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domingo, 6 de novembro de 2016

A publicação científica deve ter como meta ser amplamente lida?

O texto do teólogo e filósofo americano Daniel Lattier no Intellectual Takeout "Why professors are writting cr*p that nobody reads" (asterisco por minha parte) parece ter tido uma boa acolhida entre os cientófilos nas mídias sociais sendo bastante compartilhado. O filósofo Pablo Ortellado em seu perfil no facebook, diz: "Precisamos publicar menos e não mais, como nos mandam as agências e os programas de pós-graduação. E, sobretudo, precisamos publicar coisas úteis e relevantes".

Um dos primeiros a levantar um "peralá, é isso mesmo?" que eu vi, foi o biólogo Carlos Hotta, do Apatoss... "Brontossauros em Meu Jardim", em seu perfil no facebook. "Por que vocês escrevem tantos posts no Facebook se ninguém lê?", se pergunta.

Eu acho que Lattier tem um ponto, mas que Hotta também tem. De um lado, temos que notar o "cr*p" na crítica do filósofo americano. Estudos com metodologias ruins, que em nada contribuem com as ciências estão sendo publicados em grande quantidade - a maior parte dos diagnósticos apontam para a pressão do "publish or perish"como a causa principal desse estado de coisas. Mas, nesse ponto, *ainda bem* que tais estudos são pouco lidos e menos ainda citados.

Só que, pelo que podemos saber, a taxa de leitura e, pior, o índice de citação *não* é um indicador de qualidade. (Um recente trabalho conclui que grande parte do impacto de uma publicação depende do puro acaso, ainda que não apenas dele.)

Então, ok, trabalhos que são "porcarias" devam ser desincentivados. Mas será que, se fizemos os melhores esforços para aplicar metodologia correta e realizar um trabalho bem feito, devemos nos preocupar se o artigo resultante será ou não lido por muitos outros pesquisadores para decidir pela publicação?

Aqui o ponto do Hotta. Sim, muitas publicações são pagas - ou pelos autores ou pelos assinantes -, então há, de fato, algo a ser pensado a respeito de se vale a pena ou não publicar pensando no alcance potencial. Mas há vários lugares em que se pode publicar a baixo custo ou a nenhum - em repositórios pessoais e arquivos de pré-publicações, p.e.

Porém publicar pensando apenas no "impacto" potencial que o artigo poderá ter é problemático. Um aspecto a consideramos é o chamado efeito "Bela Adormecida", em que certos artigos são ignorados por décadas até que subitamente são redescobertos e passam a ser amplamente citados. Outro é que mesmo se um artigo é pouco lido, ele pode ter um impacto maior - por exemplo, se ele tiver sido usado em uma revisão ou em uma meta-análise. E, em um campo especializado, um universo de 10 leitores pode ser bem representativo de uma fração significativa ou até a totalidade do público a ser atingido.

Na atualização do Hotta, o químico Luís Brudna, do Tabela Periódica, lembra ainda que I.A.s como o Watson poderão fazer a varredura automática dos artigos buscando alguma referência obscura pouco conhecida que poderá ser de importância vital no diagnóstico de uma doença rara igualmente obscura e pouco conhecida - ou uma versão mais rara de uma doença mais comum.

Nesse sentido, a baixa taxa de leitura é lamentável, mas não deve ser uma barreira para a publicação - do contrário seria o incentivo para tornar um artigo artificialmente "sexy", forçar a barra para torná-lo mais atrativo para uma audiência mais ampla (o equivalente ao caça-clique no mundo científico, ou o próprio caça-clique, já que a maioria dos trabalhos estão online): numa palavra "sensacionalismo". Seria, antes, um chamado para um esforço de garimpagem de artigos relevantes que estão abandonados a traças eletrônicas.

E ainda há esforços para evitar o "efeito gaveta" ou "efeito de arquivo" das publicações e o excesso de resultados positivos, por se deixar de publicar os negativos.

Então, meu grau de concordância com o artigo de Lattier depende do ponto que se enfatiza.
a) "Não publicar artigos irrelevantes": ok;
b) "Resistir ao publish or perish e não fatiar os resultados ('salami science') em vários artigos menores": ok;
c) "Pensar em artigos que possam atrair mais leitores": hmmm, acho que não é tão vital assim, pode ser um objetivo secundário;
d) "A baixa taxa de leitura mostra que a maioria da ciência produzida é irrelevante": de modo algum, há vários motivos por que artigos bons permanecem pouco conhecidos (o periódico pode ser pouco conhecido, a língua da publicação ser usada por uma fração restrita de pesquisadores, a comunidade de especialistas ser reduzida, preconceito, a comunidade ter falhado em compreender a importância do artigo, por simples casualidade o artigo não chamou a atenção...).

2 comentários:

Unknown disse...

Na minha opinião, deveria se publicar com o único objetivo de publicizar o conhecimento científico, independente de seu alcance, impacto, relevância, etc. Todos estes critérios de avaliação do conhecimento produzido e disseminação não são isentos de valores de época, mercado, nichos e relações de poder dentro da própria ciência. Basta ver o icônico caso do Tesla, o que ele produziu e o quanto foi aproveitado, sem falar numa série de outros cientistas que foram desconsiderados pela própria comunidade científica em sua época (Ludwig Boltzmann, George Zweig,etc.). Outro ponto a se destacar é o aumento na dificuldade de se fazer revisões bibliográficas de um determinado assunto, para se poder produzir ciência a partir de um "estado da arte", já que a quantidade de publicações é cada vez mais absurda e impossível de se filtrar, sem deixar muita coisa de fora. Uma coisa é certa, a quantidade ou o "publish or perish" está matando o próprio sentido da ciência, que é aumentar a qualidade de vida do ser humano em seu entorno, de forma sustentável e esta se transformando num sistema que se retroalimenta - um círculo vicioso e não uma espiral que avança.

none disse...

Unknown,

Obrigado pela visita e comentário.

Na questão da filtragem, é possível que isso fique a cargo de um programa de computador. Não apenas para recuperar todos os artigos relacionados como até para sumarizá-los.

[]s,

Roberto Takata

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