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segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Como é que é? - Só especialistas podem fazer Divulgação Científica? Spoiler: Não.

A resposta à pergunta do título desta postagem é um sonoro não. Mas é uma questão que parece ressurgir de tempos em tempos - talvez quando neófitos, pouco afeitos às pesquisas na área de Divulgação Científica (DC), chegam na área.

A prédica de que a somente quem entende do assunto poderia falar sobre ciência vem em dois grandes sabores:

a) só quem tem formação em ciência pode falar sobre ciência (parece ser a variante mais comum, mas  seria preciso um levantamento sistemático para se confirmar ou não a impressão);

b) só quem tem formação em comunicação pode falar sobre ciência (e, na verdade, sobre qualquer coisa) para o público;

Lá em 2009, durante o 2o Euclipo, em uma das sessões essa pergunta foi colocada - mais de modo retórico - e a conclusão também foi a de que há espaço para todos - e, mais do que espaço, a necessidade de que todos contribuam na divulgação das ciências. E certamente discussões e conclusões parecidas foram feitas e tomadas muitas vezes antes também.

Há vários motivos pelos quais todos - e não apenas cientistas e profissionais da comunicação - podem (e, de um certo modo, até devem) comunicar sobre ciências.

1) A comunicação é um direito fundamental. Feita de modo responsável e correta não há que se cercear a liberdade das pessoas em falar sobre o que quiserem; do contrário incorremos em censura. A informação também é um direito - e que garante outros -, cerceando a liberdade de comunicação, também estaremos diminuindo o direito à informação.

2) Os públicos são diversos e cada público responde de modo diferente a diferentes ações de comunicação: que são feitas com diferentes enfoques, com diferentes linguagens, por diferentes meios, com diferentes referências, sobre diferentes temas, etc. Diferentes atores são capazes de atingir diferentes públicos com diferentes efeitos. Uma música feita por uma personalidade admirada por um determinado público, pode atingir de modo que nenhum cientista ou jornalista seria capaz. O remix da música "Bum Bum Tam Tam" do MC Fioti, enaltecendo o trabalho do Instituto Butantan (um trocadilho irresistível) na produção de vacina contra a covid-19, com vídeo lançado em janeiro de 2021, em agosto do mesmo ano já contava com mais de 13 milhões de visualizações: poucos canais de divulgação científica no Youtube (incluindo os grandes americanos) alcançam tamanha façanha. Sem falar em toda a questão da identificação, da sensação de proximidade e confiança que determinados atores podem ter junto a seu público (há todo um campo de estudo em comunicação, sociologia e psicologia sobre confiabilidade - trustworthiness e.g. NASEM 2015; Blöbaum, 2016; Weingart & Gunther 2016).

3) Ligada com o ponto 2, temos a pluralidade dos pontos de vistas. A comunicação se enriquece quando diferentes ângulos - claro, desde que sejam válidos e dentro do que se pode considerar ético e democrático (p.e. uma divulgação científica preconceituosa - digamos, uma que tente se valer de determinismo genético para implicar um ordenamento racial - não deve ser incentivada). Cientistas tenderão a ter uma visão mais voltada para interesses acadêmicos e podem deixar de prestar atenção para as preocupações mais imediatas do público não especializado. É bastante estudado, p.e., a diferença de percepção de riscos de diversas tecnologias entre especialistas e não-especialistas (e.g. Sjöberg 1999, Perko 2014): um especialista pode falar tudo de modo tecnicamente correto sobre a tecnologia e deixar de responder as dúvidas que o público realmente tem sobre a questão; em um ecossistema diverso que permita a participação de outras vozes, tais preocupações podem ser trazidas à tona e trabalhadas.

4) Ligada aos pontos 2 e 3, temos a complementaridade. Cientistas de modo geral não são treinados para a comunicação com o público não-especialista em situações que não a de ensino formal (com frequência nem para ensino formal); jornalistas e demais profissionais de comunicação normalmente não são treinados para analisar pesquisas científicas (noções de estatística, estrutura de um artigo científico, organização social da ciência e da academia, valores e critérios de validade de um estudo, etc). Seja trabalhando em conjunto, seja atuando separados, a deficiência de um pode ser compensada pela capacidade de outro.

5) Ligadas aos pontos 2, 3 e 4, temos a concorrência e independência - que, para os públicos, pode funcionar também como uma forma de complementaridade. Interesses diversos entre cientistas e jornalistas podem levar a comunicações que não abarcam todo os ângulos necessários se apenas um grupo ou outro for o único responsável pela comunicação pública da ciência. Os cientistas, de modo geral, acabam mais comprometidos com as relações acadêmicas - malfeitos, defeitos, limitações do processo científico e acadêmico podem deixar de ser devidamente comunicados ao público (há uma certa frequência de escândalos internos que a academia procura encobrir). Por outro lado, jornalistas, especialmente os que estão vinculados a determinados veículos, podem ficar limitados à linha editorial da publicação ou mesmo pode acabar preso aos interesses da empresa para a qual trabalha (com certa frequência anunciantes com interesses contrariados procuram pressionar os veículos a punir os jornalistas responsáveis pela apuração das informações que não queriam que fossem publicadas).

6) Número. Cientistas e jornalistas não são apenas em um número relativamente reduzido: são cerca de 200 mil pesquisadores e pouco mais de 40 mil jornalistas ativos no país. A maioria tem um grande número de afazeres - a maioria dos pesquisadores são também docentes e precisam se encarregar da burocracia e administração de suas instituições; jornalistas, em número cada vez mais reduzido nas redações, precisam fazer um grande número de matérias (dos mais variados temas) em um único dia. Não conheço um estudo sistemático, mas possivelmente não seriam muitos os que teriam disposição e disponibilidade para fazer DC.

7) Aproveitamento de talento. Há personalidades de divulgação da ciência tanto entre cientistas quanto entre comunicadores de reconhecida qualidade. Iberê Tenório, no Manual do Mundo, o maior canal de divulgação científica em língua portuguesa no Youtube com quase 15 milhões de inscritos, é jornalista de formação, sem treinamento formal em ciências; Atila Iamarino, outro grande exemplo atual de divulgação científica em termos de alcance e qualidade, atinge mais de 3 milhões de assinantes no canal Nerdologia (também no Youtube) e mais de 1,5 milhão em seu canal pessoal, tem formação em Ciências Biológicas e não em Comunicação. E há várias pessoas que não são formadas nem em uma coisa nem em outra que contribuem bastante e bem com a divulgação da ciência, inclusive alunos do ensino básico. Não faz muito sentido fechar o "mercado" a qualquer um deles apenas por falta de um diploma ou treinamento especializado.

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A falta de treinamento formal não significa necessariamente falta de capacidade ou conhecimento. Há inúmeros meios informais, à parte talentos que podemos chamar de inatos, pelos quais uma pessoa pode adquirir habilidade suficiente: no caso da DC, o próprio consumo de materiais de divulgação científica ajuda a criar um repertório. [Não me entendam mal: treinamento especializado tende a ajudar e podem contribuir muito; incentivo que, se tiverem a oportunidade, façam sejam especializações (como as oferecidas pelo Labjor/Unicamp, Museu da Vida/Fiocruz, Amerek/UFMG, LAbI/UFSCar), disciplinas especiais na graduação ou cursos livres e de extensão.]

Há riscos envolvidos na comunicação pública de ciências? Sim. Comunicação mal feita pode causar danos e até matar (como muitas páginas que espalham desinformação sobre vacinas). Alguns veem nisso justificativa para a restrição da comunicação (no caso, de ciências) a profissionais habilitados - como a prática de medicina é restrita a diplomados médicos, p.e. A história da regulação da medicina é relativamente intrincada, mas, simplificando bastante (talvez demais), começa por volta do fim da Idade Média, em parte por interesse das guildas médicas em deter o poder, em parte por interesse dos pacientes em ter um modo mais fácil de eleger médicos confiáveis (Park 2013). A obtenção de licença para exercer a medicina - condicionada em particular aos que tinham formação nas universidades -, no entanto, não eliminou de imediato as práticas curativas realizadas por outros atores (de religiosos a curandeiros, de apotecários a práticos). De certo modo até hoje há uma pletora de profissionais de saúde que não são médicos: enfermeiros, técnicos em radiologia, fisioterapeutas, psicólogos e até biólogos. Em parte isso motiva os grupos de pressão médicos por iniciativas como o Ato Médico - que tenta delimitar quais práticas seriam de exclusividade do profissional médico (em prejuízo das demais profissões, no entender das associações não-médicas) - e mesmo atores sem formação especializada ainda têm papel a desempenhar (mães que compram antitérmicos para seus filhos, vendidos sem receita, estão exercendo uma prática curativa dentro da liberdade que lhe cabe). De qualquer modo, *hoje* podemos justificar a regulamentação parcial do exercício de ações de saúde e, particularmente, das ações médicas - vedando sua prática a pessoas sem a devida habilitação e registro - não simplesmente porque há qualquer grau de risco, pois, p.e., o preparo de alimentos também envolve um grau de risco (intoxicação alimentar é uma consequência bastante comum de alimentos mal preparados e um certo número de pessoas morrem todos os anos); mas porque, sopesando os riscos e benefícios da regulação e de sua ausência, considera-se melhor que as ações médicas sejam regulamentadas e restritas; já no caso de preparo de alimentos, considera-se que a liberdade de que qualquer pessoa possa preparar os alimentos traz mais benefícios do que prejuízo.

Além disso, há outras formas de se circunscrever os riscos que não pela simples restrição do exercício da atividade para um determinado grupo. A principal certamente é a responsabilização pelas consequências - se alguém for negligente no preparo dos alimentos e isso resultar na intoxicação grave de pessoas, esse alguém pode ser condenado criminalmente. Outro modo é a conscientização das pessoas que pretendem preparar alimentos, com campanhas que enfatizem a necessidade de cuidado e higiene com alimentos (isso é ensinado nas escolas nos programas de educação em saúde).

Uma DC que possa ser realizada por qualquer interessado e que seja responsabilizado pelas consequências, em um ambiente em que haja troca de informações para que as pessoas possam selecionar comunicadores mais confiáveis (e.g. o selo dos Science Vlogs Brasil), educação midiática e científica, tende a trazer mais benefícios (como os listados acima) do que prejuízos (que podem ser circunscritos com essas medidas de responsabilização e conscientização socioeducativa).

Além disso, embora eu tenha enfatizado apenas dois elementos: a ciência e a comunicação - a DC se vale, pelo menos, de mais dois fatores fundamentais: a educação e os estudos sociais da ciência (Mulder et al. 2008). Ou seja, não faz muito sentido restringir a prática a apenas uma parte dos especializados em um desses fatores - estará deixando de fora 3/4 dos componentes importantíssimos para a boa DC; mas também não faz sentido restringir a prática apenas para aqueles que dominem as 4 grandes áreas que subsidiam a DC: praticamente ninguém é expert em todas elas. Faz mais sentido, novamente, que todos possam exercer a comunicação pública da ciência, havendo colaboração mútua - idealmente os projetos devem ser multidisciplinares, mas não é preciso que haja profissionais das 4 áreas em um dado projeto, é possível consultar especialistas e trocar experiências. Isso tende a criar um ecossistema comunicacional mais saudável, diverso e livre; minimizando os riscos - e permitindo que os problemas que ocorram sejam sanados mais prontamente.

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