No dia 29 de julho, foi realizado o Conhecer Eleições 2018 uma série de sabatinas com, então, pré-candidatos à Presidência da República e representantes, a respeito de propostas e plataformas para a Ciência. Organizado conjuntamente pela equipe do Dispersciência, Science Vlogs Brasil e Huffpost Brasil (HPB), contou com a participação de jornalistas, cientistas e divulgadores científicos nas bancas de entrevistadores, a íntegra pode ser vista no YouTube.
Como preparação para o evento, uma série de artigos foram publicados no HPB com análises e diagnósticos dos problemas da ciência e da divulgação científica brasileira que poderiam ser abordados pelos projetos dos (pré-)candidatos. A mim foi encomendado um texto sobre "por que e como investir em divulgação científica?". A versão final saiu com o título: "O papel da ciência e dos divulgadores científicos no desenvolvimento da sociedade".
Abaixo reproduzo não essa versão publicada, mas (com pequenas modificações) a inicial - realmente era inadequada ao canal (não tinha captado bem a proposta nesse primeiro momento, pensei mais nos próprios divulgadores e não no público geral), que, não obstante, creio trazer mais detalhes pertinentes aqui.
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"Por que e como investir em divulgação científica?"
[...] Confesso, no entanto, que não me considero habilitado a dar respostas definitivas a elas, em particular para a segunda. Mas podemos nos aventurar em algumas tentativas de respostas.
"Por que investir em divulgação científica?" é, das duas, a pergunta mais fácil... ou menos difícil. Sim, não há um consenso entre as pessoas que estudam e praticam a ciência e a arte de trazer para o público temas relacionados às ciências de qual é, afinal, a importância da atividade. No entanto, embora as respostas eventualmente ocasionem brigas de foices entre os especialistas, podemos mapear as motivações preferenciais dos diferentes autores, grupos e comunicadores. P.e. Thomas & Durant 1987 agruparam os motivos para se fazer divulgação científica em 9 classes; Martín-Sempere et al. 2008, em 4; Semir & Revuelta 2010, em 5; Besley et al 2017, em 8. Aqui proponho apenas três (e um quarto de miscelâneas).
Um pacote de respostas podemos classificar bem grosseiramente como de natureza egoísta corporativista: elas apontam as vantagens da comunicação para a própria comunidade científica e acadêmica. Por exemplo, as atividades de divulgação podem ajudar a atrair novos talentos (muitos da geração atual de divulgadores e de cientistas - ali na casa dos trintas anos - tiveram como inspiração inicial "O Mundo de Beakman"), podem ajudar a manter ou aumentar a confiança pública na comunidade científica (o que é bem preocupante em relação a certos temas como mudanças climáticas em que certos grupos resistem a aceitar as conclusões defendidas pela quase totalidade dos pesquisadores) ou aumentar a visibilidade do trabalho (alguns estudos indicam que artigos científicos que recebem cobertura midiática acabam sendo mais citados - na média - do que artigos ignorados pela mídia). Por egoísta corporativista não quero dizer que sejam motivações ruins ou erradas, apenas que o objetivo é voltado mais para os interesses dos próprios cientistas - mas que podem beneficiar também a sociedade e indivíduos não ligados à academia.
Outro conjunto de respostas podemos nomear de cívico democrático: os argumentos gravitam em torno de questões de benefícios do público e da sociedade. Muitas decisões importantes, como regulamentação de novas tecnologias, protocolos de mitigação de efeitos do aquecimento global ou inclusão de novas vacinas no calendário de imunização nacional, passam por se ter conhecimentos científicos embasados. A divulgação científica pode ajudar a população trazendo não apenas informações a respeito, mas a ajudando a contextualizar tais informações: que interesses estão em jogo, quais os riscos, qual o grau de incerteza em torno dos resultados? Nesta linha também incluímos correlações entre desenvolvimento econômico e o grau de conhecimento científico da população ou a necessidade de se prestar contas à sociedade, que financia as ciências. Possivelmente uma das variantes mais conhecidas desta modalidade seja a de Carl Sagan em seu clássico "O Mundo Assombrado pelos Demônios": "Nós criamos uma civilização global em que os elementos mais cruciais - o transporte, as comunicações e toda as outras indústrias, a agricultura, a medicina, a educação, o entretenimento, a proteção ao meio ambiente e até a importante instituição democrática do voto - dependem profundamente da ciência e da tecnologia. Também criamos uma ordem em que quase ninguém compreende a ciência e a tecnologia. É uma receita para o desastre. Podemos escapar ilesos por algum tempo, porém mais cedo ou mais tarde essa mistura inflamável de ignorância e poder vai explodir na nossa cara." O cívico democrático não deixa de ser algo egoísta na medida em que, se as coisas desandarem como os que sustentam esses argumentos sugerem, também seria contra os interesses destes.
E um terceiro, denominável de festivo cultural. Argumentos dessa estirpe enfatizam o conhecimento pelo conhecimento, a diversão proporcionada tanto pelo que se sabe sobre ciências quanto pelo próprio processo de aquisição de informações por meio do chamado edutainment, o apelo estético e as relações com as artes.
Podemos notar que os argumentos podem se prestar a mais de uma categoria: o citado "O Mundo de Beakman" objetiva mais à educação informal por meio da diversão, mas com consequências previsíveis de encantar parte da audiência e induzi-la a seguir carreira em alguma área científica. Alguns eventualmente não se encaixarão nessas grandes categorias mais gerais.
Ok, mesmo não havendo consenso, há vários tipos de argumentos para por que investir em divulgação científica que podemos escolher, isoladamente ou em conjunto (ou em baciada). E quanto à segunda pergunta?
De um jeito ou de outro é importante comunicarmos sobre ciência ao público, mas como fazer isso? Embora estudos sobre a comunicação de ciências ao público venham sendo feitos há bem uns 60 anos; somente há coisa de 10 anos o corpo de conhecimentos acumulados sobre o que funciona ou não na divulgação científica começou a ser sistematizado com tentativas de criação de modelos de comunicação que mapeiam importantes fatores que influenciam - positiva ou negativamente - a troca de informações sobre ciências (vide, por exemplo, Trench 2008 ou Eveland et al. 2013).
Certamente ainda há muita coisa que falta se estudar mais e a maior parte do que se sabe é baseada em estudos com alunos de universidades americanas atrás de créditos para se formarem. O que representa um porção bastante restrita da diversidade de público que encontraremos na população em geral. Além disso, as mudanças da paisagem de comunicação, com uma maior segmentação ocasionada pela ascensão das mídias sociais frente às mídias tradicionais, tem trazido novos desafios, em que estratégias de comunicação em massa - sobre as quais a maior parte do conhecimento acumulado recai - podem não mais funcionar. Mas não devemos ignorar esse tanto que se sabe, mesmo que não haja garantias de que funcionará em um contexto diferente. P.e. pelos estudos sabemos que a forma mais comum com que enfrentamos uma notícia falsa ou hoax: geralmente apresentando primeiro o boato - descrevendo em detalhes a história que circula - e só depois tratar da refutação, pode ter um efeito contrário ao aumentar a crença das pessoas na história que se deseja demonstrar falsa. Reapresentar o boato acaba ajudando a fixá-lo na memória dos incautos e, mais tarde, poderá tomar o fato de ele lhe ser familiar como indicador de que seja verdadeiro. Há alguma discussão a respeito de qual a melhor maneira de enfrentar esse problema (Peter & Koch 2016 propõem fazer com que o receptor da informação julgue o boato tão logo seja informado da história e de sua refutação; o relatório de consenso sobre comunicação pública efetiva de ciências da Academia Americana de Ciências, Engenharia e Medicina, de 2017, propõe que se evite uma refutação longa e complexa de um boato originalmente curto e simples; Bastian 2017 defende que não há ainda um caso forte para se defender nenhum tipo de recomendação específica). De todo modo, pelo menos à primeira vista, essas conclusões sobre a necessidade de se atentar para esses fenômenos não devem se alterar pela mudança dos meios de comunicação.
Dos estudos de psicologia cognitiva e social, um modelo do funcionamento de nossa mente tem sido bastante defendido entre os especialistas: o das duas vias de processamento de informações. Uma rápida, mais intuitiva, e uma mais lenta, mais analítica. Nós usamos na maior parte do tempo a primeira via, que, aparentemente, demanda menos energia e esforço. Ela nos ajuda a tomar decisões rápidas, porém está sujeita a muitos erros induzidos pelos atalhos utilizados - o efeito mencionado mais acima sobre notícias falsas da familiaridade de uma informação levar a se tomá-la como verdadeira é um desses atalhos com grande potencial a levar a erros de julgamentos. Certas condições experimentais parecem induzir a ativação da segunda via. Por exemplo, fazer com que uma pessoa resolva determinados tipos de exercícios matemáticos de comparação de proporções parece levar a que ela examine mais atenta e detidamente alegações que lhe são apresentadas logo em seguida. Potencialmente, comunicações que se aproveitem dessas características para gerar mensagens que, ou sejam mais facilmente assimiladas pela via rápida, ou que ativem a via analítica para tentar barrar a aceitação de dadas alegações sem exame prévio poderiam ser mais eficientes.
Somando às mencionadas incertezas quanto à aplicabilidade dessas conclusões para grupos culturalmente distintos dos sujeitos experimentais em que tais estudos foram validados, é difícil dar uma receita de qual o melhor modo de se fazer a divulgação científica em casos concretos. Esse conhecimento parcialmente consolidado, no entanto, é muito útil ao fornecer parâmetros em que devemos prestar atenção ao desenvolvermos nossas estratégias e trabalhos de comunicação. Idealmente, para cada caso devemos fazer pequenos estudos pilotos e avaliações periódicas para verificar o que funciona para a situação específica: aquele tema para aquela população com aquelas mídias disponíveis com aquela quantidade de dinheiro que temos para investir no projeto, etc. Na impossibilidade disso, podemos usar como guia, mais do que nossas intuições, preconcepções e experiências pessoais, esse conjunto sempre crescente de conhecimento científico da nascente área da ciência da comunicação de ciências. Se não há uma receita pronta de bolo, há um conjunto de utensílios e ingredientes pré-testados para cada qual preparar seu próprio confeito personalizado.
Respeitando o estilo pessoal de cada divulgador e mirando as características particulares de cada grupo, vejo a divulgação científica cada vez mais como um ecossistema com cada divulgador ou projeto atendendo um nicho, uma especialidade, e eventualmente "concorrendo" entre si, numa grande teia de colaborações diretas e indiretas.
Mas temos que notar que esse tipo de conhecimento leva a questionamentos éticos bastante sérios. O quanto se valer desses macetes corresponde uma tentativa de manipulação do público?
Então, como devemos fazer divulgação de ciências? Uma tentativa de resposta (admito, um tanto elusiva) é: cientificamente, mas também eticamente.
Divulgador de ciências freelancer e autor do blog Gene Repórter, colabora com vários projetos de divulgação científica: Blogs de Ciência da Unicamp (ASCOM/Labjor-Unicamp), podcast Oxigênio (Labjor/RTV Unicamp), Pint of Science Campinas.
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