Um pseudoexperimento foi realizado. Dados reais, mas obtidos com uma metodologia falha (p.e. não indicava o número de sujeitos experimentais em cada grupo), foram usados para produzir um artigo em que se 'demonstra' que comer chocolate todos os dias ajuda a perder peso.
O artigo Bohannon et al. 2015 Chocolate with high cocoa content as a weight-loss accelerator, International Archives of Medicine 8(55): 8 pp, não está mais disponível (embora possa, por enquanto, ser lido no cachê do Google - o abstract e o pdf). A revista não colocou nenhum aviso. Segundo o blogue Retraction Watch, o IAM alega que o artigo não foi, de fato, aceito e a publicação foi em decorrência de uma falha; mas, ao contrário da nota da revista, o artigo ficou no site por muito mais do que algumas horas, ficando desde abril até a revelação da farsa por Bohannon. (A IAM foi criada pela gigante Biomed Central em 2008 e mantida até 2014. Este ano, a revista passou para a iMedPub, da Internet Medical Society.)
Na Folha saiu na seção F5 (cuidado! contém paywall poroso), destinada a fofocas e bobagens em geral. Não encontrei matéria sobre isso no site do G1, nem no do Estadão.
Em 2012 um outro artigo foi publicado em uma outra revista com nome parecido, Archive of Internal Medicine (atualmente JAMA Internal Medicine), sobre putativos efeitos emagrecedores do consumo regular de chocolate. O estudo, Golomb BA, Koperski S, White HL. Association Between More Frequent Chocolate Consumption and Lower Body Mass Index. Arch Intern Med. 2012; 172(6): 519-52, foi citado pelo artigo de Bohannon e, à época, teve também uma boa cobertura pela mídia. Na Folha saiu um ano depois na seção Saúde e Equilíbrio (cuidado! contém paywall poroso).
Como dito, a intenção de Bohannon foi mostrar a falha no processo de apuração jornalística (e dar mais uma espicaçada nas publicações 'científicas' predadoras). Não é o primeiro experimento do tipo. Em outra área, temos, por exemplo, o "Abraço Corporativo". No fim das contas, qual o real valor do 'experimento' de Bohannon? Não é novidade a existência de tais falhas: o websítio Observatório da Imprensa
Primeiro detalhe. Como no título do artigo no io9 de Bohannon, ele enganou milhões. Gary Schwitzer, no Retraction Watch, concede que Bohannon enganou mesmo foram só um punhado de jornalistas. Coube a estes a tarefa de enganar os milhões de leitores. De todo modo o efeito foi que milhões (a bem dizer é um chute em função do alcance potencial dos meios de comunicação que sabidamente deram espaço e tempo para apresentar os resultados do 'estudo') foram logrados. Isso era sabido que ocorreria se o objetivo do experimento fosse alcançado. A publicação do desmentido raramente tem a mesma repercussão do erro inicial. Não serão os mesmos milhões que serão 'desenganados'. Com a repercussão inicial das mídias sociais e a dinâmica que conhecemos, informações erradas e já desmentidas sempre retornam para nos assombrar (não é mesmo, Gilmar?).
Segundo detalhe. A despeito do que pensa Bohannon: "I don’t think I really put anyone at risk by getting them to eat a little chocolate." ["Não acho que tenha realmente colocado alguém em risco por fazê-lo comer um pouco de chocolate."], não é uma mentira completamente sem consequências. Dentre os milhões desinformados inicialmente (e os que continuarão a ser desinformados), haverá os que terão comido chocolate na esperança de emagrecer, mesmo em situações em que isso não seria recomendado: diabete, sobrepeso, intolerância à lactose ou alergia a algum componente do produto; ou pelo simples fato de se gastar dinheiro inutilmente (já que não se está a consumir apenas pelo prazer). Uma atenuante seria a existência de um estudo verdadeiro que sustenta a relação entre a ingestão de chocolate e o emagrecimento. No entanto, uma vez que o autor não acredita na veracidade dessa relação, ou que ela é ainda sem base suficiente, não há como tirar o corpo complemente fora em
Isso Brohannon não discute em seu artigo de revelação do truque - embora alguns leitores o façam nos comentários. Não sei se ele submeteu seu projeto para algum comitê de ética. Não quero aqui crucificar o autor em sua tentativa, acredito, bem intencionada de esclarecer o modus operandi problemático do jornalismo (científico) atual. Apenas pincelar alguns aspectos que ficaram de lado na discussão principal a respeito desses problemas denunciados (a NPR traz também uma discussão dos aspectos éticos da diatribe do jornalista).
Pode ser que o saldo final do brinquedo seja positivo. Mas temos que colocar na balança os aspectos negativos também.