Lives de Ciência

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sexta-feira, 29 de março de 2013

Alga na sola do sapato = arma fumegante?

Em um dos julgamentos com ampla cobertura midiática deste primeiro semestre, chamou a atenção de biólogos da blogocúndia filomática brazuca a utilização de evidência forense feita por um ficologista - identificação de algas presas na sola do sapato do réu e que são encontradas em uma represa onde o corpo foi encontrado.

Carlos Bessa, do Ciência à Bessa, comentou o caso e também a Amanda Wanderley, no Universo Plural.

Farei algumas observações que correspondem a dúvidas que tenho em relação à relevância dessa evidência para o caso. Mas não estou, de modo algum, colocando em dúvida a justeza ou não do julgamento - várias linhas de indícios foram usadas, as algas são apenas um dos elementos (e, pelo que sei, não são nem de longe o principal); muito menos colocando em dúvida a qualidade da análise do especialista. Muitos pontos que levantarei podem perfeitamente ter sido abordados no relatório elaborado, apenas que não tenho acesso a tal relatório e são pontos que não foram abordados pela mídia (minha única fonte de conhecimento sobre o caso).

Há uma certa discordância entre as fontes. Algumas falam em algas do gênero Chaetophora, outras, que eram do gênero Stigeoclonium. (Como ambos pertencem à ordem Chaetophorales, é possível que isso tenha levado à informação de que se tratasse de uma Chaetophora.)

Um problema é que espécies de ambos os gêneros têm uma distribuição muito ampla. Estão espalhados pelo globo, pelo estado de São Paulo e pela cidade. Vejamos um pouco da biologia deles:

"Chaetophora grows on submerged aquatic plants (including tree roots) and a wide variety of other submerged surfaces in springs, pools, ponds, and lakes, as well as in streams and other relatively fast-flowing water courses. Many species are most abundant in winter and spring, evidently preferring cooler water conditions." (John 2002, p. 330) ["As Chaetophora crescem sobre plantas aquáticas submersas (incluindo raízes de árvores) e uma ampla variedade de outras superfícies submersas em nascentes, lagoas, poças e lagos, bem como em riachos e outros cursos d'água relativamente rápidos. Muitas espécies são mais abundantes no inverno e na primavera, preferindo destacadamente condições de águas mais frias."]

"O gênero mais abundante foi o Stigeoclonium, que é um dos mais bem representados na maioria dos estudos taxonômicos e ecológicos envolvendo comunidades de macroalgas lóticas [...]. Algumas investigações têm registrado uma grande amplitude ecológica de determinadas espécies de Stigeoclonium. Esta relativa facilidade de ocorrência em diversos tipos de ambientes tem sido atribuída à ampla capacidade de suportar diversas condições físicas e químicas do ambinete, como temperatura, pH, tipo de substrato e velocidade da correnteza [...]" (Peres 2002)

Stigeoclonium tenue pode se desenvolver em corpo d'água tão raso quanto 2 cm (McLean & Benson-Evans 2007).*

Várias espécies de algas, incluindo as do gênero Stigeoclonium, possuem formas de resistência. Os acinetos de Stigeoclonium mantêm-se viáveis mesmo dessecados por vários meses em laboratório. "Akinetes of green algae Stigeoclonium pascheri and Pithophora oedogonia [...] germinated immediate by after formation when transferred to fresh culture media under suitable culture conditions. They can also be stored in the laboratory for several months either wet or dry or in the presence or absence of light." ["Acinetos das algas verdes Stigeoclonium pascheri e Pithophora oedogonia (...) germinaram imediatamente após a formação quando transferidos a um meio de cultura fresco sob condições de cultura favoráveis. Eles podem também ser armazenados em laboratório por vários meses estejam úmidos ou secos, seja na presença, seja na ausência de luz."]* (Agrawal 2009.)

Assim, as algas poderiam se desenvolver até em filetes que escorrem de canos de água e esgoto estourados.*

Então para a informação sobre a presença de algas na sola dos sapatos ter mais relevância, seria preciso comparar a fração de sapatos que não estiveram perto da represa onde o corpo foi encontrado com e sem algas e a fração de sapatos que estiveram na região da represa com e sem algas.

Digamos que aproximadamente a mesma fração X de sapatos tenham a alga na sola, independentemente de se estiveram ou não nas proximidades da represa. Nesse caso, a presença da alga não é informativa. Se uma fração Y de sapatos que estiveram na região do referido corpo d'água tiverem alga na sola contra uma fração Z de sapatos que não estiveram por perto; em sendo Y < Z, então a presença de alga é um fator contra a hipótese da presença do réu na área em que o corpo foi encontrado. Somente se Y > Z, a informação passa a ser relevante *a favor* da hipótese. (A análise, na verdade, seria um tanto mais complexas, já que seria preciso comparar sapatos que estiveram próximos a outros corpos d'água e sapatos que estiveram em regiões em que o réu alega frequentar.)

É bem possível que o especialista tenha levado isso em consideração, mas as informações divulgadas pela imprensa não nos permitem saber.

Referências
Agrawal, S.C. 2009. Factors affecting spore germination in algae - review. Foilia Microbiologica 54 (4): 273-302.

John, D.M. 2002. Filamentous and plantlike green algae. In: John D. Wehr & Robert G. Sheath (eds.) Freshwater Algae of North America - Ecology and Classification. Academic Press. 917 pp.

*McLean & Benson-Evans. 2007. Water chemistry and growth from variations in Stigeoclonium tenue Kütz. British Phycological Journal 12(1): 83-8.

Peres, A.C. 2002. Uso de macroalgas e variáveis físicas, químicas e biológicas para a avaliação da qualidade da água do Rio Monjolinho, São Carlos, Estado de São Paulo. Tese de doutoramento. UFSCar.

*Upideite(30/mar/2013): Adido a esta data.

quinta-feira, 14 de março de 2013

interCiência: conferindo as previsões

Alguns textos da primeira rodada do interCiência tiveram suas autorias reveladas. Por enquanto o meu método não está se saindo muito bem: quatrp cinco seis* erros e só um acerto**. Tem que haver pelo menos 4 acertos para podermos considerar o método como acertando mais do que o acaso (com alfa arbitrariamente definido em 5%). Oremos Aguardemos.


Tabela 1. Desempenho da análise de complexidade na atribuição de autoria aos textos do interCiência.
blogueprevisãoresultadoacerto
42RC
CEDEEM0
CLGR
CNCECE1
CPCR0
CRRVCN0
DECN420
EMCL
GR420
RVEMCR0
RCSB
SBCPCP1

total

*Upideite(19/mar/2013): atualizado a esta data.
**Upideite(19/abr/2013): agora são seis erros e dois acertos.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Entrevista com um neurocientista - Antonio Carlos Roque da Silva Filho

Ainda em relação aos desdobramentos do manifesto "Eu apoio a Ciência Brasileira" e da entrevista com o Prof. Dr. Márcio Moraes, por email, no dia 25/fev/2013, entrei em contato com o Prof. Dr. Antonio Carlos Roque da Silva Filho, da USP de Ribeirão Preto. Abaixo segue a entrevista gentilmente concedida pelo Dr. Antonio Roque.

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GR. Poderia descrever resumidamente sua linha de pesquisa? Bem como como surgiu o convite para integrar o comitê gestor do INCeMaq?

AR. Minha área de pesquisa é a neurociência computacional, que é o nome utilizado atualmente para se referir à neurociência teórica abordada segundo técnicas e ferramentas matemáticas e de simulação computacional. Dentro dessa grande área, desenvolvo duas linhas de pesquisa: (i) simulação computacional de modelos matemáticos de neurônios e estruturas neurais, p. ex. retina, bulbo olfatório; e (ii) modelagem matemática de comportamento de animais. O convite para integrar o INCeMaq deu-se em setembro de 2008. Meu nome foi sugerido ao Prof. Sidarta Ribeiro por colegas (eu não conhecia o Prof. Ribeiro à época) e ele me convidou. Durante a elaboração do projeto enviado ao CNPq, meu nome foi incluído como pesquisador principal do INCeMaq e membro do comitê gestor. 

GR. As decisões sobre a gestão do INCeMaq eram tomadas somente nas reuniões formais ou havia consultas por outros meios como email e telefone?

AR. Só tomei parte em discussões sobre a gestão do INCeMaq na segunda reunião, em 12/04/2011. Por e-mail, recebi apenas informações sobre a aprovação do projeto, remanejamento de recursos, datas das reuniões e solicitações sobre detalhes dos equipamentos (computadores) que deveriam ser comprados com a parte do orçamento relativa ao meu projeto.

GR. Na primeira reunião do CG, foi apenas de apresentação de projetos. O que foi tratado na segunda reunião? Algo referente a uma divisão de linhas de trabalho?

AR. Os temas tratados na segunda reunião estão listados abaixo, na ordem em que foram discutidos:
a) Informe do Prof. Miguel Nicolelis sobre sua participação na reunião dos INCTs em Brasília em novembro de 2010.
b) Criação do regimento interno do comitê gestor.
c) Leitura e aprovação da ata da primeira reunião do comitê gestor.
d) Apresentação da prestação de contas e aprovação da mesma pelo comitê gestor.
e) Distribuição das bolsas do projeto entre os laboratórios participantes.
f) Planejamento de ações para se atingir as metas científicas do projeto original. Foi discutida a organização de uma reunião de caráter exclusivamente científico, reunindo os pesquisadores principais envolvidos no projeto e alguns alunos, para promover a integração entre eles e buscar convergências de linhas de pesquisa. Me propus a organizar essa reunião em Ribeirão Preto entre 27 e 28 de junho de 2011 e todos aprovaram a ideia. Infelizmente, a reunião não ocorreu.
g) Gestão dos recursos financeiros e de bolsas do INCeMaq.
h) Apresentação da Diretora dos Centros de Educação Científica da AASDAP sobre o projeto cientistas do futuro.
i) Apresentação do Prof. Sidarta Ribeiro sobre o projeto semente (que dá atendimento a crianças de risco de uma favela de Natal).

GR. Houve tentativa anterior de encaminhar os questionamentos feitos no manifesto pessoalmente ao Dr. Nicolelis? Em caso positivo, qual a resposta? Em caso negativo, por que não foi feito?

AR. Com relação especificamente às questões feitas no quarto parágrafo do manifesto, não houve tentativa de encaminhá-las ao Prof. Miguel Nicolelis. Com relação ao questionamento geral sobre a atuação do Prof. Nicolelis como gestor do INCeMaq, enviamos um e-mail ao Coordenador e Vice-Coordenador do INCeMaq, Profs. Nicolelis e Manoel Jacobsen, em 10/03/2011. O mesmo foi respondido pelo Prof. Nicolelis em 11/03/2011. Durante a segunda reunião, também houve questionamentos sobre a gestão do INCeMaq por seu Coordenador. O Prof. Nicolelis nos deu respostas sobre algumas demandas na própria reunião e em e-mail datado de 04/08/2011. Como consideramos que os problemas não foram solucionados, enviamos uma carta ao Presidente do CNPq em 27/09/2011 contendo pontos que julgávamos insatisfatórios na gestão do Prof. Nicolelis (nada a respeito da sua competência científica ou ataques pessoais) e solicitando a substituição do Coordenador pelo Vice-Coordenador, Prof. Jacobsen. É importante frisar que não solicitamos o desligamento do Prof. Nicolelis do INCeNaq, apenas a troca do Coordenador. Nunca obtivemos resposta a essa carta. Em 26/07/2012, recebemos e-mail do Prof. Nicolelis nos informando que fomos desligados do INCeMaq. É por essas razões que resolvemos encaminhar o manifesto ao Jornal da Ciência, à SBPC e à ABC.

GR. Considerando-se as respostas dada pela equipe do Prof. Nicolelis (publicadas em https://www.facebook.com/iinnels/posts/350890325027145* e https://www.facebook.com/iinnels/posts/350894151693429), V. Sra. considera satisfatória e esclarecida a questão do experimento com sensores de infravermelho?

AR. Sim, foi esclarecido que o Prof. Nicolelis e sua equipe já trabalhavam no experimento desde novembro de 2006 na Universidade de Duke. Em entrevista ao repórter Herton Escobar d'O Estado de São Paulo, em 26/02/2013, o Prof. Nicolelis também esclareceu que não tem nenhuma lembrança da apresentação do Prof. Márcio Moraes na primeira reunião do comitê gestor em julho de 2010. Portanto, está esclarecido que o Prof. Nicolelis, enquanto Coordenador do INCeMaq, não procurou envolver o Prof. Moraes em uma colaboração, mesmo que mínima, a respeito desse experimento.

GR. O que pensa, de modo geral, do teor das respostas? (Especialmente: sobre as razões alegadas para o pedido de afastamento dos signatários do manifesto do comitê gestor do INCeMaq; e as motivações para o manifesto.)

AR. Considero as respostas um pouco exaltadas em alguns trechos, mas, de maneira geral, elas esclarecem as perguntas feitas. Os signatários do manifesto não pediram para ser afastados do comitê gestor do INCeMaq. Aliás, os signatários não pediram o afastamento de nenhum membro do comitê gestor. Eles apenas pediram ao CNPq a troca do membro que ocupa o cargo de Coordenador, propondo a substituição do Prof. Nicolelis pelo Prof. Jacobsen. Não enviamos a carta ao CNPq em solidariedade ao Prof. Ribeiro, mas por julgarmos que a gestão do Prof. Nicolelis não estava sendo satisfatória.

GR. Gostaria de complementar com algo que não foi abordado nas questões acima?

AR. Aquilo que poderia acrescentar ou elaborar já está contido no comentário que enviei nesta madrugada ao blog da SBNeC (http://blog.sbnec.org.br/2013/02/eu-apoio-a-ciencia-brasileira/).

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*Upideite(01/mar/2013): Link atualmente quebrado. O mesmo teor está agora em outra postagem no facebook - com arrumação na separação dos parágrafos.

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