN, Rawashdeh MA, & Fahmy MS (1995). Impaction status of third molars in Jordanian students. Oral surgery, oral medicine, oral pathology, oral radiology, and endodontics, 79 (1), 24-9 PMID: 7614155

Klein, M. et al. (2005). Novel Mutation of the Initiation Codon of PAX9 Causes Oligodontia Journal of Dental Research, 84 (1), 43-47 DOI: 10.1177/154405910508400107

Kunkel, M. et al. (2007). Severe third molar complications including death-lessons from 100 cases requiring hospitalization. Journal of oral and maxillofacial surgery : official journal of the American Association of Oral and Maxillofacial Surgeons, 65 (9), 1700-6 PMID: 17719386

Larsen, C. (1995). Biological Changes in Human Populations with Agriculture Annual Review of Anthropology, 24 (1), 185-213 DOI: 10.1146/annurev.an.24.100195.001153

Laursen, B. et al. (2006). Ongoing Pain, Sexual Desire, and Frequency of Sexual Intercourses in Females with Different Chronic Pain Syndromes Sexuality and Disability, 24 (1), 27-37 DOI: 10.1007/s11195-005-9001-5

Leone, S. et al. (1986). Correlation of acute pericoronitis and the position of the mandibular third molar Oral Surgery, Oral Medicine, Oral Pathology, 62 (3), 245-250 DOI: 10.1016/0030-4220(86)90001-0

Nieminen, P. et al. (2001). Identification of a nonsense mutation in the PAX9 gene in molar oligodontia. European journal of human genetics : EJHG, 9 (10), 743-6 PMID: 11781684

Odusanya SA, & Abayomi IO (1991). Third molar eruption among rural Nigerians. Oral surgery, oral medicine, and oral pathology, 71 (2), 151-4 PMID: 2003009

*Paixão-Côrtes, V.R. et al. (2011). Genetic Variation among Major Human Geographic Groups Supports a Peculiar Evolutionary Trend in PAX9. PloS one, 6 (1) PMID: 21298044

Pereira, T. et al. (2006). Natural selection and molecular evolution in primate PAX9 gene, a major determinant of tooth development Proceedings of the National Academy of Sciences, 103 (15), 5676-5681 DOI: 10.1073/pnas.0509562103

Pietrusewsky, M. & Douglas, M. T. 2002. Ban Chiang, a prehistoric village site in northeast Thailand: the human skeletal remains. U Penn Museum of Archaeology. 493 pp.

Saito, B. et al. (2006). Suggestive Associations Between Polymorphisms in PAX9, MSX1 Genes and Third Molar Agenesis in Humans Current Genomics, 7 (3), 191-196 DOI: 10.2174/138920206777780256

Shapira J, Chaushu S, & Becker A (2000). Prevalence of tooth transposition, third molar agenesis, and maxillary canine impaction in individuals with Down syndrome. The Angle orthodontist, 70 (4), 290-6 PMID: 10961778

Silvestri AR Jr, & Singh I (2003). The unresolved problem of the third molar: would people be better off without it? Journal of the American Dental Association (1939), 134 (4), 450-5 PMID: 12733778

Varrela, T. (1991). Prevalence and distribution of dental caries in a late medieval population in Finland Archives of Oral Biology, 36 (8), 553-559 DOI: 10.1016/0003-9969(91)90104-3

Vastardis, H. (2000). The genetics of human tooth agenesis: New discoveries for understanding dental anomalies American Journal of Orthodontics and Dentofacial Orthopedics, 117 (6), 650-656 DOI: 10.1067/mod.2000.103257

*Upideite(04/mar/2011): Adido a esta data.

**Upideite(03/abr/2013): Não são tããããão raras assim: como aqui e aqui. Claro, nada que deva causar uma preocupação desmedida.
***Upideite(03/abr/2013): Infecção não tratada no dente do siso pode levar à morte.
4Upideite(25/fev/2016): Um estudo apresenta um modelo matemático para a evolução da dentição em homininos. ht @Karl_MD

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