Lives de Ciência

Veja calendário das lives de ciência.

sábado, 24 de dezembro de 2022

Divagação Científica - divulgando ciências cientificamente 38: incertezas

Gustafson, A & Rice, RE. 2020. A review of the effects of uncertainty in public science communication. Public Understanding of Science, 29(6), 614–33. doi.org/10.1177/0963662520942122

----------

Abel Gustafson, da Universidade de Yale, e Ronald Rice, da Universidade da Califórnia, ambas dos Estados Unidos, fizeram uma revisão da literatura sobre os efeitos que a menção a incertezas nas mensagens ao público não-especializado tinha em vários parâmetros de confiança, persuasão e comportamento.

Tipos de incertezas:

  • Deficitária: incerteza comunicada com frequência como conhecidas lacunas no conhecimento. Por falta de pesquisa na área, pelo problema não poder ser desvendado nem em princípio ou pela expansão do universo do problema ('cada resposta gera múltiplas novas questões'). Ex. "...embora muitas coisas ainda não sejam conhecidas e mais pesquisas sejam necessárias".
  • Técnica: erros de medida, aproximações de modelos, pressupostos estatísticos... Exs. amplitude(range): 7-15 cm; probabilidade: 65% de chance; estimativas com intervalos de confiança e barras de erro...
  • De consenso: (in)certeza em torno de uma teoria, descoberta ou previsão dada pelo acordo/desacordo coletivo a respeito delas - seja por grupos de interesse (cientistas, representantes do governo, público...), seja pelo corpo de evidências. Similar os conceitos coloquiais de "desacordo", "conflito" ou "controvérsia". Ex. "99% dos estudos publicados em revistas indexadas e revisadas por pares concluem que há um aquecimento global antropogênico em curso".
  • Da ciência: todo conhecimento científico, em princípio, pode ser modificado por descobertas futuras. Ex. "estas informações representam os melhores dados disponíveis no momento, mas as coisas podem mudar no futuro".

Tipos de efeitos:

  • negativos: efeitos que reduzem a confiança nas ciências - aumento de dúvida sobre segurança de vacinas, menor percepção de credibilidade de pesquisa, menor intenção de se adotar comportamentos saudáveis, redução na própria certeza sobre algo, menor confiança na fonte da mensagem...
  • positivos: efeitos que aumentam a confiança nas ciências - aumento da percepção de credibilidade de jornalistas e cientistas, aumento da crença na certeza dos cientistas sobre a ausência da relação entre vacinas e autismo, redução da crença no desacordo entre os cientistas, pessoas com atitudes mais negativas em relação aos OGMs passam a ser mais favoráveis a propostas de aplicação de OGMs, aumento na confiança nos cientistas, aumento da percepção da certeza dos cientistas quanto à realidade do aquecimento global...
  • nulos: ausência de efeitos significativos (aumento ou redução) em crenças, confianças, apoio, percepção de perigo, etc...

Resultados:

  • A comunicação de incertezas de consenso se associa mais a resultados de efeitos negativos;
  • A comunicação de incertezas técnicas não apresenta efeitos negativos, variando de efeitos positivos a nulos;
  • A comunicação de incertezas deficitárias e da ciência têm efeitos variados entre os estudos: negativos, positivos e nulos;
  • As incertezas podem levar a vieses de confirmação e raciocínio motivado (em que a pessoa argumenta com a intenção de provar um ponto pré-estabelecido) de acordo com a existência de visões de mundo e opiniões sobre o tema prévias;
  • A (des)confiança na ciência e nos cientistas interferem nos efeitos das incertezas: entre os que confiam na ciência, o relato de um alto nível de consenso entre especialistas sobre uma política ambiental se associa a um maior apoio a essa política, enquanto que, entre os que não confiam na ciência, isso tende a ter um efeito de menor apoio (talvez por aumentarem a percepção prévia de existência de uma conspiração);
  • Entre os que enxergam a ciência como um empreendimento que sempre está sujeito a algum nível de incerteza, a comunicação de incertezas tende a ter efeitos mais positivos; já entre os que enxergam a ciência como reveladora de verdades absolutas, isso tende a ter efeitos mais negativos;
  • Temas podem afetar o efeito da comunicação de incertezas: p.e. a incerteza de consenso parece afetar o resultado da comunicação de aquecimento global, mas não de rotulagem de OGMs e perigos de maquinários.

sábado, 3 de dezembro de 2022

Alfabetização científica ou letramento científico?

>Laugksch, RC. 2000. Scientific literacy: a conceptual overview. Science Education 84(1): 71-94.

Interpretações da palavra letrado/alfabetizado ('literate'):

Instruído ('learned'): conhecer sobre fatos científicos e processos, valor do próprio conhecimento científico (conhecimento pelo conhecimento);
Competente ('competent'): contexto em que o cientificamente letrado precisa operar ou desempenho de atividades e funções específicas: ler uma notícia científica no jornal, resolver problemas práticos sobre alimentação, saúde e habitação, pensar de modo crítico e independente em questões envolvendo lógica, quantificação, evidências... (conhecimento aplicado em situações específicas);
Minimamente funcional como consumir e cidadão ('able to function minimally as consumer and citizen'): usar a ciência para uma melhor tomada de decisão no dia a dia (conhecimento aplicado na melhora da qualidade de vida);

-----

>Roberts, DA. 2007. Scientific literacy/science literacy.  In S. K. Abell & N. G. Lederman (eds.) Handbook of research on science education. Lawrence Erlbaum Associates. 1345 pp. Pp. 729–80.

>Roberts, DA & Bybee, RW. 2014. Scientific Literacy, Science Literacy, and Science Education. In Lederman, NG & Abell, SK (eds.) Handbook of research on science education vol. II. Routledge. 970 pp. Pp: 545-58

Visão I: estudante como um cientista novato; objetivo de dominar o básico da ciência para poder encarar material mais avançado; um olhar para dentro da própria ciência (nos cânones das ciências naturais ortodoxas), para os produtos e processos da ciência - aquisição de conhecimento sobre ciências dentro da própria ciência.

Visão II: estudante como cidadão; ênfase nos componentes científicas nos fenômenos do dia a dia; aquisição de conhecimento sobre ciências em situações em que considerações além da ciência são também importantes - olhar para a ciência a partir de fora.

As visões I e II são extremos de um contínuo de posicionamentos sobre a importância do letramento científico.

"science literacy"->visão I;
"scientific literacy"->visão II;

Relações com: "la culture scientifique" (Canadá francófono), "public understanding of science" (em declínio - consideram que PUS implicaria em um público e uma compressão homogêneos)/"public engagement of science" (Reino Unido). ["scientific temper" (Índia)]

[Nessa distinção entre "science literacy" e "scientific literacy", proponho "letramento para a ciência" no primeiro caso e "letramento sobre ciência" no segundo.]

-----

>Cunha, RB. 2017. Alfabetização científica ou letramento científico?: interesses envolvidos nas interpretações da noção de scientific literacy.  Rev. Bras. Educ. 22 (68).

Literacy: alfabetização vs letramento

alfabetização: saber ler e escrever - ruptura entre os que sabem ler e escrever (alfabetizados) e os que não sabem (analfabetos);
letramento: uso efeito da escrita e leitura nas práticas sociais - contínuo de níveis de complexidade do uso da escrita.

"Enquanto os que tratam de alfabetização consideram fundamental o ensino de conceitos científicos, os que optam por letramento priorizam, no ensino, a função social das ciências e das tecnologias e o desenvolvimento de atitudes e valores em relação a elas." (Cunha 2018)

-----

>Sasseron, LH & Carvalho, AMP 2011. Alfabetização científica: uma revisão bibliográfica. Investigações em Ensino de Ciências – V16(1), pp. 59-77.

Alfabetização científica: Paulo Freire "alfabetização é mais que o simples domínio psicológico e mecânico de técnicas de escrever e de ler. É o domínio completo destas técnicas em termos conscientes. [...] Implica numa autoformação de que possa resultar uma postura interferente do homem sobre seu contexto".

Enculturação científica: permitir que os alunos façam parte de uma cultura em que noções e conceitos científicos são parte do corpus (ao lado de outros aspectos: religião, arte, história...)

Letramento científico: Kleiman & Soares (1998) definem letramento como 'resultado da ação de ensinar ou aprender a ler e escrever: estado ou condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita"

-----

[No fim acaba sendo escolha ao gosto do freguês. Particularmente acho interessante a proposta de fazer uma distinção entre os termos, na medida em que temos expressões diferentes e há nuances a se cobrir.]

sábado, 26 de novembro de 2022

Gene Repórter ano 15

play, green, color, frog, toy, happy birthday, art, happy, funny, joy, kermit, birthday, luck, greeting, greeting card, congratulations, birthday card, stuffed toy, birthday wishes, wish congratulations, Free Images In PxHere

Hoje se completam 14 anos da primeira postagem no blog. Em comemoração, a equipa do GR lança um boletim - sem periodicidade definida - compilando algumas informações a respeito do universo da Divulgação Científica: o Coaxo Caixeiro Coaxo Caixeiro*.

Em sua primeira encarnação, deve contar com anotações de algum artigo de pesquisa em DC, indicações de projetos interessantes, agenda de eventos na área, glossário da DC e coisas correlatas. Ao longo do tempo, se houver fôlego para continuar, a formatação e o tipo de conteúdo deve evoluir - para atender melhor à demanda do público - se algum houver - do boletim e à capacidade da equipa editorial.

*Upideite(26.dez.2022): Como o Revue será descontinuado pelo twitter, migrei o boletim para o Substack.

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Ver pra crer? A retórica dos diferentes estilos de mapas

Em um trabalho publicado em 2012, o cartógrafo Ian Muehlenhaus, da University of Wisconsin, examinou os efeitos que diferentes modos de apresentar informações em mapas tinham sobre a percepção das pessoas. Os estilos cartográficos utilizados foram o de autoridade, discreto, propagandista e sensacionalista.

---------

De autoridade (authoritative): estilo de visualização científica, segue as normas acadêmicas para gráficos e mapas. Exemplo de uso: maioria dos mapas produzidos por órgãos governamentais com fins de legais e de subsídio a políticas públicas. (Fig. 1.)

Fig 1. Exemplo de mapa de autoridade. Muehlenhaus 2012.

Discreto (understated): estilo minimalista; dados são simplificados e em pequena quantidade, mostrados de modo básico, deixando de lado nuances e informações adicionais; a aparência é limpa e sem texturas. Exemplo de uso: maioria dos mapas vetoriais da Wikipédia. (Fig. 2.)


Fig 2. Exemplo de mapa discreto. Muehlenhaus 2012.

Propagandista: os dados são apresentados de modo altamente enviesado (ainda que possam ser cartograficamente adequados) com ênfase no extremo da hierarquia visual para que a mensagem não seja perdida. Textos com palavras fortes são usados nos títulos, legendas e outros locais do mapa. Exemplo de uso: mapas governamentais divulgados para angariar apoio da população para os esforços contra o inimigo durante a Segunda Guerra Mundial. (Fig. 3.)

Fig 3. Exemplo de mapa propagandista. Muehlenhaus 2012.

Sensacionalista: combina a sobrecarga de informações de um mapa de autoridade com o viés de apresentação do mapa propagandista. Exemplos de uso: ilustrações acompanhando peças publicitárias. (Fig. 4.)

Fig 4. Exemplo de mapa sensacionalista. Muehlenhaus 2012.

---------

Um mapa de cada estilo foi produzido representando os níveis de radiação em diferentes áreas dos Estados Unidos que seriam atingidas em um hipotético acidente nuclear em uma usina no estado de Washington. Voluntários visualizavam os mapas e respondiam a um questionário online que avaliou: 1) a crença nos dados mostrados nos mapas; 2) o impacto dos mapas nas visões pessoais sobre a energia nuclear; 3) a confiança nos mapas; 4) a preferência sentimental pelos mapas e 5) o quão memoráveis eram os mapas. As questões dos itens 1 e 2 foram respondidas após os voluntários verem um dos quatro tipos de mapa; as de 3 a 5 após verem os quatro tipos de mapa.

Das 112 respostas válidas, cerca de 2/3 eram de homens e 1/3 de mulheres. E cerca de 80% eram jovens de 18 a 25 anos. 8% eram extremamente contrários à energia nuclear, 18% contrários, 18% um pouco contrário; 20% indiferentes; 25% um pouco a favor e cerca de 11% a favor. Não houve nenhum que se declarasse extremamente a favor.

A crença em que a região em que o respondente morava seria atingida no caso do hipotético acidente foi similar aos que viram os mapas do tipo: discreto, sensacionalista e de autoridade; mas a crença de "certeza absoluta" chegou a 60% entre os que viram o mapa propagandista, contra cerca de 20 a 27% entre os que viram outros estilos de mapa. Em todos os tratamentos houve um aumento da posição de oposição à energia nuclear. Em ordem crescente de aumento da oposição: de autoridade, discreto, propagandista e sensacionalista.

65% dos respondentes consideraram estilo de autoridade como o mais confiável, seguido do sensacionalista: 23%, discreto: 7% e propagandista: 5%. 36% gostaram mais do de autoridade, 26% do sensacionalista, 20% do propagandista e 18% do discreto. 46% consideraram que o tipo propagandista era o mais memorável, 28% o discreto, 14% o sensacionalista e 12% o de autoridade.

Em relação à retórica dos mapas, Muehlenhaus conclui que:

  1. "O feio é memorável." Mapas com design desagradável mais provavelmente se fixam por mais tempo na memória.
  2. "O viés é atrativo." Mapas apresentação de dados mais ostensivamente enviesados são mais bem apreciados.
  3. "Ignorância é confiança." Mapas com menos detalhes e menos dados são mais convincentes para a maioria dos leitores.

Referência

Muehlenhaus, I. 2012. If Looks Could Kill: The Impact of Different Rhetorical Styles on Persuasive Geocommunication, The Cartographic Journal 49(4): 361-375, DOI: 10.1179/1743277412Y.0000000032

----

Upideite(17.nov.2022): Há, claro, algumas limitações em relação ao estudo. Não apenas a restrição do fato de amostra não ser aleatória nem representativa (as repostas das mulheres, p.e., são diferentes das respostas dos homens e há um viés de maior participação de homens entre os voluntários, além da maior concentração etária na faixa dos jovens adultos em relação à população em geral); mas a natureza do questionário é de autoavaliação. P.e., o fato de as pessoas dizerem que algo é memorável, não quer dizer necessariamente que esse algo será o mais lembrando depois de um tempo. Isso seria um ponto a se testar.

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails