Lives de Ciência

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segunda-feira, 30 de maio de 2016

Como é que é? - Zoológicos fazem mais mal do que bem para a conservação? O caso do gorila Harambe.

Na trilha do triste episódio do abatimento de um gorila no zoológico de Cincinnati para o resgate de um menino de quatro anos, alguns protestos foram gerados tanto em relação ao sacrifício do animal quanto, mais genericamente, aos zoológicos.

Já tratei aqui no GR a respeito das críticas aos zoos; mas volto ao tema em função de um texto que vi compartilhado no facebook.

Antes, duas observações menores. A primeira: O texto diz que há somente 700 gorilas no mundo. Parece que confundiram com o gorila das montanhas (Gorilla beringei beringei), com uma população em torno de 880 indivíduos. Mas o gorila das montanhas *não* é mantido em zoos. Programas de captura para criação em cativeiro fracassaram. A espécie de gorila que vemos nos zoos é o das planícies (Gorilla gorilla), é espécie criticamente ameaçada, mas tem uma população provavelmente muito maior do que 700 indivíduos na natureza. A subespécie ocidental (G. g. gorilla) parece ter uma população de cerca de 90.000 a 100.000 indivíduos.

A segunda: Também é dito que o gorila não agrediu o garoto nos 10 minutos em que ele ficou no habitáculo dos animais. É verdade, mas bom dizer que embora o gorila não tenha agredido o menino, estava arrastando-o pra lá e pra cá, inclusive na água, onde a criança corria o risco de se afogar. Se a decisão de abater o animal em vez de tentar sedá-lo (o argumento é que levaria tempo até o efeito se fazer notar) ou descer pessoal para tentar afastar o bicho do garoto (com o risco de assustar o animal e ferir o menino) foi a melhor, é passível de discussão. Embora meu desejo seja de que o primata não fosse morto, não tenho condição de avaliar a correção da decisão pelos elementos disponíveis.*

Agora o ponto principal. Para o autor do texto, o incidente é um exemplo de que os zoológicos são danosos à preservação dos animais. Bem o parque zoológico (e botânico) de Cincinnati é dos zoos modernos (apesar de ser o segundo mais antigo dos EUA) com ambientes enriquecidos e 'humanizados'. Um de seus programas de conservação envolve a reabilitação e liberação de manatis. Outro projeto é o de reprodução de gorilas. E, em agosto de 2015, comemorou-se o nascimento do 50o. (quinquagésimo) bebê gorila no zoo de Cincinnati desde o início do programa de reprodução da espécie em 1970. O tamanho do sucesso levou à necessidade de *desacelerar* o programa para impedir a introdução de um número grande de indivíduos geneticamente próximos, o que poderia reduzir a variabilidade genética da população de gorilas mantida nos EUA.

Quando se pensa no fechamento de zoos, pensa-se em sua substituição por santuários - basicamente áreas protegidas particulares. A comparação normalmente é feita com base em zoos precários contra santuários bem estruturados. Mas assim como há zoos em condições terríveis e zoos bem estruturados (caso do de Cincinnati), também há uma variedade de condições entre os santuários: dos com boa infraestrutura e pessoal capacitado a meros depósitos de animais.

Em uma análise das reservas privadas, Langholz & Lassoie (2001) concluem:
"Private reserves are no panacea for the world's biodiversity conservation woes. The total amount of land they currently protect is unknown, but it certainly represents less than 1% of the Earth's land area, with undetermined potential for expansion. As is the case with community-based natural resource management, integrated conservation and development projects, and other recent conservation themes, private protected areas represent but one option in the conservation toolbox. Like all tools, they are best used in situations that maximize their particular strengths while minimizing their weaknesses.

Privately owned parks will not and should not replace government parks. Likewise, governments should resist pressure to privatize existing public protected areas. Biodiversity benefits from having a core constituency within the government, a public agency capable of battling against competing ministries such as forestry, mining, fishing, agriculture, tourism, and other sectors that can disrupt park protection. Too much reliance on the private sector could erode crucial internal support provided by a fully staffed park agency. Similarly, excessive clamoring over private parks runs the risk of lowering political will to support publicly protected areas."
["Reservas particulares não são nenhuma panaceia para as misérias da conservação da biodiversidade mundial. A área total atualmente protegida por essas reservas é desconhecida, mas certamente representa menos de 1% da área total da Terra, com potencial não determinado para expansão. Como é o caso de manejo de recursos naturais centrado nas comunidades, projetos integrados de conservação e desenvolvimento e outros temas recentes de conservação, áreas protegidas particulares são apenas uma das opções na caixa de ferramentas da conservação. Como toda ferramenta, elas são mais bem utilizadas em situações que maximizem seus pontos fortes e minimizem seus pontos fracos.

Parques privados não devem e não irão substituir parques estatais. Assim, os governos devem resistir à pressão de privatizar as áreas públicas protegidas existentes. A biodiversidade se beneficia da existência de um núcleo representante permanente no governo, uma agência pública capaz de lutar contra ministérios adversários como das florestas, minas, pesca, agricultura, turismo e outros setores que podem contestar a proteção do parque. A dependência excessiva do setor privado pode corroer o apoio interno crucial dado por uma agência de parques completamente provida de recursos humanos. Igualmente, a grita excessiva em prol de parques privados leva ao risco de diminuir a vontade política em apoio a áreas públicas protegidas."]

Nota: O material genético do corpo de Harambe, o gorila morto, foi recolhido e pode ajudar no programa de reprodução da espécie.

*Upideite(31/mai/2016): O primatólogo Frans de Waal fala mais em sua página no facebook sobre a dificuldade da decisão tomada pela direção do zoo em sacrificar o gorila. via Andressa Menezes fb.

Upideite(31/mai/2016): O que a DCsfera está falando sobre o assunto?
31.mai.2016 Papo de Primata: Quem será responsabilizado pela morte do gorila Harambe?
02.jun.2016 Canal do Pirula: O gorila e o dilema dos zoológicos (vídeo, não vi)

Upideite(31/mai/2016): Yara de Melo Barros, do Parque das Aves, também fala sobre o episódio, sobre as dificuldades da decisão tomada e da importância dos zoo na conservação dos gorilas. via @discutindoeco tw.

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Diversidade no trabalho: variedade é bom? Sim (talvez).

Panelinhas, atração de semelhantes, preconceitos, razões históricas, interesses em comum... Por diversas razões, muitas vezes equipes e grupos acabam sendo formados com pouca diversidade (sexual, étnica, cultural, etária...). Por exemplo, há baixa participação de mulheres e de negros em várias áreas científicas; na reunião dos ScienceVlogs também acabou havendo poucas mulheres, sendo a maioria do grupo composta de homens, jovens e brancos - no caso, não por exclusão ativa e consciente de outros grupos, posso atestar.

Esforços são dispendidos para promover a diversidade (política de ações afirmativas, p.e.), enquanto críticas são feitas em relação a esses esforços. Mas a diversidade é boa? Ela atrapalha?

De um lado, a diversidade de indivíduos ajuda a trazer uma diversidade cognitiva, diferentes pontos de vista, diferentes trajetórias pessoais. Essa diversidade cognitiva pode ser positiva para o desempenho da equipe: p.e. trazendo soluções que outros não conseguiram imaginar por não serem imediatamente relacionadas às suas vidas. Por outro lado, grupos homogêneos podem ser mais coesos, tornando as tarefas mais eficientes. Qual dos pontos de vista é mais correto?

Vários estudos têm sido realizados deste pelo menos a década de 1950. Mas os resultados são variados: alguns favorecendo equipes homogêneas; outros, equipes heterogêneas. Metanálises em cima desses estudos indicam que... tanto faz... bem, mais ou menos.

Uma metanálise realizada por Horwitz & Horwitz (2007) sobre 35 artigos publicados entre 1985 a 2006 concluiu que a diversidade de características relacionadas às tarefas (e.g. expertise funcional, escolaridade, tempo na organização...) tem um efeito positivo sobre o desempenho da equipe; mas que a diversidade bio-demográfica (e.g. sexo, raça, etnia...) tem efeito nulo.

Em outra metanálise, Webber & Donahue (2001), com 24 estudos realizados desde 1980, as autoras não encontraram nenhum efeito (positivo ou negativo) geral da diversidade/homogeneidade no desempenho das tarefas pelas equipes.

Bowers et al. (2000) fizeram uma metanálise de 13 estudos realizados desde a década de 1960 sobre efeito de diversidade no desempenho de equipes na execução de tarefas. De modo geral, não há uma diferença significativa entre os desempenhos de equipes homogêneas na composição em relação a equipes heterogêneas. Porém, em tarefas mais complexas, equipes mais diversas tendem a se sair melhor:

"[T]he data from this integration do suggest that homogeneous teams will benefit from tasks that (a) are well-defined, (b) require little integration of data, and (c) require simple responses. Tasks in which limited available data require a great deal of computation and complex responses may be better suited to teams with more diverse membership. This finding lends added support to much of the research on team composition. Complex tasks defined by limited data, by definition, would require higher levels of creativity to perform. Thus, the findings of Triandis and his colleagues (1965) that teams that are heterogeneous in attitude are more creative is supported by this integration. Furthermore, the fact that these complex tasks would also require individuals to seek out all available sources of information supports Bantel’s (1994) findings of a positive relationship between heterogeneity and planning openness. Heterogeneous teams working on complex tasks with limited information must focus on a wider range of options to perform their task effectively." Bowers et al. 2000.
["[O]s dados desta integração sugerem que equipes homogêneas irão se beneficiar de tarefas que (a) são bem definidas, (b) requerem pouca integração de dados e (c) requerem respostas simples. Tarefas em que dados disponíveis limitados requerem um grande esforço computacional e respostas complexas devem cair melhor em equipes com composição mais diversa. Estes achados dão apoio adicional à maior parte da pesquisa sobre composição de equipes. Tarefas complexas definidas por dados limitados, por definição, exigirão níveis mais elevados de criatividade para serem executadas. Assim, os achados de Triandis e colaboradores (1965) que as equipes que são heterogêneas na atitude são mais criativas são apoiados por esta integração. Mais, o fato que essas tarefas complexas também exigiriam que os indivíduos busquem por todas fontes de informação apoia os achados de Bantel (1994) de uma relação positiva entre heterogeneidade e abertura de planejamento. Equipes heterogêneas trabalhando em tarefas complexas com informações limitadas devem se focar em um leque mais amplo de opções para executarem suas tarefas efetivamente. "]

Já na meta-análise de Bell et al. (2010), com 92 fontes (como artigos e teses) de 1980 a 2009, a diversidade funcional teve um efeito positivo, ainda que pequeno, (ρ = 0,9; DP = 0,15) e a diversidade sexual (ρ = -0,10; DP = 0,13) e racial (ρ = -0,06; DP = 0,11), um pequeno efeito negativo no desempenho das tarefas pelas equipes.

Pelos melhores dados, então, a diversidade de gêneros e étnico-racial ou não têm efeito (não ajudam, mas também não atrapalham) ou têm efeito pequeno (negativo ou positivo para certas condições). Nessas circunstâncias, vale a penas exigir maior diversidade (bio-demográfica)?

Tendo a achar que sim. Já que, no pior dos casos, haveria apenas uma pequena queda do desempenho, os ganhos potenciais não relacionados diretamente ao desempenho: a representatividade, a diversidade em si, a inclusão de minorias, a inspiração dos role models... mais do que compensariam. Em situações mais específicas (em que a queda de desempenho seja maior e significativa - ou que qualquer ganho de desempenho seja necessário - ou que os custos de geração de diversidade sejam desmesuradamente altos, p.e. campanhas de outreach sejam muito caras) grupos homogêneos podem ser defensáveis ou desejáveis.

quarta-feira, 25 de maio de 2016

GR Apresenta: palestras, apresentações, seminários, aulas... sobre DC

Relação de minhas apresentações a respeito de divulgação científica em diversos eventos disponibilizados no GR.

.O Biólogo e a Divulgação Científica 2.5: XII Congresso Aberto aos Estudantes de Biologia. 21 de julho de 2015. Campinas/SP.
.Divulgação Científica nas Interwebs: dos blogs às mídias sociais: palestra para disciplina de Seminários de Ciência e Cultura, do curso de especialização em Jornalismo Científico do Labjor. 16 de novembro de 2015. Campinas/SP.
.Divulgação Científica nas Interwebs: dos blogs às mídias sociais (2):  EDICC 3 - 3° Encontro de Divulgação Científica de Ciência e Cultural. 29 de março de 2016. Campinas/SP.
.Introdução ao mundo dos blogues/Blogues de ciências de sucesso: 2° Curso de Blogs para a Comunidade Científica da Unicamp. 3 e 4 de maio de 2016. Campinas/SP.
.Por que Gallus gallus domesticus atravessou a rua? Ciência&humor: dá samba?: 15°CICAM/IB. 12 a 14 de setembro de 2017. São Paulo/SP e 25°SIICUPS/EE - 1a fase. 14 de setembro de 2017. São Paulo/SP.
.Divulgando Ciências Cientificamente. Disciplina de Pós-Graduação QBQ5901 "Divulgação Científica na Internet", Prof. Dr. Carlos Hotta, IQ/USP. 14 de setembro de 2018. São Paulo/SP.
.Que história é essa de storytelling? Uma história tentativa e ainda beeeem incompleta sobre o que a ciência diz a respeito do uso de técnica narrativa na divulgação científica e áreas afins: Disciplina de Pós-Graduação DSO 803 "Seminário temático", Prof. Dr. Marden Campos, DSO/Fafich/UFMG. 23 de outubro de 2019. Belo Horizonte/MG.

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Introdução ao mundo dos blogues/Blogues de ciências de sucesso

Dias 3 e 4 de maio, o EA2 e o Labjor da Unicamp realizaram o 2° Curso de Blogs para a Comunidade Científica da Unicamp. Voltado para pós-graduandos, pesquisadores e docentes da Unicamp, o curso é parte do projeto de divulgação científica por meio da comunidade institucional de blogues da universidade.

Abaixo seguem minhas apresentações para o curso.
Nota: Alguns slides são reaproveitados de apresentações minhas anteriores.*



*Upideite(20/mai/2016): adido a esta data.

sexta-feira, 13 de maio de 2016

Medicina vs. terapias alternativas: mal menor?

Venho adiando a publicação desta postagem por vários motivos: necessidade de uma investigação maior, superveniência de outros temas mais candentes, outras tarefas... Mas com a publicação da postagem de Carlos Orsi sobre um novo estudo da influência (negativa) do uso de terapias alternativas e complementares no tratamento do câncer, creio que este texto possa servir como um bom... ahem, complemento.

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Críticos das ciências (ou do cientificismo), com razão, apontam para os perigos da crença cega no conhecimento científico. Por outro lado, a rejeição cega às ciências também é danosa.

Uma pergunta que lancei há algum tempo era: o que é pior, acreditar cegamente nas ciências ou adotar uma postura de rejeição automática a ela?
Um campo potencial de se tentar responder a isso é a medicina. Há perigo maior, por exemplo, em seguir todas as recomendações médicas (incluindo exames desnecessários, remédios e procedimentos errados e outras iatrogenias - doenças e problemas de saúde causadas pelos próprios agentes de saúde) ou ignorá-las e seguir terapias alternativas?

Levantamentos a respeito do uso de técnicas classificadas como "medicina complementar e alternativa" (CAM, "complementary and alternative medicine") resultam em uma fração variada de prevalência entre pacientes de câncer (dependendo, por exemplo, da definição adotada de CAM). Uma variação de 7% a 64% tem sido obtido - com valor médio de 30 a 35%.

Há uma visão da população em geral - e de muitos políticos e autoridades sanitárias - de benignidade da CAM: no pior dos casos, não funcionariam, mas serviriam de alento aos pacientes. Um estudo com pacientes noruegueses publicado em 2003 mostra, no entanto, o perigo dessas técnicas. Pacientes com câncer que lançam mão delas têm um risco 30% maior de morrer do que pacientes que não as usam.

Mas e quanto aos problemas causados pela própria medicina - como erros médicos, excessos, negligências, ganâncias, informações incompletas e outros -?

Só nos EUA, estimam-se as mortes iatrogênicas como algo entre 44.000 a 225.000 casos por ano. Algo entre 1,7 a 8,7% do total de mortes nos EUA. Muita coisa.*

E no caso de câncer? Um estudo com câncer testicular nos EUA, de 1982, detectou uma razão de morte iatrogênica de 6%. Outro, de 2004, no Japão, com carcinoma esofágico, reportou 1 caso iatrogênico em 43 mortes relatadas (2,3%).

Considerando-se as cerca de 590 mil mortes em 2015 por câncer nos EUA, em pouco menos de 14,5 milhões de pacientes com a doença por lá; aplicando-se uma prevalência de 30% no uso de CAM e a razão de perigo de 1,3 em seu uso, por ano teremos cerca de 48.700 mortes atribuíveis ao uso de técnicas ditas alternativas em pacientes de câncer. Ao mesmo tempo, considerando uma razão de 6% de morte iatrogênica, serão 35.400 mortes atribuíveis a diversos erros e negligências médicas em pacientes com câncer.

O risco, pelos melhores dados que temos, é substancialmente maior no uso de CAM do que em decorrência de problemas iatrogênicos: 30% vs. 6%. Em termos absolutos, parte disso é compensado pela maior base de casos de pacientes submetidos a procedimentos médicos - virtualmente 100% - do que a procedimentos ditos alternativos: cerca de 30%.
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Hendriks et al. (2015) desenvolveram um teste para diagnosticar as características que as pessoas leigas usam (um dia entro na polêmica sobre o uso do termo 'leigo' para se referir às pessoas sem especialização em um dado tema) como critério para confiar ou não em especialistas. Talvez seja o caso de aplicar tal teste para orientar como os especialistas que usam métodos cientificamente validados possam se apresentar como mais confiáveis do que terapeutas ditos alternativos.

*Upideite(17/mai/2016): Para uma visão crítica em relação estes números, uma postagem do Respectful Insolence. (via @carlosom71)

sábado, 7 de maio de 2016

Padecendo no paraíso 6

Figura 1. Aquilonifer spinosus. Autor: Derek Briggs.
Fonte: Wikimedia Commons
Durante a preparação de fóssil de um pequeno artrópodo marinho (cerca de 1 cm de comprimento), o paleontólogo Derek Briggs e colaboradores (2016) notaram estruturas ainda menores (cerca de 2 mm de comprimento) ligados aos espécimes por meio de filamentos. (Fig. 1)

Cada uma dessas estruturas parecem com um saco dos quais em alguns deles brotam pequenos apêndices. A organização aparentemente segmentada e a presença desses apêndices levaram os cientistas a suspeitar que são também artrópodos.

Três grandes hipóteses foram avaliadas quanto à natureza desses pequenos anexos. Poderiam ser parasitas, caroneiros epizoóticos ou... filhotes do artrópodo maior.

Para os autores do trabalho, a posição afastada do hospedeiro, na extremidade de filamentos, não seria favorável a uma ação de parasitismo, de sugar os fluidos corporais do organismo parasitado. Também não seriam caroneiros, porque o hospedeiro dificilmente toleraria um número tão grande deles - 10 -, sendo que poderia facilmente removê-los com seus longos apêndices da cabeça (em verde na Fig. 1): argumento que também valeria para a hipótese do parasitismo.

As 10 cápsulas com pernas ligadas por longos filamentos seriam, então, jovens presos ao corpo do adulto que seriam arrastados para lá e para cá, enquanto o pai ou a mãe (não se sabe o sexo do indivíduo carreador) nadava pelos mares da região que hoje é a Inglaterra.

A visão deslumbrada pelos cientistas que descreveram os espécimes é de pipas (papagaios, pandorgas, quadrados, etc.) empinadas, o que levou-os a batizarem a espécie de Aquilonifer spinosus, do lat. 'aquila' (águia, pipa), 'fer-' (o que porta) e 'spinosus' (espinhoso, pelos espinhos laterais nos tergitos - elementos da carapaça do adulto).

Aparentemente esse tipo de cuidado parental - com filhotes ou jovens carreados por meio de filamentos - é desconhecido em outras espécies até o momento.
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Se o adulto realmente seria capaz de eliminar parasitas ou caroneiros por meio de seus apêndices cefálicos é discutível na medida em que sabemos pouco sobre a resistência dos filamentos. Certamente eram fortes o bastante para manterem-nos firmemente presos enquanto o pai/mãe/hospedeiro nada por aí. E também para mantê-los afixados enquanto os processos de soterramento e fossilização dos indivíduos ocorria.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

A persistência do mito da tortura funcional

Felizmente, a maioria dos brasileiros (71%) acham que a tortura não se justifica sob nenhuma circunstância. Infelizmente, uma minoria nada desprezível (21%) acreditam que a tortura se justifique para obter provas (ao menos se for a única maneira de obtê-las) e punir criminosos. Isso segundo os dados do Datafolha de 2014.

Mas, deixando de lado (de modo mais do que imprudente - e até impudente) por um instante a questão ética, a tortura é um meio eficaz de se combater a criminalidade? Os dados indicam que não.

"It is commonly believed that torture is an effective tool for combating an insurgent threat. Yet while torture is practiced in nearly all counterinsurgency campaigns, the evidence documenting torture’s effects remains severely limited. This study provides the first micro-level statistical analysis of torture’s relation to subsequent killings committed by insurgent and counterinsurgent forces. The theoretical arguments contend that torture is ineffective for reducing killings perpetrated by insurgents both because it fails to reduce insurgent capacities for violence and because it can increase the incentives for insurgents to commit future killings. The theory also links torture to other forms of state violence. Specifically, engaging in torture is expected to be associated with increased killings perpetrated by counterinsurgents. Monthly municipal-level data on political violence are used to analyze torture committed by counterinsurgents during the Guatemalan civil war (1977–94). Using a matched-sample, difference-in-difference identification strategy and data compiled from 22 different press and NGO sources as well as thousands of interviews, the study estimates how torture is related to short-term changes in killings perpetrated by both insurgents and counterinsurgents. Killings by counterinsurgents are shown to increase significantly following torture. However, torture appears to have no robust correlation with subsequent killings by insurgents. Based on this evidence the study concludes that torture is ineffective for reducing insurgent perpetrated killings." (Sullivan 2014)
["Acredita-se comumente que a tortura seja uma ferramenta eficaz no combate à ameaça insurgente. No entanto, embora a tortura seja pratica em quase todas as campanhas de contra-insurgência, os indícios documentando os efeitos da tortura permanecem seriamente limitados. Este estudo fornece a primeira análise estatística em micronível da relação entre a tortura e as mortes subsequentes cometidas por forças insurgentes e contra-insurgentes. Os argumentos teóricos defendem que a tortura é ineficaz na redução de mortes perpetradas por insurgentes tanto porque ela falha em reduzir a capacidade dos insurgentes para a violência quanto porque ela pode aumentar os incentivos para os insurgentes cometerem futuras mortes. A teoria também liga a tortura a outras formas de violência de Estado. Especificamente, ao engajamento na tortura é esperado associar-se um aumento nas mortes perpetradas por contra-insurgentes. Dados mensais em nível municipal de violência policial são usados para analisar a tortura cometida por contra-insurgentes durante a Guerra Civil Guatemalteca (1977-94). Com o uso de amostras-pareadas, estratégia de identificação por diferença em diferença e dados compilados por 22 diferentes fontes da imprensa e ONGs, bem como milhares de entrevistas, o estudo estima como a tortura é relacionada a mudanças de curto prazo nas mortes perpetradas tanto por insurgentes quanto por contra-insurgentes. É demonstrado que mortes por contra-insurgentes aumenta significativamente após tortura. No entanto, a tortura parece não ter nenhuma correlação robusta com mortes subsequentes por insurgentes. Baseado nesses indícios, o estudo conclui que a tortura é um meio ineficaz na redução de mortes perpetradas por insurgentes."]

Hajja (2009) em uma revisão intitulada "Does torture work? A sociolegal assessment of the practice in historical and global perspective" conclui: "At a very high cost, the U.S. case confirms that torture does not work by any measure. No modern regime or society is more secure as a result of torture. Its use spreads, its harms multiply, and its corrosive consequences boost rather than diminish the threat of terrorism. Nunca más, indeed." ["A um custo muito alto, os casos americanos [como a tortura em Abu Ghraib e outras na chamada 'guerra ao terror'] confirmam que a tortura não funciona em nenhuma medida. Nenhum regime ou sociedade modernos estão mais seguros em função da tortura. Seu uso espalha, seu dano multiplica e suas consequências corrosivas impulsionam em vez de diminuir a ameaça do terrorismo. Nunca más, de fato." - grifo no original]

Houck et al (2014) obtiveram em um conjunto de dois experimentos um resultado não surpreendente de que a crença na eficácia da tortura tende a aumentar quando, em avaliações de cenários hipotéticos, as vítimas são mais próximas aos sujeitos experimentais.

Janoff-Bulman (2007) apresenta (4) quatro causas principais para a persistência do mito de eficácia da tortura na obtenção de informações úteis no combate ao crime.

1) Confusão entre conformidade (compliance) e exatidão (accuracy): métodos de intimidação e tortura geram medo e necessidade de autoproteção, o que induz o interrogado a rapidamente concordar com tudo o que o interrogador/torturador disser. A investigação, no entanto, não deve ser uma ação de obtenção de submissão pré-especificada, mas, sim, a obtenção de novas informações confiáveis. (Aqui me vêm à mente a piada do campeonato mundial de investigação. A Scotland Yard, o FBI e uma força policial estadual de um certo país tropical abençoado por deus - FPEPTAD - disputaram para ver quem tinha os melhores métodos de solução de casos. Para cada um deles foi liberado um coelho que deveriam rastrear e trazer de volta à comissão julgadora. A Scotland Yard foi a primeira. Seus agentes saíram distribuindo panfletos com foto do coelho, analisando pegadas, fazendo exame de ADN nos pelos encontrados e, em 4 dias, voltaram com o leporídeo. O FBI foi em seguida. Usando equipamento de termografia e rastreamento por satélite, voltaram com lagomorfo em 3 dias. A PM FPEPTAD, na sua vez, saiu em disparada mato adentro e, em duas horas, voltou com um animal ensanguentado e cheio de lacerações e marcas de queimadura por toco de cigarro pelo corpo. O bicho grunhia. Seu focinho de tomada e o rabicó em saca-rolhas não deixavam dúvidas para a comissão julgadora. "Mas isso é um porco!", exclamou um dos jurados. "Não, não, é um coelho. Quer ver só?", insistiu um dos membros da FPEPTAD. Dando uma cacetada na cabeça do porco animal: "Diz pro senhor aí o que você é?". "Eu sou um coelho, eu sou um coelho", respondia o porco coelho.)

2) Achar que aplicação de influência social deve ser apenas para "humanos", a tortura pode ser aplicada para os "desumanizados". O bom interrogatório pouco mais é do que a psicologia social aplicada. Há vários métodos de estabelecimento de influência social, baseados no correto entendimento dos motivos, necessidades e autopercepções do suspeito, com a criação de vínculo de confiança mútua entre interrogador e interrogado. Muitas pessoas imaginam que isso só funciona para pessoas "de bem", para pessoas cruéis como terroristas técnicas igualmente cruéis devem, para elas, ser utilizadas. (Uma frase que vêm à mente é o mantra conservador: "direitos humanos para humanos direitos".)

3) Subestimação da resistência. Ao imaginar cenas de dor excruciantes, as pessoas tendem a imaginar que elas logo cederiam e, projetando-se para os interrogados, eles também rapidamente acederiam para parar a dor. Porém, ao dar atenção apenas para o aspecto mais saliente - a dor física -, deixamos de lado a existência de elementos mais sutis que permitem ao interrogado resistir ao suplício sem entregar nenhuma informação - nem mesmo uma falsa. Processos dissociativos - em que a pessoa deixa de associar o corpo a estados mentais - podem proteger psicologicamente o torturado minimizando a dor sentida. Outro processo de resistência é o torturado desenvolver um significado de alto valor ao sofrimento. (A imagem do suplício da personagem bíblica Jó e mesmo de Josué de Nazaré dão conta do segundo caso. Inspirando diversos mártires ao longo do tempo. Outra imagem associada são das autoimolações em atos de protestos e de expressão de fé.)

4) Mudança de objetivo para a vingança pura e simples. Quanto mais danosa é a imagem que se faz da pessoa a ser interrogada: sujeito frio, cruel, assassino, sádico, psicopata... maior a propensão das pessoas a se desviarem do objetivo da obtenção de informações úteis. Esse parece ser o caso de parte dos 21% de brasileiros que dizem que a tortura pode ser usada para punir um criminoso.

Janoff-Bulman reforça que depoimentos de interrogadores militares mais experientes e os anos de pesquisa apontam para a eficácia dos métodos de influência social por trabalhos de inteligência. Nesse caso, o uso continuado de técnicas de tortura no processo investigatório não é a prova de que elas funcionam, mas sim de que as pessoas continuam *achando* que funcionam.

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