O biólogo britânico Richard Dawkins narrou em seu twitter sua desventura no aeroporto de Edinburgo por causa de um pote de mel.
Irritado com a galhofa que se seguiu por lá sob a hashtag
#honeygate (e compilada pela Rebecca Watson no
Skepchick) escreveu um artigo no
The Guardian. Não tenho os detalhes do incidente. Pelas
regras britânicas, qualquer produto de origem vegetal ou animal (incluindo mel) pode transitar livremente entre os países da União Europeia - mas se tiverem origem em países fora da UE, só por meio de importação controlada e certificada. (Segundo Dawkins, o veto foi pelo frasco exceder o volume permitido.)
No Brasil, também produtos de origem vegetal e animal de procedência estrangeira não podem ser admitidos em território nacional. Somente por meio de importação legal seguindo os trâmites estabelecidos por leis e outros regulamentos. Uma
cartilha elaborada pelo Mapa lista uma série de produtos agropecuários vetados:
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Quais produtos agropecuários não podem ingressar no Brasil sem autorização?
• Frutas e hortaliças frescas.
• Insetos, caracóis, bactérias e fungos.
• Flores, plantas ou partes delas.
• Bulbos, sementes, mudas e estacas.
• Animais de companhia, como cães e gatos, pois podem transmitir a raiva, entre outras doenças.
• Aves domésticas e silvestres, pois podem albergar o vírus da influenza (gripe aviária).
• Espécies exóticas, pescados, aves ornamentais e abelhas, pois podem transmitir doenças que não existem no Brasil.
• Carnes de qualquer espécie animal, in natura ou industrializadas (embutidos, presuntos, defumados, salgados, enlatados), pois podem conter agentes infecciosos.
• Leite e produtos lácteos, como queijos, manteiga, doce de leite, iogurtes, pois, além de necessitarem de condições especiais de conservação, ainda podem conter agentes infecciosos.
• Produtos apícolas (mel, cera, própolis etc.) porque podem albergar agentes infecciosos.
• Ovos e derivados, pois também requerem condições especiais de conservação e podem conter agentes infecciosos.
• Pescados e derivados, pela mesma razão anterior.
• Sêmen e embriões, considerados materiais de multiplicação animal, potencializando o risco de disseminação de doenças.
• Produtos biológicos, veterinários (soro, vacinas e medicamentos) requerem registro junto ao MAPA.
• Alimentos para animais (ração, biscoitos para cães e gatos, courinhos de morder) requerem registro junto ao MAPA.
• Terras.
• Madeiras brutas não tratadas.
• Agrotóxicos.
• Material biológico para pesquisa científica, entre outros, como amostras de animais, vegetais ou suas partes e kits para diagnóstico laboratorial.
• Comida servida a bordo.
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Em linhas gerais, todos esses produtos podem ser focos de entrada de agentes infecciosos que causem danos seja à saúde humana, seja à saúde animal, seja à saúde vegetal. Mesmo se for produto da Europa, dos EUA, do Japão e outro locais com fiscalização sanitária rígida? Sim, mesmo desses locais.
Isso porque a legislação sanitária de cada país se adéqua à situação local: se um determinado micro-organismo não causa nenhum problema ali, não há razão para que as regras exijam seu controle. Mas o fato de tal agente não causar um problema em um local, não quer dizer que não possa causar problema em outro. Um micro-organismo, em seu local de origem, pode não causar problemas por diversos fatores: seus hospedeiros estarem adaptados evolutiva ou fisiologicamente, contarem com presença de competidores, parasitas, predadores... que controlem sua população. Fatores que muitas vezes estão ausentes fora dali.
Outro problema é que muitas vezes não é possível se ter controle da origem do produto adquirido pelo passageiro: pode ser que o mel (ou o salame ou o queijo ou o pacote de tremoço, etc.) comprado não tenha passado pelos processos exigidos.
Mais um fator é que, estando o agente presente de modo espalhado no país de origem (e não seja causador de doença humana ou não seja alvo de programas de erradicação ou controle mais rígido - p.e., o país se contenta em manter um certo nível de incidência da doença em plantas ou animais, já que os custos para sua erradicação não compensaria), não faz muito sentido uma norma sanitária de produção e trânsito interno tão rigorosa: a circulação interna do produto não vai causar mais prejuízo do que já ocorre. Outra é a história quando o produto é deslocado para fora do país - ou da área de incidência.
A circulação dentro da UE é mais ou menos livre porque o bloco adota protocolos sanitários uniformes. Vários outros blocos de união comercial e/ou econômica também adotam regulamentos uniformizados. Mas a circulação é restrita se um surto de doença ocorre em um dado local dentro do bloco: por exemplo, quando houve casos de mal da vaca louca em países da União Europeia, os países em que houve detecção da doença não podiam exportar carne para outros países da UE. Até dentro de um mesmo país a circulação é restrita: se há foco de aftosa em um município no Brasil, os animais de lá e sua carne não podem circular para outros municípios.
Sim, pessoas também transportam germes de doenças. Mas é mais complicado restringir a circulação de pessoas - a vinda de turistas é uma grande fonte de receita para muitos países,
incluindo o Brasil. A restrição se dá quando a pessoa apresenta sintomas de doenças infecciosa ou têm origem em países com surtos ou onde a doença é endêmica. (Claro, falando de países democráticos.)
Agora pensemos no seguinte. O país deve receber somente este ano algo como
6 milhões de turistas. E, entre Copa do Mundo e Olimpíadas, a projeção é de atrair
10 milhões de estrangeiros por ano. Imagine-se a estrutura necessária para examinar as bagagens não apenas atrás de drogas, armas, valores não declarados... mas também todos os produtos da lista acima. Em 2011, somente nos aeroportos de Guarulhos e de Galeão foram apreendidos,
45,5 e 8,5 toneladas de alimentos e cargas proibidas.
Essa lista pode parecer exagerada. "
Como? Comida de bordo? Mas a gente come isso, como pode ser perigoso, fora o fato de ser insosso e custar os olhos da cara?" Pois até 1978, restos de comida de bordo de voos vindo de Portugal e de Espanha eram dados como alimentos para porcos aqui no Brasil. O resultado foi a introdução da
peste suína africana por estas paragens -
doença que seria erradicada daqui em 1984. O vírus pode ser transportado também por embutidos como salame.
"
Ah, mas eu sempre levei e nunca me deu problema." Isso exatamente pelo grande volume de passageiros e bagagens que circulam. Com a estrutura atual é impossível de se vistoriar tudo, é preciso atuar por amostragem. Mas isso significa que a maior parte do volume de carga entra e sai sem ser adequadamente vistoriada. É um perigo real. E provavelmente tem introduzido muitas e muitas doenças humanas, animais e vegetais no país - sem falar nas pragas como a
Helicoverpa armigera, de introdução recente (identificad
oa pela primeira vez no país no primeiro semestre deste ano), com custo atualmente projetado de
US$ 5 bilhões/ano entre gastos com controle e perdas de produção.
O caso específico de Dawkins talvez não se encaixe na questão da barreira sanitária - aparentemente era um voo doméstico e não sei se há atualmente algum problema com o mel escocês -, mas parece ser o mesmo caso de desinformação quanto às regras. Quero dizer, pode até estar ciente quanto às regras em si, mas não quanto as bases das regras. Esse é um problema sério que é mais culpa das autoridades do que dos cidadãos. Nos aeroportos eu recebo folhetos dizendo que não posso transportar tubos de pasta de dentes com volume maior do que 100 ml. Mas por quê? O veto a armas de fogo, venenos, explosivos, material inflamável, objetos perfurocortantes ou capazes de contundir, além de sprays de pimenta, tasers e outros imobilizadores (como fitas adesivas) são de fácil entendimento. Agora, pasta de dente? Isso não é explicado nos folhetos.
Bem, em 6 de outubro de 1976, o voo 455 da Cubana de Aviación, que ia de Barbados à Jamaica, foi
interrompido por uma explosão. Todos os passageiros a bordo e a tripulação morreram, totalizando 73 vítimas. Explosivo plástico havia sido colocado dentro de um
tubo de pasta de dente.
O problema do mel de Dawkins não era o mel. Explosivos plásticos e líquidos podem ser disfarçados sob praticamente qualquer aparência. Explosivo como o C-4 tem uma densidade energética de cerca de 10 kJ/ml. Um tubo de 100 g é o suficiente para causar um belo estrago. É preciso, então, pesar a segurança contra a comodidade.
O evolucionista melífago não é o único a achar, porém, que há exagero. O economista americano
Steven Levitt também considera as precauções excessivas.O biólogo
PZMyers, no twitter, também reclama que as medidas de segurança são um absurdo.
Talvez haja um zelo demasiado. Talvez esforços e recursos estejam sendo desperdiçados com uma paranoia. Mas como saber? Bem, podemos acompanhar a evolução dos casos de atentados terroristas a aviões comerciais. Na Figura 1, plotei os casos cumulativos ao longo dos anos de ataques bem sucedidos (em que ocorreu explosão - com ou sem morte) e os casos de tentativas frustradas (em que o plano foi desbaratado a tempo).
Figura 1. Evolução dos casos de atentados terroristas a aviões comerciais. Ataques bem sucedidos: em azul, eixo vertical principal; ataques frustrados: em laranja, eixo vertical secundário. Fontes:
Wikipedia e
TSA.
As tentativas desbaratadas seguem uma curva exponencial. As tentativas bem sucedidas crescem mais ou menos exponencialmente até o atentado de Lockerbie, Escócia, em 1988; há uma redução no ritmo dos atentados até que, a partir de 2004 ocorre o último caso, um duplo atentado em Moscou. O processo de modificação dos protocolos de segurança é contínuo ao longo da história da segurança da aviação, mas as alterações mais substanciais ocorrem justamente pós-Lockerbie e pós-11 de setembro. Desde 1949, vivemos o mais longo período sem ocorrência de atentados bem sucedidos. Minha interpretação é que atentados continuam a ser planejados - e em número cada vez maior -, mas as medidas de segurança têm evitado que se concretizem em aeronaves despencando dos céus ou realizando pousos de emergência com buracos na fuselagem e passageiros a menos.
Se pegarmos o ritmo dos casos de atentados de 1989 a 2004, algo como 2,34 atentados bem sucedidos foram evitados de lá para cá. Considerando-se uma média de 61,83 mortos por atentado, 144,69 mortes foram evitadas - algo como 16 pessoas deixaram de morrer por ano.
Com cerca de
3 bilhões de passeiros aerotransportados por ano, 16 pode parecer um número pequeno. Por outro lado, será mesmo que abrir mão de um pote de mel, de um tubo maior de pasta de dente, ou ter que passar a bagagem de mão pelo raio-X é um preço tão alto?