Lives de Ciência

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domingo, 23 de fevereiro de 2014

Especulando: Beleza, esporte e dinheiro

Em meio às polêmicas, as Olimpíadas de Inverno Sochi 2014 são desculpas para requentar (pun intended) aquelas materinhas clássicas de eventos esportivos: as beldades nas quadras, pistas, campos...

Assistindo às transmissões, longe de ser um levantamento sistemático estatisticamente válido, reparei mesmo na beleza das atletas. Uma hipótese que já há algum tempo alimento é que atletas de esportes individuais seriam, na média, mais bonitas do que: a) a média das atletas (versão fraca da hipótese); b) a média das mulheres (versão forte).

Fiz uma pequena sondagem da versão fraca entre meus seguidores no twitter. Montei um pequeno formulário online com fotos de tenistas profissionais: as 10 primeiras colocadas (em 9/fev/2014) e outras 10 cujo ranqueamento médio foi de 247,2° (é possível um ranquingue fracionário?) e desvio padrão de 16,1 posições. As médias de idade foram: 27,1±3,31 anos e 25,5±5,25 anos respectivamente e o número de torneios disputados considerados para a classificação: 19,8±2,86 e 20,8±3,19. Para cada uma o entrevistado deveria atribuir uma nota de 0 - nada atraente a 5 - extremamente atraente. Entre 7 respondentes (todos homens)*, o resultado foi:

Tabela 1. Avaliação de beleza física de rostos
de tenistas mulheres profissionais.
Nota Top 10
~247°
0
2
3
1
6 11
2
8 11
3
18 23
4
27 16
5
9 6
Média 3,29±0,75 2,79±0,85

Aplicando-se um teste qui-quadrado, temos p=0,019.

Claro, é apenas um pré-teste, com baixo número de avaliadores, e se refere a apenas uma modalidade.

Se a diferença for real, minha hipótese explicativa (sem exclusão de outras) principal é: esportistas bonitas conseguem obter mais e melhores patrocínios, uma vez que empresas gostam de associar suas marcas a pessoas bonitas; com mais dinheiro, podem se preparar melhor (têm mais tempo para treinar - já que não precisam desenvolver outras atividades para se sustentar; podem pagar treinadores mais qualificados; têm à disposição equipamentos superiores; podem viajar e participar de mais competições; podem ter uma melhor base nutricional...) e ter melhor desempenho.

Hipóteses alternativas podem ser: genes bons (via seleção sexual, genes que proporcionam beleza estariam ligados a genes que promovem uma boa constituição física e fisiológica em geral); socioeconômica (muitos esportes são caros, a prática fica em grande parte restrita à elite socioeconômica, que tem também acesso a mais recursos auxiliares à beleza: cosméticos, cirurgias plásticas, melhor nutrição, menos exposição à doenças... - pode se dar do nascimento ou pela aquisição de melhor status socioeconômico com o desempenho no esporte); condicionamento físico (o preparadoa preparação para o esporte levando a um maior cuidado com o corpo)...

No caso da confirmação da hipótese da beleza/desempenho esportivo via patrocínio, um corolário seria que em esportes de elite - com equipamentos mais caros, como o caso de muitos esportes de inverno - a relação seria ainda mais forte.

Ressaltando mais uma vez que esta é apenas uma especulação com, até o momento, pequeno suporte empírico sistemático (embora não nulo).

Implicações sociais - como referentes a patrocínios não-mercadológicos ao desporto e programas governamentais de incentivo ao esporte amador - podem ser entrevistas. Uma certa relativização da atribuição de meritocracia estrita aos resultados das competições esportivas também seria uma consequência possível.

*Obs: Agradeço à participação dos colaboradores nas respostas.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Entrevista com um entomólogo - Elidiomar Silva

O Prof. Dr. Elidiomar Ribeiro da Silva é entomólogo da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Recentemente, no XXX Congresso Brasileiro de Zoologia, seu grupo apresentou um trabalho inusitado no sisudo meio acadêmico: uma análise demográfica de personagens de quadrinhos de super-heróis das duas principais editoras do ramo (Marvel Comics e DC Comics) inspirados em aracnídeos. Foi o Luiz Bento, do Discutindo Ecologia, quem me chamou a atenção para o trabalho.

Abaixo reproduzo a íntegra da entrevista gentilmente concedida via email por Elidiomar Silva (e, ao fim, o resumo do trabalho).

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GR. Poderia falar resumidamente (para um público que não é da área) sobre a linha de trabalho desenvolvida por sua equipe?

ES. Sou professor de zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), lecionando nos cursos de Ciências Biológicas (tanto Bacharelado quanto Licenciatura). Minha pesquisa principal é sobre a taxonomia de determinados grupos de insetos. Recentemente passei a me interessar pela ligação entre o conhecimento científico e as manifestações culturais. Dentro dessa área o tema que mais me interessa de fato é a utilização de animais de um modo geral como inspiração para a criação de personagens de histórias em quadrinhos. O pessoal que me acompanha nessa empreitada (quase todos biólogos, a maior parte cursando Pós-Doc, doutorado ou mestrado) têm diferentes áreas de especialização. Na maioria são entomólogos como eu, mas há também um aracnólogo e até um botânico.

GR. Como surgiu a ideia do trabalho e como ele foi desenvolvido?

ES. Há tempos venho observando algo que me preocupa. O homem sempre foi fascinado pelos animais de um modo geral. Prova desse interesse é o sucesso que fazem os canais por assinatura que têm em sua grade documentários sobre natureza e vida selvagem. É impossível hoje em dia não se impressionar tanto com a qualidade dos vídeos quanto com as informações que eles passam. Isso é Zoologia, uma parte da Ciência extremamente interessante e atrativa até para o público leigo. Porém, nas aulas, o quadro é diferente. Temos um conteúdo técnico vasto (morfologia, fisiologia, taxonomia, filogenia) que deve ser ministrado e, embora a clientela seja amigável (afinal, alunos de Ciências Biológicas naturalmente têm interesse no estudo dos animais), eu percebia que faltava algo em meus alunos, faltava tipo um "brilho nos olhos". Brilho que muitas vezes eu vejo nos telespectadores (eu, inclusive) de documentários da TV. Conversando com colegas e alunos que passaram pelas minhas disciplinas chegamos à conclusão que o caminho é tentar tornar as aulas mais agradáveis, palatáveis (mas sem abrir mão do conteúdo técnico). Assim, de uns tempos para cá, tenho proposto aos alunos uma atividade opcional: escolher um personagem de HQ que tenha sido baseado em algum artrópode e fazer uma análise, à luz dos conhecimentos técnicos obtidos na disciplina, das suas características (poderes, comportamento, vestimentas, etc.). O resultado tem sido bem satisfatório, os alunos se empolgam completamente com a atividade. Aí reuni um pessoal com interesse no tema, pesquisamos e nos impressionamos com a quantidade de personagens. Realmente há muita coisa a fazer.

GR. Quando submeteram o resumo, tinham confiança de que a organização do congresso teria abertura para um trabalho dessa natureza?

ES. O primeiro trabalho que elaboramos dentro desse tema foi centrado em 50 personagens baseados em animais, tendo sido apresentado em um congresso interno da minha universidade. O segundo trabalho foi apresentado no II Entomorio (Simpósio de Entomologia do Rio de Janeiro) e versava sobre personagens baseados em insetos. Houve ainda um terceiro, constituído do relato das atividades dos alunos da minha disciplina, também apresentado internamente na UNIRIO. Os três resumos foram submetidos ao crivo de avaliadores anônimos, mas que certamente me conhecem de alguma forma. Eu achava que talvez isso pudesse ter ocasionado um cenário favorável à aceitação dos resumos. Ao submetermos o trabalho sobre personagens baseados em aracnídeos a um congresso de âmbito nacional, não tínhamos a menor noção do que poderia acontecer. Na verdade, penso que o trabalho tem qualidade, está bem escrito, é relevante e apresenta uma abordagem inédita dos dados, ou seja, considero justíssima sua aprovação por parte da organização do congresso. Mas como normalmente o cientista é um sujeito conservador por natureza (embora paradoxalmente viva de descobertas e novidades) e nosso trabalho não é lá muito convencional, eu tinha um certo receio que ele fosse rejeitado.

GR. Como foi a reação dos participantes do CBZ durante a sessão de pôsteres?

ES. Infelizmente não pude estar presente na apresentação, mas meus colegas me relataram que a reação foi a melhor possível. O trabalho já é por si só atraente por fugir do padrão, mas, além disso, o pessoal conseguiu ver Ciência na nossa abordagem.

GR. Há, claro, um lado inusitado da abordagem da cultura pop dentro de um evento de ciências naturais; mas, para além do inusitado, como seu grupo enxerga a contribuição que o trabalho traz: dentro da academia e em termos de divulgação das ciências?

ES. Estamos muito entusiasmados. Se em uma sala de aula de graduação a incorporação de elementos da cultura pop (ou seja, coisas que estão no nosso dia a dia) se mostrou benéfica, o que dirá no ensino fundamental e médio? Grande parte dos alunos da minha disciplina é formada por licenciandos. Daqui a pouco essa garotada estará lecionando, muitas vezes em locais carentes, e a busca pela atenção dos alunos será um desafio. Esse pode ser um caminho a ser explorado. Quanto à academia, tenho percebido um cenário cada vez mais favorável, vejo com bons olhos o número crescente de publicações que abordam a associação entre ciência e literatura, música, cultura de um modo geral. Estamos finalizando um artigo sobre o tema e, tudo correndo bem, acredito que dentro de 1 ou 2 meses partiremos para a submissão.

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Os Aracnídeos como inspiração para personagens dos Universos Marvel e DC
Elidiomar Ribeiro Da-Silva*, Luci Boa Nova Coelho**, Thiago Rodas Müller de Campos*, Allan Carelli***, Gustavo Silva de Miranda***, Edson Luiz de Souza dos Santos*, Tainá Boa Nova Ribeiro Silva**** & Maria Inês da Silva dos Passos
* Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, **Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro,***Museu Nacional, Rio de Janeiro, ****Sistema Elite de Ensino

A despeito de ser um processo com liberdade criativa, a composição de um personagem das histórias em quadrinhos (HQs) muitas vezes recebe interessantes influências da vida real. Face à forte ligação dos aracnídeos (especialmente aranhas, escorpiões e ácaros) com o ser humano, não é de se estranhar que eles tenham servido de inspiração para muitos personagens da ficção. Considerando apenas as duas principais editoras estadunidenses de HQs, a DC Comics e a Marvel Comics, foi realizado um inventário dos personagens de algum modo inspirados em aracnídeos. Os personagens foram classificados de acordo com a editora, o papel social (herói ou vilão), a classificação taxonômica (ordem) do aracnídeo que o inspirou e a década de criação. Os personagens foram ainda classificados quanto à presença ou ausência de alguma característica popularmente associada a aracnídeos, como produção de teia, inoculação de peçonha, quatro pares de pernas e capacidade de escalar superfícies verticais. As classes foram estatisticamente comparadas por meio do teste do Qui-quadrado de Pearson. Até o presente foram contabilizados 78 personagens da Marvel e 22 da DC com algum tipo de inspiração em aracnídeos. A maioria dos personagens foi criada mais recentemente, a partir dos anos 1990. Como provável consequência do extremo sucesso do Homem-Aranha, sua principal criação e um dos ícones da cultura pop, a Marvel possui significativamente mais personagens aracnídeos que a DC. Quanto à classificação taxonômica, os personagens foram baseados majoritariamente na ordem Araneae, em relação às outras ordens (Scorpiones e Acari). Significativa parcela do montante de personagens é formada por vilões, o que está dentro do esperado, posto que aranhas, escorpiões e ácaros costumam ser considerados “nocivos” pelo público em geral. A esmagadora maioria dos personagens possui pelo menos uma das características consideradas como típicas de aracnídeos. É interessante destacar que, embora os personagens aracnídeos constituam um grupo relativamente numeroso, pouquíssimos são aqueles de reconhecido destaque, todos concentrados na Marvel. Além do já citado Homem-Aranha, suas encarnações em realidades alternativas e universos paralelos, e seus vilões (como Venom, Carnificina, Tarântula e Escorpião), somente a Viúva Negra é bem conhecida por parte do não-aficionados em HQs. Isso devido aos recentes lançamentos da Marvel no cinema. 
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O pôster pode ser melhor visualizado aqui.

Upideite(16/jul/2014): O professor Elidiomar Silva e colaboradores publicaram um novo trabalho: Da Silva, E. R.; Coelho, L.B.N. & Silva, T.B.N.R. 2014 - A Zoologia de 'Sete Soldados da Vitória': análise dos animais presentes na obra e sua possível utilização para fin didáticos. Encicl. Biosf. 10(18): 3502-25.

Upideite(10/out/2015): Leia também "Revista em quadrinhos é objeto de estudo de zoólogos"

domingo, 16 de fevereiro de 2014

O telefone sem fio: "Não é tubarão elefante, é tubarão elefante"

Não foi exatamente um pressentimento, mas cheguei a comentar no twitter o problema de chamar o Callorhinchus milii, um peixe cartilaginoso holocéfalo (comumente conhecido como quimera), de tubarão elefante, em tradução direta de "elephant shark". "Tubarão elefante", em português, é mais usado para outra espécie, o Cetorhinus maximus, um peixe cartilaginoso elasmobrânquio, também chamado de tubarão-peregrino e, em inglês, mais comumente chamado de "basking shark" (e, ocasionalmente, também de "elephant shark").


Pois eis que vejo que o G1, reproduzindo material da EFE, confundiu as duas espécies (Fig. 1). (Sim,é coisa de janeiro, mas até agora não foi corrigido.*)***
Figura 1. Print de tela da reportagem do G1.

"Pesquisadores da Espanha sequenciaram o genoma do tubarão-elefante (Cetorhinus maximus) e encontraram genes que impedem a calcificação das cartilagens, o que pode abrir novas vias de estudo voltados a doenças ósseas como a osteoporose, de acordo com a revista 'Nature', que teve publicada nesta quinta-feira (9) sua edição impressa."

O artigo na revista cientifica britânica, claramente, denomina Callorhinchus milii. Não sei como se deu exatamente a transmutação: se alguém tentou corrigir o nome científico da espécie ou se o press release não mencionava (acho pouco provável) e isso foi introduzido na reportagem.

Como vários sítios web que reproduzem material da EFE não mencionam o nome científico, apenas "tiburón elefante" (nota, o Cetorhinus maximus, em espanhol é mais comumente chamado de "tiburón peregrino"), por exemplo, este, este e este (repare-se que as redações não são exatamente iguais), parece que a introdução posterior foi realizada pelo próprio G1. A foto usada para ilustrar a reportagem é a mesma que aparece no artigo da Wiki-PT sobre "tubarão elefante" e o artigo da Wiki-PT é o primeiro resultado na busca por "tubarão elefante" no Google. Se foi isso que ocorreu não posso dizer, mas me parece plausível.**

Dá algumas coisas a se pensar a respeito da prática atual do jornalismo sobre ciências. Vai desde a necessidade de se conferir a fonte original, à pressa da apuração, da necessidade de se investir na qualidade do profissional à crise atual do jornalismo em geral (com redações reduzidas, profissionais sobrecarregados, preferência a profissionais inexperientes por mais baratos...)

(Via Victor Rossetti FB.)*

*Upideite(17/jan/2014): adido a esta data.
Upideite(17/fev/2014): Veja se "quimera nariz de arado" não é um nome muito mais descritivo (além de bem menos indutor de erro) na foto abaixo (Fig. 2) do Callorhinchus miliii.

Figura 2. Callorhinchus miliii, nomes populares em inglês: "Australian ghostshark", "elephant shark", "makorepe", "whitefish", "plownose chimaera", "elephant fish". Fonte: Wikimedia Commons.
**Upideite(18/fev/2014): Em contato com o G1, eles informam que o erro foi da Efe.
***Upideite(19/fev/2014): Corrigiram o nome, mas ainda não trocaram a foto.****
***Upideite(19/fev/2014): Já trocaram a foto.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Os senões dos senões da vacina contra o HPV

Eu respeito muito o trabalho da Claudia Collucci na Folha em seu jornalismo de saúde, até por isso me causou uma estranheza maior o espaço que ela deu - sem um contraponto adequado** - às alegações a respeito da eficiência ou não da vacinação contra o HPV.

O entrevistadoespecialista**** diz que há mais de 100 subtipos do vírus HPV, o que é verdade; mas ele não diz que: a) somente cerca de 40 são capazes de infectar o trato anogenital; b) são cerca de 13 subtipos que são considerados oncogênicos (com potencial de causar o desenvolvimento de câncer) e c) dois (os subtipos 16 e 18) estão presentes em 70% dos casos de câncer (Divisão de Apoio à Rede de Atenção Oncológica - DARAO/INCA). A quadrivalente oferecida pelo SUS cobre esses dois subtipos, mais o 6 e o 11.

O exame papanicolau é de fato muito importante, ainda assim todos os anos cerca de 17.500 novos casos são detectados (uma incidência de 17 novos casos/ano a cada 100 mil mulheres), dos quais 95% são atribuíveis ao HPV (ou seja, se nem toda infecção por HPV causa câncer - apenas cerca de 5% das mulheres infectadas virão a desenvolver -, a quase totalidade dos casos de câncer de colo deve ser causada pelo HPV). A taxa de mortalidade devido à doença é estimada em torno de 5 mortes a cada 100.000 mulheres: com uma população feminina de 100 milhões de habitantes, isso representa mais de 5.000 mortes por ano.

A vacina não é 100% eficiente (nenhuma é, mais, nenhum procedimento é 100% eficiente, nem o papanicolau: que tem uma eficiência entre 80% e 90%, com cobertura suficiente boa e regularmente realizado) e as mulheres que já têm uma vida sexual ativa muito provavelmente já estão infectadas (80% das mulheres sexualmente ativas estão infectadas por um ou mais subtipos), mas o grupo alvo são meninas de 11 a 13 anos - boa parte das quais ainda não iniciaram sua vida sexual - nas quais a eficiência é de 98,8%.

Ao custo anual de R$ 1,1 bilhão, o programa é o financeiramente mais custoso dentro do Programa Nacional de Imunização. Serão 5,2 milhões de meninas, cobrindo 80% da população na faixa etária. Se (e é um enorme se) as complicações atribuídas por alguns estudos se confirmarem e usarmos a taxa aceita pelo especialista (de 1 caso a cada 30.000), estaremos falando em cerca de 173 casos por ano.

Então temos 173 casos/ano de complicações contra 5.000*0,95*0,7*0,8*0,988=3.7542.628 mortes evitadas (13.1409.198 casos evitados) por ano - cerca de R$ 300.000418.500 por morte evitada. Deal.

As quatro perguntas:
1) Já temos alguma estratégia efetiva na prevenção da doença? O que a vacina traz de novo?
2) A vacina realmente funciona?
3) Ela é segura?
4) Vale a pena substituir a estratégia anterior pela vacina?

Merecem, então, outras respostas:
1) Sim. A vacina ajuda a evitar os casos que o papanicolau não evita;
2) Sim. E tem exatamente como público-alvo da campanha de vacinação aquelas para quem a eficiência foi verificada (meninas de 11 a 13 anos).***
3) Sim. Mesmo admitindo-se o taxa utilizada pelo especialista para tentar sugerir o contrário.
4) Pergunta sem sentido porque a vacinação declaradamente *não* procura substituir o exame papanicolau, mas procura *complementar* a estratégia.

É muito, muito estranho que o especialista se valha de argumentos falaciosos (quando muito dizem apenas meia verdade) para criticar o programa de vacinação contra o HPV. Críticas são importantes para o melhor cálculo de riscos e benefícios e a relação com os custos*, mas devem ser críticas pertinentes. Jornalistas devem estar atentos para evitar armadilhas - a necessidade de ouvir o "outro lado" é compreensível, porém não dá pra ser ingênuo e dar espaço sem exercer uma análise crítica.

(Via @Cardoso)

*Upideite(08/fev/2014): Bom dizer que foi realizado um estudo a pedido do governo brasileiro da eficácia da vacinação e uma análise benefício/custo.
**Upideite(08/fev/2014): No dia seguinte à publicação da coluna, a jornalista publicou um contraponto (não por coincidência exatamente com o mesmo nome que dei a esta postagem - não combinamos, claro, mas é um título bem óbvio).
***Upideite(08/fev/2014): Há estudos mostrando eficiência profilática (para os casos em que as mulheres já estão infectadas pelo HPV) das vacinas (e.g. The Future II Study Group 2007Koutsky & Harper 2006)
****Upideite(09/fev/2014): Especialista em medicina da família.

Upideite(13/mar/2014): Outros blogues estão também comentando sobre a vacinação e a resistência à ela.

Upideite(26/mar/2014): Aqui um estudo de 2007 da OMS sobre o HPV e as vacinas.
*****Upideite(26/abr/2014): Adido a esta dada.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Ciência: curiosidade e poder

A Agência Fapesp publicou uma interessante entrevista com o nobelista Erwin Neher. Destaco dois trechos:

"Agência FAPESP – Já que o senhor mencionou o tema educação científica, acredita que o ensino e a divulgação científica são atividades que devem fazer parte da carreira de um cientista? 
Neher – Claro que os cientistas devem fazer um esforço para explicar ao público como o dinheiro está sendo gasto. Também devem contribuir para recrutar jovens cientistas e torná-los interessados em sua pesquisa. Mas nem todo bom cientista é um bom comunicador; não podemos esperar que todos façam isso. Alguns são bons professores, outros apenas entediam sua audiência com detalhes sobre sua pesquisa. E isso não é bom. Por outro lado, na Alemanha, temos um jornalismo científico muito elaborado, com pessoas engajadas e treinadas para comunicar e fazer as coisas parecerem mais interessantes. Minha posição é: sim, é importante divulgar a ciência, mas sem tornar cansativo para o público e sem gastar todo o tempo do cientista com divulgação.

Agência FAPESP – Qual conselho daria aos jovens pesquisadores brasileiros? 
Neher – Para um cientista, é realmente importante ser cativado por um problema e isso significa estar constantemente pensando a respeito desse assunto. É o que chamo de estilo de vida da ciência. Claro que é impossível fazer isso 24 horas por dia; é preciso dormir, interagir com a família e tudo o mais. Mas, pelo menos, sempre que estiver sozinho, nos momentos tranquilos, deve-se pensar sobre seu problema, avaliar os experimentos de seu laboratório em um outro contexto, comparar os resultados com sua hipótese e tentar buscar soluções de diferentes ângulos. O jovem pesquisador deve avaliar se tem essa curiosidade que o cativa. Em seguida, deve avaliar se o problema que o instiga é pelo menos importante o suficiente para lhe prover o sustento. Afinal, não se vive de ar. Uma vez que esses dois requisitos forem atendidos, deve verificar se tem as habilidades que o tornam capaz de alcançar seus objetivos."

Na questão da DC, é coisa a se pensar, mas, porém, todavia, contudo, talvez mesmo uma comunicação entediante por parte de alguns cientistas traria benefícios - de um lado, a prática permite algum grau de aperfeiçoamento; de outro, alguém com mais paciência poderia garimpar informações importantes (os outros sempre poderão recorrer a outras fontes, inclusive os jornalistas de ciências).

Agora, sobre o conselho aos jovens pesquisadores, Neher também associa a prática científica à curiosidade. Vários cientistas - famosos e nem tanto - igualmente fazem essa relação como na série "Por que pesquiso?" deste blogue.

Em uma ação de autoplágio (em uma visão mais autocondescendente: em uma ação ambientalmente correta de reciclagem de bits), irei repetir o que publiquei alhures.

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Se você pede pra um cientista natural definir ciência, muito provavelmente sua definição irá gravitar em torno da palavra "curiosidade". Se você pede pra um cientista social definir ciência, muito provavelmente sua definição irá gravitar em torno da palavra "poder".
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Um cientista social, particularmente um sociólogo das ciências, tende a ser mais leniente com a filosofia. Aceita a frequentemente lembrada história de que para Platão (secundado por Aristóteles) a filosofia começa com o assombro. E só lembra da influência da filosofia nas questões políticas para realçar sua importância - raramente para expressar os perigos potenciais dos processos filosóficos.

As ciências ainda não romperam o cordão umbilical com a filosofia - da qual brotaram como filosofia natural. (Ainda que uma porção não insignificante dos cientistas naturais vejam a filosofia com desdém.)
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O "poder" em si não parece ser um bom elemento definidor de ciência. Sim, a produção das ciências envolve poder. Sim, o poder se vale das ciências. Mas: *toda* ação humana (ação e omissão voluntária) - filosofia, arte, esporte, economia... - envolve poder em sua constituição. E todo elemento de ação humana pode ser cooptado pelo poder - sim, inclusive a arte: toda comunicação governamental que se preze define uma marca estética das peças (logomarcas, paleta de cores, grafismos, trilha sonora...).

O fazer arte é política, apontam sociólogos em exaltação. O fazer ciência é política, apontam sociólogos em censura.

O poder pode ser uma característica necessária das ciências - ainda que seja uma afirmação duvidosa, aceite-se para fins de argumentação. Mas não o é suficiente para caracterizá-la, portanto.
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E "curiosidade" seria um bom elemento definidor de ciência? Não haveria curiosidade na filosofia, na arte, no esporte, na economia...? Sim, claro que há. Mas não é a partir disso que se aproximam das ciências?

Um amante dos esportes não cria uma ciência dos esportes ao tentar descobrir padrões de vitória e derrota? Não temos uma ciência econômica quanto tentamos saber por que o desemprego se mantém baixo mesmo em cenário de baixo crescimento? Não temos uma ciência (psicologia) da arte ao se tentar traçar quais elementos de uma obra levam o público a ter uma reação positiva ou negativa? A filosofia... bem, as ciências são filosofia natural, já disse.
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Então deixem-me valer de uma solução de compromisso.

Ciência é a ação política da curiosidade.
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Upideite(08/abr/2016): Um levantamento com cerca de 400 cientistas americanos membros de associações como a Academia Nacional de Ciências resultou numa lista ordenada dos valores fundamentais ('core values') que subjazem à ciência de excelência (Fig. 1).

Figura 1. Principais valores para a produção de uma ciência de excelência segundo cientistas americanos de elite. (Cada um deveria escolher 3 opções.) Fonte: Reunião Anual 2016 da AAAS.

via @luizbento

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