Lives de Ciência

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sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Leveduras pluricelulares: assim tão fácil?

ResearchBlogging.orgPesquisadores da Universidade de Minnesota conseguiram obter linhagens pluricelulares de leveduras de cerveja (Saccharomyces cereviseae) a partir de uma linhagem originalmente unicelular - como normalmente são as leveduras. Basicamente o que Ratcliff et al. (2012) fizeram foi selecionar variantes que se sedimentavam mais rapidamente quando as amostras eram submetidas à centrifugação. Mutantes cujas células, ao se dividirem, permaneciam unidas, em vez de se separarem como nas variantes normais, formavam unidades multicelulares que se assentavam mais prontamente do que células isoladas.

Uma ótima análise sobre o estudo pode ser lida no site Evolucionismo: Evolução da multicelularidade em laboratório parte I e parte II.

Os autores do estudo discutem algumas características de pluricelularidade verdadeira dessas unidades multicelulares - divisão de trabalho entre as células e apoptose. Mas ênfase maior é dada na rapidez com que o genótipo responsável pelo fenótipo multicelular surgia nas réplicas: em todas as 15 populações, variantes multicelulares surgiram e passaram a ser dominantes nos 60 dias dos experimentos. Aliando esse resultado aos dados de outros trabalhos (algas verdes volvocinas multicelulares não são geneticamente muito mais complexas do que parentes unicelulares, padrão de equilíbrio punctuado do registro fóssil e o fato de a pluricelularidade ter evoluído diversas vezes em ramos independentes da vida), os cientistas concluem: "The potential for the evolution of multicellularity may be less constrained than is frequently postulated." ["O potencial para a evolução da pluricelularidade deve ser bem menos restrita do que frequentemente é postulado."]

Tendo a concordar que a pluricelularidade não deve ser uma característica tão difícil de surgir ao longo da evolução das linhagens unicelulares. Porém a velocidade da evolução da característica no trabalho de Ratcliff e colaboradores pode ter tido uma ajudinha da história evolutiva das leveduras. A Figura 1 apresenta uma filogenia de alguns grupos de fungos. Saccharomyces, o gênero da espécie utilizada no experimento, e alguns outros grupos próximos são linhagens unicelulares em meio a linhagens pluricelulares.


Figura 1. Filogenia de alguns grupos de fungos. Modificado de Hedges 2002.

Isso sugere que a unicelularidade do Saccharomyces seja uma condição derivada a partir de um ancestral pluricelular. A pluricelularidade experimentalmente obtida não seria exatamente uma reversão, mas pode ter sido facilitada pela presença de genes que controlam as características multicelulares preservados (embora silenciados ou com ação alterada) dos ancestrais. É de se notar que trabalhos anteriores obtiveram estruturas multicelulares (similares a pedúnculos de mixamebas) em colônias de leveduras irradiadas com UV (Elgenberg et al. 1998). Análise anatômica dessa estrutura indica a ocorrência de diferenciação celular com divisão de trabalho e morte celular - embora a natureza apoptótica (isto é, sob controle genético) dessa morte não tenha sido estabelecida (Scherz et al. 2001). (Um tanto estranho que nenhum desses dois trabalho tenham sido citados no artigo de Ratcliff et al.)

Desse modo, é preciso mais cautela ao tentar extrapolar os resultados temporais do experimento para a época da origem da pluricelularidade nos vários grupos de organismos.

A se esperar pelo sequenciamento do genoma das linhagens multicelulares para comparação com o das linhagens unicelulares a fim de identificar os genes alterados. E comparar com os genes de outros grupos de fungos pluricelulares.

Referências
Engelberg D, Mimran A, Martinetto H, Otto J, Simchen G, Karin M, & Fink GR (1998). Multicellular stalk-like structures in Saccharomyces cerevisiae. Journal of bacteriology, 180 (15), 3992-6 PMID: 9683500
Hedges, S. (2002). The origin and evolution of model organisms Nature Reviews Genetics, 3 (11), 838-849 DOI: 10.1038/nrg929
Ratcliff, W., Denison, R., Borrello, M., & Travisano, M. (2012). Experimental evolution of multicellularity Proceedings of the National Academy of Sciences DOI: 10.1073/pnas.1115323109
Scherz R, Shinder V, & Engelberg D (2001). Anatomical analysis of Saccharomyces cerevisiae stalk-like structures reveals spatial organization and cell specialization. Journal of bacteriology, 183 (18), 5402-13 PMID: 11514526

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Escalando números

A lei Weber-Fechner (WF) é uma velha conhecida dos fisiologistas e psicólogos. Basicamente o que ela nos diz é que a menor diferença detectável pelos nossos sentidos (limiar de percepção) entre dois estímulos de intensidades similares é proporcional à intensidade do estímulo.

Isso faz, por exemplo, que a diferença percebida entre um estímulo de 1 unidade física de medida e outro de 10 unidades seja a mesma diferença percebida entre um estímulo de 10 unidades e outro de 100 unidades: (10-1)/10 = (100-10)/100.

Uma ampla gama de canais sensórios funciona segundo esse princípio: a percepção visual, a térmica, a auditiva, a olfativa, etc. (Ao menos como uma primeira aproximação. Segundo alguns autores, a relação não se mantém constante.)

Até mesmo na contagem a lei WF parece se aplicar. A indivíduos da tribo amazônica munduruku, sem educação formal, foi pedido que associassem certas quantidades de objetos que lhes eram apresentadas com a posição ao longo de uma reta. Os pontos não foram uniformemente espaçados como em uma reta dos números naturais, as distâncias entre os pontos representando as quantidades eram proporcionais às quantidades representadas: a distância entre 2 e 4 era a mesma da entre 4 e 8; a entre 1 e 4 era a mesma da entre 2 e 8 e assim por diante (e ambos tinham uma distância igual ao dobro da distância entre 2 e 4).

Nos casos de percepção de luminosidade, intensidade sonora, massa de objetos, acidez, dulçor, etc. grande parte da codificação que resulta no efeito WF ocorre nos próprios receptores - com as fibras nervosas disparando em uma função logarítmica com a intensidade do estímulo. Mas como funcionaria o processamento de informação abstrata como quantidade numérica de objetos - sem sensores específicos para sua percepção?

Parte da base fisiológica desse fenômeno foi desvendada em macacos resos. Eletrodos foram inseridos em uma região do córtex pré-frontal de sujeitos experimentais. Esses eletrodos mediam a atividades de neurônios quando eram apresentados aos macacos pontos em um monitor. Os pontos variavam aleatoriamente de um a cinco a cada exibição. As posições dos pontos na tela também variavam aleatoriamente. Alguns neurônios exibiam maior atividade quando uma determinada quantidade de pontos era exibida - respondiam a outras quantidades também, mas em menor intensidade (e menor a intensidade quanto maior a diferença do número de pontos exibidos em relação à quantidade para a qual a resposta do neurônio era a maior): para cada quantidade, havia um grupo de neurônios que exibiam maior resposta.

Quando os dados de atividade dos neurônios eram plotados contra a quantidade de objetos exibidos, as curvas de atividade resultantes eram mais simétricas quando o eixo da quantidade de objetos exibidos era apresentado em escala logarítmica. Isso parece indicar que a própria atividade dos neurônios obedecem à lei WF, já que em uma escala logarítmica uma distância fixa corresponde a uma proporção fixa: a distância entre 1 e 10 é a mesma da distância entre 10 e 100.

Mas se a escala logarítmica nos parece tão natural - não apenas nossos sentidos processam assim a informação e animais não-humanos também exibem essa característica, como humanos sem instrução formal parecem adotar essa escala para comparar valores - por que a noção de logaritmo aparece tão tardiamente na história da matemática? E mais, a escolha de introduzi-la também tardiamente no ensino (seguindo mais ou menos a ordem cronológica do desenvolvimento histórico dos conceitos matemáticos) é a mais proveitosa (Figura 1)?


Figura 1. Relação temporal histórico e educacional da descoberta e ensino de conceitos matemáticos. (Modificado de Mesoudi 2011)


A instrução formal deve ter um efeito direto sobre a perda do efeito WF na quantificação. Um procedimento similar ao realizado com o mundurukus com crianças americanas no jardim de infância, primeiro ano e segundo ano do nível básico de ensino revelou um mudança gradual no padrão - da relação logarítima para a linear (Figura 2). (Uma questão interessante é como se alterariam os padrões de funcionamento dos neurônios correspondentes ao do estudo com macacos-reso. Há uma restrição ética,no entanto, quanto a se introduzir eletrodos no cérebro de crianças. Seria possível treinar macacos a quantificarem de modo linear?)


Figura 2. Modificação do padrão de avaliação de quantidade em crianças nos anos iniciais de estudo formal: esquerda) jardim de infância, meio) primeiro ano, direita) segundo ano do nível básico. (Fonte: Siegler & Booth 2004.)

Ao mesmo tempo, muitos autores e pesquisadores de matemática relatam que o conceito de função logarítmica é um dos que apresentam maiores dificuldades aos estudantes. Vários autores preferem até mesmo definir logaritmos naturais (ou neperianos) em termos de uma integral (o que sugere que eles achem o conceito de integral mais simples do que de logaritmo). Um efeito indireto do processo educacional?

Há algumas especulações a respeito da vantagem evolutiva do funcionamento do sistema sensório e do processamento de algumas informações sob o princípio WF (lembrando que há quem conteste que o modelo sugerido pelas lei WF descreva bem o padrão real). Uma das hipóteses é que a seleção natural haja no sentido de minimizar o erro relativo da avaliação da grandeza. Nesse caso ficaria a pergunta de por que o erro relativo seria uma característica importante ao indivíduo a ponto de ser alvo de seleção. Uma possível resposta é que o tamanho absoluto do erro que traz diferença significativa ao indivíduo depende do contexto dado pela intensidade do estímulo. Por exemplos: se em uma dada estação a quantidade de comida é escassa, qualquer grão de alimento desperdiçado pode ter consequências graves à sobrevivência ou ao sucesso reprodutivo do indivíduo, mas em uma estação relativamente abundante em recursos, a energia gasta para obter uma migalha a mais não compensaria; se há um predador por perto, o aparecimento de mais um dobram o perigo a que o sujeito está exposto, mas o aparecimento de um predador a mais em meio a outros 10 que já estão no local não faz tanta diferença no grau de perigo.

Mas mesmo derivada de observações empíricas que remontam a pelo menos 1760, a lei Weber-Fechner parece ser ainda um campo amplo para muita pesquisa. De um lado, se ela realmente se aplica para organismos vivos (e para quais subsistemas dos organismos ela se aplica); de outro, caso ela seja uma lei válida ao mundo vivo, destrinchar os detalhes fisiológicos da codificação e interpretação dos sinais segundo o princípio WF e, mais profundamente, os mecanismos e processos evolutivos que levaram ao funcionamento dos sistemas vivos segundo WF.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

It's alive, it's alive! 2

ResearchBlogging.orgO espinhoso e tortuoso tema da definição de 'vida' já foi abordado antes neste blogue. Volto ao tema por causa da postagem de Carl Zimmer.

Por meio dela fiquei sabendo do artigo de Edward Trifonov, biólogo molecular da Universidade de Haifa, Israel, e Masaryk, República Tcheca, publicado em outubro do ano passado. Ele juntou duas compilações anteriores de definições de vida, eliminou as repetições e, a partir, delas criou uma lista de frequência de palavras utilizadas (eliminando artigos, preposições e outros conectores). A seguir, agrupou essas palavras por proximidade semântica (p.e. na categoria LIFE, inclui, além de 'life', 'living', 'alive', 'being', 'biological'...) no que ele chamou de 'definientia', termos definidores - nove no total: 'life', 'system', 'matter', 'chemical', 'complexity', 'reproduction', 'evolution', 'environment', 'energy' e 'ability'*.

Trifonov considerou, então, que vários termos implicitamente incluiem a ação de outros, como 'metabolism' implica 'energy' e 'matter', que implicam em um 'environment'. Para ele, apenas dois termos são independentes: 'reproduction' e 'evolution'. Assim chegou ao conjunto mínimo de termos para uma definição concisa e abrangente: 'Life is self-reproduction with variations'. ['Vida é autorreplicação com variações.']

O artigo mexeu com a comunidade de leitores da publicação. O que levou os editores a dedicarem a edição de fevereiro deste ano ao tema. Dos 34 textos, 21 são sobre a definição proposta: um editorial, 19 artigos comentando o trabalho de Trifonov e um artigo de resposta do próprio Trifonov.

Falhas e limitações da metodologia empregada, claro, são apontadas. Radu Popa, biólogo da Universidade Estadual de Portland, autor de uma das compilações em que se baseou o trabalho de Trifonov, diz que o processo de análise de frequência de palavras para medir a importância do termo aplica-se melhor a campos em que a pesquisa básica já está praticamente completa e consolidada, além disso, o método acaba sendo uma aferição de popularidade dentro de uma comunidade científica e, diz Popa, "if we promote a scientific model based on popularity, then Alfred Wegener was correctly ignored in 1912, when he promoted the concept of continental drift". ["se formos promover um modelo científico baseado na popularidade, então Alfred Wegner foi corretamente ignorado em 1912, quando ele promovia o conceito de deriva continental".] E, no campo da definição de vida, Popa cita o trabalho de Victor Kunin (do Instituto Europeu de Bioinformática) que propõe o início da vida como uma simbiose entre duas redes moleculares (de proteínas polimerase de ARN cooperando com ARNs que codificavam as polimerases proteicas): é uma visão ainda pouco citada entre os modelos de origem da vida e ficaria fora do radar da análise de frequência de palavras.

Referências
Popa, B. (2012). Merits and Caveats of Using A Vocabulary Approach to Define Life Journal of Biomolecular Structure & Dynamics, 29(4), 607-608
Trifonov, E.N. (2011). Vocabulary of Definitions of Life Suggests a Definition Journal of Biomolecular Structure & Dynamics, 29 (2), 259-266

*Upideite(13/jan/2011): sim, a lista tem 10 elementos, mas 'life' é o termo que se quer definir, não sendo, assim, ele mesmo um 'definientium' 'definiens'.

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