No twitter, o Iberê Thenório, do Manual do Mundo, questionou uma reportagem sobre a captura de um exemplar de aranha-armadeira em uma cidade catarinense.
O título original da reportagem parece ter sido: "Aranha mais letal do mundo é capturada em casa em Santa Catarina".
O título atual é "Aranha com veneno mais letal do mundo é capturada em casa em Santa Catarina".
E no primeiro parágrafo da reportagem está escrito: "Foi capturada em uma casa em Vitor Meireles (270 km de Florianópolis) uma aranha-armadeira —considerada a mais perigosa do planeta, segundo informes do Instituto Butantan."
Antes de mais nada, como notado por Iberê, o encontro de aranhas-armadeiras é algo bastante comum - mesmo que seja uma aranha perigosa (e logo analisaremos se é mesmo a "mais perigosa", "mais letal", com "veneno mais letal" e as diferenças dessas expressões") - a ponto de ser bastante questionável o alarde do título da notícia - e mesmo se merece ser notícia. Meio como publicar uma notícia como: "Encontrado o mosquito mais letal no mundo em casa de Santa Catarina [ou qualquer outro local do Brasil]" para se referir a focos de Aedes aegypti.
Um segundo ponto a se notar é que, apesar do título sensacionalista, a reportagem em si acaba prestando um bom serviço ao enfatizar o modo como o caso foi solucionado: chamaram-se os bombeiros, a aranha foi capturada com segurança e depois solta em local em que teria menos chances de causar problemas a alguém. Armadeiras têm um papel importante tanto como predador de pequenos vertebrados (como rãs e sapos) quando como presa de outros vertebrados (como quatis e gambás) e invertebrados (como vespas caçadoras).
Mas é motivo para alarde? Não. Embora, sim, a picada seja um acidente grave e que mereça cuidados médicos - o paciente deve ser levado rapidamente a uma unidade de saúde -, a letalidade é baixa. Pelo boletim epidemiológico no. 31 v. 53 de agosto de 2022, da Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde, dos casos registrados de 2017 a 2021, dos 23.016 casos de acidentes com a armadeira, houve 11 mortes, uma taxa de letalidade de 0,05%. Ela é menor do que a taxa de letalidade da aranha-marrom: de 0,09% e da viúva-negra: de 0,12%. Então, certamente não é a aranha mais letal do mundo.
Seria o veneno dela o mais letal do mundo? Aí teríamos que comparar a dose necessária para causar um dado nível de letalidade. Um padrão para compostos tóxicos é a dose letal 50 (DL50), que é a dose que provoca a morte de 50% dos organismos em que foi aplicado. Certamente não é algo que se faça em humanos experimentalmente: normalmente se utilizam organismos modelos como ratos e camundongos. (Eventualmente é possível se calcular em humanos se houver registros adequados de acidentes, mas é bastante complicado avaliar qual a dose injetada, por exemplo.).
Em camundongos, a DL50 do veneno da armadeira da espécie Phoneutria nigriventer foi de 0,63 mg de veneno/kg de massa corporal do roedor para aranhas fêmeas e 1,57 mg/kg para veneno de machos (em injeção intravenosa). (Herzig et al. 2002.) Já para a aranha-marrom da espécie Loxosceles similis, a DL50 para camundongo foi estimada em 0,32 mg/kg. (Horta 2012.) Isto é, com uma dose que é a metade da armadeira, o veneno da marrom causa estrago equivalente entre camundongos.
Então, tampouco a armadeira teria o veneno mais letal entre as aranhas. (Não necessariamente que a marrom teria, então, o veneno mais letal que todas as outras aranhas.)
Considerando o total de casos, no Brasil, tampouco a armadeira é a que causa mais mortes. Pelo boletim epidemiológico no. 31 v. 35, no período analisado foram 11 mortes no total atribuídas às picadas de armadeiras, contra 37 mortes atribuídas aos casos com aranhas marrons.
A reportagem cita como fontes o Instituto Butantan e algum artigo não especificado da revista Nature. Não cheguei a fazer uma busca mais aprofundada de se, de fato, textos do Butantan e na Nature fazem essas afirmações a respeito da armadeira. Se o fizeram, como indicado pelos números acima, estarão errados.
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Upideite(07.mar.2023): Claro que a análise aqui está restrita ao Brasil. Então, o número total de casos será diferentes e possivelmente os números relativos a esses totais (mas suspeito que as aranhas do gênero da viúva-negra, de distribuição mundial mais ampla estarão na frente nesse quesito). A DL 50, porém, não deve ser afetado por isso. A letalidade da picada pode variar com as condições locais e da susceptibilidade da população (idade, estado nutricional e existência de atendimento médico adequado nas imediações, p.e.), mas não deve ser tão diferente assim.
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