Lives de Ciência

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domingo, 28 de junho de 2015

Identidade de Euler: a mais bela equação matemática?

"Like a Shakespearean sonnet that captures the very essence of love, or a painting that brings out the beauty of the human form that is far more than just skin deep, Euler’s equation reaches down into the very depths of existence."
["Como um soneto de Shakespeare que captura a própria essência do amor ou uma pintura que traz à tona a beleza da forma humana mais profunda, a equação de Euler alcança o âmago da existência."]
Keith Devlin

PixaçãoIntervenção artística em um ponto de ônibus na Unicamp.

"É bom saber que a equação certamente é a única a ter se tornado evidência num julgamento criminal. Em agosto de 2003, atentados ecoterroristas a uma série de revendedoras de automóveis na região de Los Angeles resultaram em prejuízo de US$ 2,3 milhões; um prédio foi incendiado e mais de cem SUVs foram destruídos ou danificados. O vandalismo incluía pichações dizendo 'BEBEDOR DE GASOLINA' e 'ASSASSINO'; e num Mitsubishi Montero escreveu-se a fórmula e^(i.π) + 1 = 0. Usando isso como pista e posteriormente como prova, o FBI prendeu William Cottrell, estudante de pós-graduação em física teórica no Instituto de Tecnologia da Califórnia, por oito acusações de incêndio criminoso e conspiração para provocar incêndio. No julgamento, que terminou com sua condenação, em novembro de 2004*, Cottrell admitiu ter escrito aquela equação no Montero. 'Eu acho que conheço aquela equação desde os cinco anos de idade', declarou Cottrell durante o julgamento. 'Todos deveriam conhecer o teorema de Euler.'" P: 81.

Crease, R.P. 2011. As grandes equações: a história das fórmulas matemáticas mais importantes e os cientistas que as criaram. Zahar. 276 p.

*Em 2009, a sentença foi anulada na apelação em função da Síndrome de Asperger de Cottrell, que, no entendimento da corte, impediria-o de atuar com dolo. A condenação por conspiração foi mantida. Cottrell foi liberado em 2011.
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Fórmula de Euler. Quando o ângulo φ é igual a 90° (π radianos) temos a identidade de Euler.Fonte: Wikimedia Commons.
A edição de outono de 1988 da The Mathematical Intelligencer perguntou a seus leitores - matemáticos industriais e acadêmicos - qual dentre 24 teoremas matemáticos listados era o mais bonito. As respostas deveriam dar notas de 0 a 10 para cada item. O resultado seria publicado no verão de 1990: em primeiro lugar com uma nota média de 7,7 foi, claro, a identidade de Euler (em segundo, com 7,5 de média, uma outra fórmula de Euler, a do poliedro: V + F = E + 2 - o número de vértices mais o de faces é igual ao número de arestas mais 2; com a mesma média, em terceiro lugar o teorema que diz que o número de números primos é infinito). Como trata-se de uma publicação matemática e não de estatística, deram apenas a média, não os desvios padrões para sabermos se são significativamente diferentes os valores (com n=68 respostas válidas). Em 2004, Robert P. Crease conduziu uma enquete em seu blogue no Physics World, sobre as maiores equações de todos os tempos (o que acabou rendendo seu livro citado mais acima), a identidade de Euler empatou em primeiro lugar juntamente com as quatro equações de Maxwell do eletromagnetismo.
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Fonte: xkcd
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O fato de a identidade envolver três (ou quatro) constantes matemáticas proeminentes é constanfrequentemente citado em sua classificação como belo. Mas apenas isso basta para justificá-lo como tal? O filósofo mexicano Ulianov Montaño Juarez considera um panorama maior:

"The aesthetic experience associated with Euler’s identity depends not only on the person’s inner events occurring during the act of contemplating the formula, but also on things like a person’s knowing the mathematics which allows us to make sense of the sign e^(i.π) + 1 = 0, the way a person’s preferences were formed, other people’s opinions, and so forth. The aesthetic experience of Euler’s identity depends on events that are not necessarily occurring at the exact moment of the experience, but which have an influence on it; that is, the process of experiencing Euler’s identity is embedded in a larger aesthetic-process." P: 86.
["A experiência estética associada à identidade de Euler depende não apenas dos eventos internos à pessoa que ocorrem durante o ato de se contemplar a fórmula, mas também de coisas como a pessoa conhecer a matemática que permite fazer sentido dos símbolos e^(i.π) + 1 = 0, o modo como as preferências da pessoa são formados, a opinião de outras pessoas e assim por diante. A experiência estética da identidade de Euler depende de eventos que não ocorrem necessariamente no momento exato da experiência, mas que têm influência sobre ela; isto é, o processo de experienciar a identidade de Euler é embutida em um processo estético mais amplo."]

Montano, U. 2014. Explaining Beauty in Mathematics: An Aesthetic Theory of Mathematics. Springer. 224 pp.
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A história da identidade de Euler é um tanto enigmática. Certamente o matemático suíço Leonhard Euler (1707-1783) foi o primeiro a obter a fórmula e^(i.v) = cos v + i.sen v e demonstrá-la com rigor matemático no capítulo 8 de seu Introductio in analysin infinitorum. Mas ele nunca escreveu a identidade e^(i.π) + 1 = 0. O mais próximo a que chegou foi o equivalente: ln(−1) = πi. (Sandifer, C.E. 2014. How Euler did even more. MAA. 240pp. Pp: 83-7.)

quinta-feira, 18 de junho de 2015

DC = RP? Leitores comentam

Subo aqui comentários à postagem em que discuto a distinção feita pelo jornalista Bernardo Esteves entre jornalismo científico e divulgação científica.

O jornalista Carlos Orsi, do blogue Olhar Cético, da revista Galileu, e da ACI da Unicamp, escreve:
"Uma coisa que me incomoda um pouco nessas discussões é o uso impreciso da palavra 'ciência'. Que pode ser referir à busca de conhecimento sobre o mundo material, pode se referir aos instrumentos e métodos usados nessa busca, pode se referir às instituições e às pessoas que, na civilização atual, são encarregadas de usar esses instrumentos e executar essa busca. Muito do debate sobre jornalismo científico, principalmente o inspirado no meio acadêmico 'de humanas', tente a tomar a terceira acepção pelo todo: a ideia da "construção social forte" das ciências ainda paira muito por aí."
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A jornalista Verônica Soares, do Minas Faz Ciência/Fapemig, diz:
"Tem um aspecto interessante nessa discussão que raramente é abordado: o fato de que muitas assessorias de imprensa e programas de divulgação das instituições se apropriam das técnicas do jornalismo para divulgar ciência (principalmente em revistas especializadas). Mas, nesses casos, nem sempre há uma busca pelo contraditório, nem sempre há um questionamento mais contundente ao cientista, porque o jornalismo praticado é um jornalismo "institucional", de release, pautado pelas instituições de fomento, por exemplo. Particularmente, acho que esse tipo de divulgação também tem seu lugar e não há demérito em fazer assessoria de imprensa para a ciência, mas o quadro demonstra que há jornalismos, plurais, ou seja, não é só uma questão de fazer a pauta, entrevistar, apurar, mas de identificar de que jornalismo estamos falando. Infelizmente, acho que há cada vez menos espaço para a produção de um jornalismo crítico como o que o Bernardo Esteves defendeu e crescem os Programas e Projetos relacionados ao jornalismo mais institucional, feito no âmbito das assessorias."

terça-feira, 16 de junho de 2015

Divulgação científica = relações públicas das ciências?

O jornalista Bernardo Esteves, da Piauí, faz uma interessante reflexão, em seu blogue "Questões da Ciência", sobre o papel do jornalista de ciências a partir de debate ocorrido na Conferência Mundial dos Jornalistas de Ciências - WCSJ 2015. A necessidade de se postar criticamente em relação ao conhecimento científico e de tornar o processo de produção desse conhecimento mais transparente ao público.

Discordo apenas de um ponto em que ele contrapõe jornalismo de ciências e divulgação científica: "Mas é importante não perder de vista que os profissionais dos dois campos atendem a interesses distintos – se os divulgadores têm como função aproximar a ciência da sociedade, aos jornalistas cabe defender os leitores e cidadãos". Esteves não é nem de longe o único a fazer, mais do que distinção, uma antítese entre os dois conceitos.

No meu entender, o jornalismo de ciências *é* uma *forma* de divulgação científica, uma modalidade dela. No GR, na primeira postagem da série sobre divulgação científica expressei a relação aninhada em termos de meios/agentes. Na terceira postagem trouxe definições acadêmicas das expressões, reproduzo-as novamente:

"Divulgação científica: todo tipo de atividade de ampliação e atualização do conhecimento. Envio de mensagens elaboradas mediante a transcodificação da linguagem técnica para uma linguagem compreensível pelo público amplo. Calvo Hernando 2006.

Também se usam as expressões: vulgarização científica, popularização científica e alfabetização científica."

"Jornalismo científico: transmissão ao público, por meio de notícias, reportagens, entrevistas e artigos, o sentido e o sabor do conhecimento científico, assim como suas crescentes implicações sociais, com papel informativo e formativo. Contribui para preencher lacunas escolares e para atualizar o cidadão. Reis 1984.

Conjunto das atividades jornalísticas que se dedica a assuntos científicos e tecnológicos e que se direciona para o grande público não-especializado, por meio de diversas mídias: rádio, televisão, jornais especializados e outras publicações de divulgação. Thiollent 1984.

Não se restringe à cobertura de assuntos específicos de CT&I, o conhecimento científico pode ser usado para compreender melhor qualquer fato, p.e. sobre uma enchente (divulgada na editoria de cidade), um jornalista pode conversar com meteorologistas para entender o fenômeno natural. Oliveira 2002."

Essas definições preservam a missão que muitos jornalistas, incluindo Esteves, atribuem ao jornalismo: de visão crítica dos processos sociais e instrumentação (atenção, não instrumentalização, que seria quase o oposto) cognitiva dos leitores para que possam se posicionar em relação aos temas que os afetam.

Mas, de um lado, não se pode dizer que seja uma missão que se possa (nem que se deva) atribuir exclusivamente ao jornalismo. De outro, não vejo como uma missão necessariamente vinculada ao jornalismo. Não entendo que a distinção seja em termos de objetivos almejados. Para mim, a distinção é tão somente de processos (a distinção mencionada acima de meio pode ser vista como condicionante do processo e/ou condicionado por este) envolvidos na elaboração do texto/mensagem. O jornalismo de ciências é uma modalidade de divulgação científica que lança mão de um conjunto de técnicas e instrumentos jornalísticos como: montagem de pauta, entrevistas com fontes, apuração das informações... (o condicionamento pelo meio pode ser visto por tais técnicas e instrumentos serem demandados pelo ofício em jornais, revistas, canais de rádio e TV em programas de jornalismo... o condicionamento do meio pode ser visto por tais técnicas transformarem os canais efetivamente em um canal jornalístico: digamos um blogue irá assumir uma cara de jornal com textos/mensagem geradas com o uso de tais instrumentos, ao mesmo tempo em que o blogueiro estará atuando como um jornalista).

A transmissão (essencialmente) passiva) do conhecimento científico, a função de aproximação entre ciência e sociedade, sim, são objetivos compatíveis com a divulgação de modo geral, mas não são definidoras dela. Isso é mais uma caracterização da ação de relações públicas. Sim, a divulgação científica *pode* assumir a forma de relações públicas das ciências, mas *não necessariamente* precisa assumir tal feição.

Se se contrapõe jornalismo de ciências à divulgação de ciências, está a se reduzir a última a ação de RP. É mais útil pensar que a DC engloba tanto o JC quanto o RPC (e mais coisas). Do mesmo modo como tanto jornalismo quanto relações públicas pertencem ao grande campo da comunicação social (que inclui ainda outras coisas como publicidade).

A DC tanto pode como muitas vezes assume a forma de crítica às ciências. P.e., o caso mais recente das declarações sexistas do nobelista Timothy Hunt, no mesmo WCSJ 2015, foi foram bastante analisadas por vários blogues de divulgação científica. PZ Myers, em seu Pharyngula, não é e não atua como jornalista ao opinar sobre o caso. Ben Goldacre não é e geralmente não atua como jornalista ao criticar a Big Pharma e a indústria autointitulada "medicina alternativa complementar" (que, via de regra, não é nenhuma das três coisas). Mas ambos estão, sim, atuando como divulgadores de ciências.

Mostrar os intestinos das ciências é uma tarefa nobre do bom jornalismo de ciências, mas não é uma tarefa que só o JC saiba fazer, nem que só ele deva fazer. Não há oposição. Deve haver complementaridade. E essa complementaridade não se dá por um ser uma coisa e outra ser outra coisa. Se, no geral, é mais fácil ao jornalista de ciências ter o afastamento necessário; ao cientista, no geral, é mais fácil ter acesso em primeira mão. Um não jornalista e não cientista também pode contribuir com a DC fazendo a sua análise na posição de cidadão - ou de sua outra expertise (filósofo, cozinheiro, político, dono de casa, empresário, banqueiro, limpador de piscinas...). Se o cientista pode estar preso dentro dos interesses da academia  - ou do complexo político-industrial que sustenta sua pesquisa -, há que se considerar que o jornalista tampouco será necessariamente isento dos interesses que seu veículo representa. Interesses que podem perfeitamente ser legítimos, diga-se. (Idem para outros atores da DC.)

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Divagação científica - divulgando ciências cientificamente 22

Um tema muito debatido nos estudos sobre divulgação científica é o chamado "modelo do déficit". Há uma variação em torno do que se entende pela expressão, mas uma das definições consiste na hipótese de que há uma correlação positiva (causacional?) entre "conhecimento científico" e "atitude em relação às ciências". Isto é, as pessoas tendem a ter uma visão mais positivas em relação à prática científica quanto maior seu conhecimento sobre ciências.

Muitos pesquisadores da área e divulgadores de ciências, especialmente os que têm uma formação mais afim das Humanidades (jornalistas, cientistas sociais, historiadores...) e, em menor grau, de Ciências da Vida e Saúde (biologia, medicina, psicologia...), tendem a rejeitar o modelo.

Nick Allum e cols. 2008 resolveram colocar a questão à prova em uma base mais sólida. Fizeram um estudo de meta-análise compilado dados para várias culturas.
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Allum, N. et al. 2008. Science knowledge and attitudes across cultures: a meta-analysis. Public Understanding of Science 17(1): 35-5. doi: 10.1177/0963662506070159.

18 palavras-chaves foram utilizadas para se buscar por artigos em bancos de dados como o ISI Web of Knowledge, Medline, Google... “public”, “science”, “knowledge”, “citizens”, “understanding”, “technology”, “survey”, “biotechnology”, “awareness”, “environment”, “risk”, “perception”, “measurement”, “genetic”, “literacy”, “opinion”, “engineering” e “attitudes” com conectores "and" ou "or".

Dos 300 artigos, relatórios e outros resultados, 193 amostras de dados foram selecionadas (com base em se as amostram eram aleatórios e representativas de populações em nível nacional) abrangendo 40 países e cobrindo os anos de 1989 a 2004.

As escalas de conhecimento científico puderam ser classificadas em duas categorias abrangentes: conhecimentos científicos de livros-textos gerais de ciências e conhecimento sobre biologia e genética (como "tomates comuns não contêm genes, enquanto tomates geneticamente modificados têm").

As escalas de atitude incluíam 5 grandes áreas: 1) ciência em geral, 2) energia nuclear, 3) medicina genética, 4) alimentos geneticamente modificados (OGMs) e 5) ciências ambientais.

Corrigindo para idade, sexo e escolaridade, a relação geral entre conhecimento e atitude foi baixa (0,08) mas significativa (a alfa=5%). Foi significativamente negativa para atitudes sobre OGMs e ciências ambientais. E quanto maior o conhecimento de biologia/genética mais negativa a atitude em relação às ciências. Quanto maior o conhecimento sobre biologia, melhor a atitude em relação aos OGMs e às ciências ambientais.

Pessoas com formação no ensino superior tiveram uma melhor atitude em relação às ciências.

Corrigindo para fatores como PIB per capita, acesso à internet, número de pessoas com ensino superior, os americanos foram os que apresentaram a melhor atitude em relação às ciências entre as populações analisadas no levantamento; os gregos, a pior.

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Infelizmente, o Brasil não esteve entre os países analisados. O que não surpreende, dada a falta de estudos de abrangência nacional que contemplem tanto as atitudes (foco dos levantamentos do MCTI) quanto o conhecimento (foco do estudo da Abramundo). Estudos que contemplam as duas dimensões são apenas regionais, como o do Labjor (estado de São Paulo). (Sim, um dia compilo os dados da pesquisa GR, mesmo não tendo representatividade nacional.)

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