O que me chamou atenção, no entanto, foi a resposta do Professor Marcondes a essas críticas. Diz ele:
"Convém reforçar que o trabalho da divulgação científica é chamar a atenção da sociedade para questões emergentes e atuais. Ela apenas repassa aquilo que preocupa os cientistas e que pode ter, por isso, efeitos sociais maiores. Não lhe cabe discutir se a constatação, no caso, da associação argentina de médicos, é justa ou não; essa tarefa é da Academia, a quem compete, em fóruns próprios, apresentar as demonstrações em contrário."
Com todo o respeito profissional que o jornalista mereça, aqui tenho que discordar fortemente. O trabalho do divulgador de ciências não é apenas repassar a preocupação dos cientistas. Cabe, sim, ao divulgador estar capacitado para discutir as alegações; ou, no mínimo, então, trazer a visão corrente das ciências, p.e., entrevistando pesquisadores confiáveis (que pesquisem o tema e, preferencialmente, que tenham uma boa reputação acadêmica - podem até eventualmente ser
No caso em questão há duas agravantes: a primeira é que é um tema requentado. Já tem todo um ano em que inicialmente o questionamento veio à tona e houve toda uma discussão e contra-argumentações, inclusive com dados novos confirmando a relativa segurança do composto (e mais, o autor ignorou as publicações com resultados que indicam claramente que o ZIKV está envolvido causalmente na microcefalia das crianças afetadas). E, em segundo lugar, o autor dá como fonte um sítio web de reputação duvidosa, conhecido como sensacionalista e pouco zeloso na apuração dos fatos - se é que faz alguma (poderia pelo menos haver se baseado no próprio relatório da Reduas, organização argentina que alegou problemas com o piriproxifem).
Já discuti aqui no GR, o papel (ou, antes, os papéis) da DC: como watchdog e como relações públicas das ciências. Trazer irrefletidamente como boa ciência uma alegação sem fundamento não cumpre nem um nem outro papel. É perdoável cair em erros por confiar em fontes reputadas, no consenso científico, na ciência mainstream: que não são infalíveis, mas têm mecanismos para diminuir as chances de falhas e, principalmente, de corrigir as falhas. Mas já é meio forçar a amizade republicar sem analisar mais detidamente alegações de fontes marginais, que desafiam o que é bem estabelecido em ciências: quase nunca têm esses mecanismos de correção e checagem (não vão às fontes originais, não estudam a metodologia, não perguntam para profissionais da área se as alegações fazem sentido...)
Se é verdade que, como diz Marcondes, um dos papéis da DC é de "chamar a atenção da sociedade para questões emergentes e atuais"; o divulgador deve trazer questões que realmente são emergentes e atuais. Isto é, há um julgamento do divulgador sobre o que é um tema emergente e atual. Não é um simples garoto de recados que repassa o que quer que lhe ponham em mãos; cabe analisar se a pretensa informação é realmente candente, é realmente importante, é realmente relevante, é realmente um questionamento válido.
E, se questionado a respeito da candência, da importância, da relevância e, mais do que tudo, da validade da informação, o divulgador haverá de ou admitir o erro (todo mundo erra às vezes) ou colocar a sua apuração* sobre a candência, importância, relevância e validade na mesa, defendendo-se com base nos elementos apurados. E não com base em jogar a batata quente pra outrem (no caso, a Academia) e lavar as próprias mãos. O que piora é que a Academia *havia* feito sua parte e, nos fóruns próprios (i.e. em artigos publicados em revistas com revisão por pares e indexadas), apresentado demonstrações em contrário (Albuquerque et al. 2016 - os autores analisaram a incidência de microcefalia em cidades pernambucanas e não encontraram correlação com uso de piriproxifem, e Dzieciolowska et al. 2017 - em que não obtiveram alterações do tamanho cerebral ou do padrão de expressão gênica no órgão em larvas de peixe paulistinha). Embora na verdade o ônus da prova coubesse a quem alega: deve, antes, haver uma demonstração em fórum próprio da possibilidade de ligação entre o composto e a má formação (a bem da verdade, até houve alguns artigos em defesa da tese, como o de Truong et al. 2016, que detectaram efeito neurotóxico do piriproxifem em larvas de peixe paulistinha, mas em contrações muito acima das utilizadas na profilaxia contra mosquitos).
*Obs: A ausência de apuração adequada se constata em vários pontos:
1) A própria publicação da nota com a desinformação;
2) A publicação *um ano depois* do caso já ser discutido;
3) A ausência de contraponto como as contestações científicas em artigos publicados;
4) O fato de ter que publicar uma errata a respeito da ligação (que não há) da Monsanto com o larvicida;
5) Não ser o primeiro caso de publicação de alegações sem base e sensacionalistas:
6) Uso de fontes inadequadas (no caso, um site sensacionalista).Eis o tipo de porcaria conspiracionista que estão publicando no jornal da #USP @usponline. Juro que não é paródia. pic.twitter.com/hmkfKm5ou3— Eli Vieira (@EliVieira) March 29, 2017
Veja também o que a DCsfera anda falando sobre o tema:
Jean Pierre Schatzmann Peron/Café na Bancada. 21.mar.2017: Mitos desmistificados! Piriproxifeno e a microcefalia.
Carlos Orsi. 23.mar.2017: O baixo-ventre da divulgação científica.