Aproveitando a polêmica suscitada sobre a necessidade e adequação do uso de jargões na Divulgação Científica (DC), trago alguns artigos sobre o tema. O debate vem de muito tempo com o consenso de que o uso indiscriminado e prolífico de jargões é ruim, mas com uma discussão interminável na literatura de pesquisa sobre DC a respeito de se os efeitos positivos de algum uso de jargão na comunicação pública da ciência existem e superam os efeitos negativos. TL/DR: o tema é um tanto complexo e parece depender da situação e das pessoas envolvidas.
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Sharon & Baram-Tsabari (2014) propuseram um índice para quantificar o uso de jargões nos textos. Basicamente compararam um banco de palavras usadas em textos científicos e acadêmicos (em inglês) - PERC (Professional English Research Corpus) - com um banco de textos gerais (em inglês britânico) - BNC (British National Corpus). Palavras comuns no PERC, mas raras ou ausentes no BNC, foram consideradas como jargão. Com isso compararam os textos em três registros: a comunicação de cientistas para cientistas (interpares); a comunicação de cientistas para o público não-especialista (DC) e o controle foram as comunicações de não-cientistas (no caso, designers) para o público não-especialista (comunicação não-científica). Texros interpares apresentaram mais palavras incomuns: 2,65% das palavras usadas eram raras no corpus geral; em comparação aos de DC (2,08%) e da não-científica (1,85%). Considera-se que, em textos em inglês, o limitar de pelo menos 98% de palavras familiares no texto é o ideal para a compreensibilidade. A Fig. 1 mostra as proporções de palavras técnicas (jargões) e não-técnicas entre as palavras incomuns utilizadas em cada registro.
Figura 1. Proporção de palavras técnicas (jargões - CX e C'g) e não-técnicas (Cg, cG, XG e XX), entre os termos raros (que pouco aparecem no corpus geral) em diferentes tipos de registros. CX - palavras encontradas no corpus científico, mas não no corpus geral; C'g - palavras encontradas significativamente mais no corpus científico do que no corpus geral; Cg - palavras encontradas mais (mas não significativamente mais) no corpus científico do que no corpus geral; cG - palavras encontradas mais no corpus geral do que no corpus científico; XG - palavras encontradas no corpus geral, mas não no corpus científico; XX - palavras não encontradas nem no corpus científico nem no corpus geral. Adaptado de: Sharon & Baram-Tsabari (2014).
Não é surpresa que o uso de jargão fosse maior na comunicação interpares (entre cientistas) do que na divulgação científica (de cientistas para o público não especializado) ou na comunicação não-científica (de não-cientista para o público não especializado), nem da persistência de jargões na DC ou mesmo, em menor escala, na comunicação não-científica. Na verdade, o fato de o resultado ser o esperado, é um ponto a favor da validade da proposta de quantificação.
Os autores desenvolveram também um índice de jargonicidade ('jargonness'): o logaritmo da frequência de uma palavra no corpus científico sobre a frequência no corpus geral (se a palavra está ausente no corpus geral, é atribuído um valor de 3). A mediana da jargozidade dos jargões usados na comunicação interpares foi de 1,21. A jargonicidade nos textos de DC e não-científicos foram menores: 1,078 e 1,022 (não diferindo entre si). Enquanto um jargão na comunicação de cientista para outro cientista é cerca de 16 vezes mais frequente no corpus científico do que no corpus geral, na comunicação para o público por um cientista ou por um não-cientista, o jargão tinha uma frequência no corpus científico de 11 a 12 vezes a frequência no corpus geral.
A partir desses princípios, o grupo desenvolveu um detector automático de jargões (Rakedzon et al. 2017). Poderia ser interessante a produção de um programa que fizesse o mesmo em português.
Ok. Temos um método para quantificar jargões. Mas e quanto aos efeitos? Parece haver poucos estudos especificamente para a comunicação pública da ciência de medição dos efeitos do uso de jargão. O grupo de Dixon, Amill e Bullock publicaram dois artigos fazendo exatamente isso. Usando um serviço de recrutamento online de sujeitos experimentais para responder a formulários online, Bullock et al. (2019) dividiram 650 indivíduos aleatoriamente entre 4 grupos: um em que os participantes liam 3 parágrafos sobre 3 tecnologias emergentes (carros autônomos, robôs cirurgiães, impressão 3D de órgãos biológicos) com uso de jargão sem maiores explicações sobre os termos; um grupo com jargão seguido de definição; um grupo em que a definição era dada, mas o jargão não era apresentado; um grupo em que não era usado nem o jargão, nem era dada a definição. Para cada grupo foram medidos depois o grau de fluência do processamento da informação (basicamente a facilidade de entendimento do texto), do raciocínio motivado (quando a pessoa constrói um argumento já com uma conclusão previamente estabelecida), do quanto a pessoa achava que a tecnologia trazia riscos e do quanto ela apoiava a tecnologia. Na Fig. 2, vemos os efeitos encontrados. O uso de jargão se correlacionou a uma menor fluidez ou fluência do processamento, a uma maior resistência à persuasão, um percepção de maior risco da tecnologia e menos disposição a apoiá-la.
Figura 2. Efeito do uso do jargão sobre a fluidez do processamento da informação, a resistência à persuasão, a percepção do risco de uma nova tecnologia e a disposição a apoiar o uso dessa tecnologia. Adaptado de: Bullock et al. 2019.
Em Schulman et al. (2020), o grupo analisou se a introdução de explicação amenizava ou anulava o efeito do uso do jargão. Com o uso do jargão as avaliações de fluidez de processamento eram piores, mesmo com a introdução de definição do jargão.
Uma observação a ser feita é que as condições de uso de jargão foram de uma carga bem intensa: 10 jargões por parágrafo. Além da replicação independente, seria interessante analisar situações em que a densidade de jargões fosse menor.
Atkinson & Carskaddon (1975) analisam o efeito do uso de termos técnicos abstratos na avaliação da credibilidade do emissor. 32 alunos (16 homens e 16 mulheres) de curso introdutório de psicologia foram divididos aleatoriamente em 4 grupos. Todos assistiam a um vídeo de 15 minutos de uma sessão de atendimento psicológico. Antes de se passar o vídeo, os alunos eram apresentados a um breve currículo do profissional a cuja atuação assistiriam: para metade dos grupos o currículo era de grande prestígio (havia feito doutorado e tinha publicado artigos); para a outra metade, o currículo era de baixo prestígio. Em metade dos grupos, o profissional no vídeo usava palavras altamente abstratas para analisar o paciente; em outra metade, o profissional utilizava termos comuns. Assim, os grupos tinham as seguintes combinações: alto prestígio, palavras abstratas; alto prestígio, termos comuns; baixo prestígio, palavras abstratas; baixo prestígio, termos comuns. Após assistirem aos vídeos, os alunos preenchiam um formulário avaliando a credibilidade do profissional. As melhores avaliações do grau de conhecimento do profissional de acordo com a condição do estudo foram, na ordem decrescente: alto prestígio, alta abstração; baixo prestígio, alta abstração; alto prestígio, baixa abstração; baixo prestígio, baixa abstração. Na avaliação da compreensão do profissional a respeito do problema do paciente, as notas eram decrescente para: alto prestígio, alta abstração; alto prestígio, baixa abstração similar a baixo prestígio, alta abstração; e com a nota menor, baixo prestígio, baixa abstração.
É um estudo antigo, com uma amostra bastante restrita em termos de diversidade (caucasianos, estudantes universitários). Mas outros trabalhos também mostram um efeito positivo de pelo menos um certo nível de emprego de jargão (e em certas circunstâncias) para a credibilidade do emissor.
Junks et al. (2016) em seu capítulo sobre o uso da linguagem na construção da confiabilidade revisam em uma das seções o efeito da linguagem técnica sobre a confiabilidade por meio da percepção de expertise. O uso de termos técnicos são percebidos como mais complexos e difíceis de se entender (o que também foi encontrado no trabalho acima mencionado de Bullock et al 2019), mas isso seria um indicador da expertise do enunciador. Além disso, quando o emissor transpõe a linguagem técnica para uma forma compreensível na orientação sobre saúde, essa capacidade de adaptar a linguagem também contribuiria para a percepção da expertise. Os autores citam, porém, que na literatura há divergências quanto a tal efeito.
Thomson et al. (1981) concluem que o uso de jargão e apresentação de dados afetam a avaliação de um relato de modo diferente a especialistas e não-especialistas. 96 educadores e 63 profissionais da área de negócios leram um relato de 150 palavras a respeito do desempenho de estudantes. Um tipo de relato tinha 12 jargões relacionados a estudos na área de educação, um outro usava palavras mais comuns para passar os mesmos sentidos. Esses relatos também se dividiam em dois tipos: alguns continham dados numéricos e outros usavam expressões relacionadas a opiniões pessoais (p.e. "35% dos professores são contra" vs "eu acho que"). Após isso, cada participante avaliava o relato e o autor em vários critérios.
Entre os educadores (especialistas), os relatos com jargão tendo ou não dados geravam mais concordância com as recomendações defendidas nos relatos; relatos sem jargão, mas com dados geravam uma concordância com as recomendações tão bem quanto no grupo controle (que avaliavam as recomendações defendidas no relato antes de lerem os próprios relatos), e relatos sem jargão e sem dados geravam uma concordância menor do que no controle. Entre os não-especialistas, todas as condições de relatos geraram um grau de concordância com as recomendações menores do que a condição controle. Mas os relatos sem dados, com ou sem jargões, geravam uma concordância maior do que as outras condições de relatos. A condição que levou a menor grau de concordância foi a carregada de jargões e de dados.
Em termos de avaliação da logicidade dos relatos, entre os especialistas, os relatos com jargão e dados foram mais bem avaliados, sendo os com jargão e sem dados os piores; entre os não especialistas, tanto os relatos com jargão e sem dados e os sem jargão com dados foram mais bem avaliados; o de pior avaliação foi a condição de sem jargão e sem dados.
Tan et al. (2019) avaliaram o efeito do uso de jargão em prospectos de investimentos sobre o desejo de investir entre alunos de um curso de MBA profissional. Quatro condições de jargão foram analisadas: sem jargão; apenas bons jargões (i.e. jargões de uso legítimo); apenas maus jargões (i.e. jargão descabido, apenas com a intenção de confundir); e uma mistura de bons e maus jargões em prospectos sobre possibilidade de investimentos em uma oferta pública inicial de ações na bolsa de valores. Entre os alunos sem conhecimento da indústria a que se referia a oferta, os prospectos que não usavam jargões foram avaliados como os que mais eliciavam desejos de investir, seguido de apenas bons jargões (em nível próximo aos prospectos sem jargão), apenas maus jargões e mistura de bons e maus jargões (bem abaixo das demais condições); entre os com um nível baixo de conhecimento, o prospecto mais bem avaliado foi o que misturava bons e maus jargões; seguido de apenas maus jargões (bem mais abaixo), apenas bons jargões e sem jargão (mais ou menos próximo de com apenas bons jargões). Já entre os que tinham alto conhecimento da indústria, o maior desejo de investir se deu com prospectos com apenas bons jargões, seguido de sem jargões; os prospectos apenas com maus jargões e misturando bons e maus jargões foram igualmente mal avaliados.
Possivelmente uma meta-análise é necessária para uma avaliação mais definitiva a respeito dos diferentes efeitos que os jargões podem ter sobre diferentes públicos, em diferentes dimensões da comunicação (informação, persuasão, emoção, etc.) e em diferentes contextos e temas. (Pode ser que já exista, mas não cheguei a encontrar um trabalho de meta-análise.)
Upideite(30.dez.2020): Um artigo recente sobre o tema, com conclusão de que o jargão não cria dificuldades em situação em que o público tenha um sentido de alta urgência como em situação de crise. Shulman & Bullock 2020. Don’t dumb it down: The effects of jargon in COVID-19 crisis communication. PLoS ONE 15(10): e0239524. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0239524