Lives de Ciência

Veja calendário das lives de ciência.

sexta-feira, 27 de março de 2020

A pandemia de COVID-19 *NÃO* é uma gripezinha

Embora alguns insistam no erro de chamar a doença provocada pelo novo coronavírus (com o complicado nome de SARS-CoV-2 - 'Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2', isto é, uma segunda linhagem de coronavírus que causa uma doença parecida com a SARS) de "gripezinha", outros, como o caso da neurocientista e divulgadora científica Suzana Herculano-Houzel revêem a posição.

Por que o mais provável é que a COVID-19 ('Coronavirus Disease 2019' - doença do coronavírus de 2019) seja mais letal e se espalhe mais do que, por exemplo, a famigerada gripe espanhola - uma das pandemias mais graves enfrentadas recentemente pela humanidade com uma linhagem especialmente letal de vírus da gripe.

Uma pessoa infectada com a cepa do vírus da gripe espanhola, em média, acabava infectando outras 1,7-2,0 pessoas (o nome técnico para isso é 'número básico de reprodução' e é simbolizado por R0). Já alguém infectado pelo SARS-CoV-2, na média, passa o vírus para outras 2,24 a 3,58 pessoas.

Além disso, a cada mil pessoas infectadas pelo vírus da gripe espanhola, algo entre 5 e 24 pessoas morriam, isto é, tinham uma CFR ('case fatality rate', taxa de casos fatais) entre 0,05 e 2,4%. Já para a COVID-19, a CFR é algo entre 0,15 e 5,25%.

Outras doenças atuais que enfrentamos tem um potencial maior de se espalhar e é mais letal. Caso da febre amarela: R0 entre 1,5 e 5 e CFR de até uns 7%. Mas há uma vacina eficaz contra a doença, coisa que ainda não temos contra a COVID-19. A febre do vírus zika não tem vacina e também tem um poder maior de disseminação:  R0 entre 1 e 7, mas a letalidade em adultos é virtualmente zero - e há formas de enfrentamento que não necessitam o isolamento de doentes e suspeitos: combatendo o vetor: no caso da COVID-19, ela pode passar de pessoa para pessoa através de gotículas de saliva no ar. A dengue, embora tenha vacinas contra os tipos circulantes no país, a aplicação desta ainda está em fase de testes (há a complicação porque a forma hemorrágica pode se desenvolver em pessoas que têm a dengue mais de uma vez), mas também pode ser combatida com a evitação do vetor, o mesmo mosquito que transmite a zika.

Sendo uma doença nova e, assim, contra a qual ainda não há vacinas nem medicamentos curativos (o tratamento é sintomático e paliativo), nem uma imunidade natural na maioria da população, com um nível de letalidade razoável e também de potencial de espalhamento, é um perigo subestimá-la - especialmente no caso de autoridades que precisam traçar e implementar estratégias eficientes em seu combate. Não se trata de negligenciar outras doenças também graves e potencialmente danosas, mas é preciso enfrentar também a COVID-19, pelo potencial grande de dano.

quarta-feira, 25 de março de 2020

Pode haver bem mais do que 5 mil ou 7 mil mortos se a economia não "parar" e nada for feito

Parece equivocado o argumento de uma importante figura empresarial brasileira contra as medidas de restrição de deslocamentos da população no enfrentamento da pandemia de COVID-19 (como adotadas em vários países). Na verdade, se não houver nenhuma restrição, o total de mortos pode chegar ou ultrapassar facilmente a cada do milhão de mortos.

A fração atual de mortos no Brasil é de cerca de 2% do total de casos confirmados (47 mortes em 2.201 em 23.mar) de infecção pelo SARS-CoV-2 (o novo coronavírus). Se apenas 50% dos brasileiros se infectarem com o vírus - o que daria cerca de 100 milhões de pessoas -, seriam 2 milhões de mortos. A China conseguiu conter os casos no nível de algumas dezenas de milhares justamente pelas medidas de restrição - com quarentenas, testes e monitoramentos. O nível de 5 mil a 7 mil mortos totais mencionados pelo empresário como sendo poucos diante do que a economia nacional pode sofrer com as medidas são os projetados exatamente se tais restrições foram adotadas: a comparação com eventuais perdas econômicas das quarentenas e toques de recolher seria com o cenário em que eles *não* fossem adotados. Além das mortes, há que se contabilizar também os casos graves - que necessitam de interação e tratamentos intensivos.

Adotando-se o padrão de casos graves e mortes por idade observado nos Estados Unidos (Fig. 1) e a distribuição etária da população brasileira em 2010, com nível de infecção de 50% da população, é de se esperar 7,8 milhões de internações na UTI em função da COVID-19 no país e 1,6 milhão de mortes.

Figura 1.  Variação dos quadros de gravidade de COVID-19 em pacientes de acordo com a idade. Fonte: CDC/EUA, Tian et al. 2020/China (Beijing)


É a partir desses números que se faz a análise de benefício/custo. 7 mil mortes somem diante de 1,6 milhão.

Na Fig. 2, podemos acompanhar a variação do número de casos em diversos países.

 
Figura 2. Variação do total de casos confirmados em diversos países. Eixo vertical em escala logarítmica.

A China implementou o lockdown, restrição severa de deslocamento e fechamento de vários estabelecimentos considerados não-essenciais (basicamente o que não estava envolvido com alimentação, saúde, limpeza e segurança), em 23 de janeiro (quando contava então com 18 mortos e 600 casos no país) na região de Hubei, um dos locais mais fortemente atingidos no pais. Desde, então, na província, o número de novos casos têm diminuído - há cerca de 30 dias, os casos confirmados estão em cerca de 80.000 pessoas. Na Itália, a quarentena só foi imposta (nacionalmente) a partir de 9 de março (quando contabilizavam 9.172 casos na Velha Bota): localmente, em algumas províncias e cidades, governos locais haviam imposto quarentena a partir de 23 de fevereiro (quando contava com 157 casos conformados em todo o país): a curva parece estar diminuindo o ritmo de crescimento desde então. A França, que anunciou o lockdown no dia 16 de março (com 5.360 casos confirmados), também parece começar a apresentar um ritmo menor de aumento do número de casos.

A restrição não é a única alternativa, porém as outras opções também demandam bastante esforço e trazem consequências a valores bastante caros a sociedades democráticas. Por exemplo, na Coreia do Sul, são testados todos os casos suspeitos e todas as pessoas que tiveram contatos são monitoradas (colocando em quarentena todos os casos confirmados e os suspeitos ainda não testados). O país tem realizado cerca de 20 mil testes por dia, numa escala linear seria o equivalente ao Brasil realizar 80 mil testes diários. E a testagem é uma estratégia que só deve funcionar se instalada desde o início, quando a pandemia já estiver localmente espalhada dificilmente será possível monitorar todos os casos. Outra estratégia (considerada bastante invasiva da privacidade), também adotada pela China, é uma ampla e intensa vigilância sanitária em todos os pontos públicos: com aparelhos para medições de temperatura corporal em tempo real (para detectar potenciais casos de febre) e câmeras de vigilância com reconhecimento facial.

Veja também:
Atila Iamarino. 20.mar. O que o Brasil precisa fazer nos próximos dias.
Atila Iamarino. 22.mar. Por que é importante ficar em casa.
Dalson Britto Figueiredo Filho & Antônio Fernandes/Revista Questão de Ciência. 24.mar. Três cenários para o coronavírus no Brasil.

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails