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terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Como é que é? - Atletas mulheres trans levam vantagem sobre atletas mulheres cis?

A recente estreia da jogadora Tiffany Abreu, transgênero (pessoa que nasce com o sexo biológico oposto ao qual com que se identifica) homem-mulher, na Superliga de Vôlei Feminino, causou bastante interesse - é a primeira atleta trans a atuar em uma competição de elite no voleibol nacional. Bastante interesse e muita polêmica. Por exemplo, a ex-jogadora Ana Paula Henkel criticou a decisão da federação de permitir a participação - embora, como a própria Henkel reconhece, sob auspícios da legislação desportiva internacional sobre o tema. Para ela - e muitos contrários à integração de atletas trans em meio às cisgêneros (pessoas que nascem com o sexo com que se identifica) -, as atletas trans levam uma vantagem pela exposição pretérita aos hormônios androgênicos antes dos tratamentos para a transição de gênero: inibidores hormonais que mantém os níveis de andrógenos como a testosterona muito abaixo dos níveis normalmente encontrados mesmo em mulheres cis.

A Declaração do Consenso de Estocolmo sobre a Cirurgia de Readequação de Sexo no Esporte, de 2003, estipulou parâmetros para a admissão de atletas transgêneros - particularmente de mulheres trans em competições femininas - nas Olimpiadas de Atenas em 2004. Sofrendo modificações recentes, que abordam também os casos de hiperandrogenismos (em que mulheres cisgêneros cujos corpos produzem níveis de hormônios androgênicos mais altos do que a média das mulheres). Atletas trans homens não sofrem qualquer restrição especial para participar em competições masculinas. As atletas trans mulheres devem: declarar que são mulheres (e devem manter a declaração, para fins esportivos, por pelo menos quatro anos), apresentar níveis de testosterona inferiores a 10 nmol/L por pelo menos 12 meses antes de estreia em uma competição esportiva (o tempo de moratória pode ser alongado a depender do caso) e durante toda a carreira como atleta feminina (caso não passe em algum teste, haverá suspensão por 12 meses).

Isso é o suficiente? O fato de a pessoa treinar boa parte da vida como homem, desenvolver musculatura, sistema respiratório e esquelético de um atleta homem... influencia após a transição de gênero?

A verdade é... não sabemos. Jones, B.A. e colaboradores (2017) revisaram a literatura científica a respeito da performance das atletas trans em comparação com atletas cis e concluíram:
"Results In relation to sport-related physical activity, this review found the lack of inclusive and comfortable environments to be the primary barrier to participation for transgender people. This review also found transgender people had a mostly negative experience in competitive sports because of the restrictions the sport’s policy placed on them. The majority of transgender competitive sport policies that were reviewed were not evidence based.
Conclusion Currently, there is no direct or consistent research suggesting transgender female individuals (or male individuals) have an athletic advantage at any stage of their transition (e.g. cross-sex hormones, gender-confirming surgery) and, therefore, competitive sport policies that place restrictions on transgender people need to be considered and potentially revised."
["Resultados: Em relação às atividades físicas relacionadas aos esportes, esta revisão encontrou na falta de ambientes inclusivos e confortáveis a barreira primária à participação de pessoas transgêneros. Esta revisão também encontrou que pessoas trans têm na maior parte das vezes experiências negativas em esportes competitivos por causa das restrições que a política esportiva impôs a elas. A maioria das políticas de esportes competitivos para transgêneros que revisamos não são baseadas em evidências.
Conclusão: Atualmente, não há pesquisas diretas nem consistentes sugerindo que indivíduos transgêneros femininos (ou indivíduos masculinos) tenham alguma vantagem atlética em qualquer estágio de sua transição (p.e. terapia hormonal cruzada, cirurgia de readequação de sexo) e, assim, políticas de esportes competitivos que impõem restrições às pessoas transgêneros devem ser consideradas e potencialmente revisadas."]

Até o momento, apenas um estudo publicado analisou diretamente o efeito hormonal no desempenho de atletas trans. O tamanho amostral (n = 8) é muito baixo e a metodologia deixa a desejar para uma conclusão forte, mas, comparando o desempenho na corrida de longa distância (5 a 42 km) de atletas antes de depois do tratamento de supressão da testosterona, Harper (2015) verificou que após a supressão, o tempo relatado (não foi medido objetivamente pelo pesquisador, mas as próprias atletas reportaram a alteração) aumentou significativamente (isto é, as atletas ficaram mais lentas) e passou a apresentar um desempenho similar a atletas cis mulheres.

Um outro estudo apresentado no World Congress of Performance Analysis of Sport XI 2016, Harper e cols. compararam o desempenho de 6 atletas: 1 velocista, 1 remadora, 1 ciclista e 3 fundistas. Após corrigir para a idade, todas apresentaram uma queda do desempenho após o tratamento, de 6 a 11%, que seria consistente com as diferenças entre atletas masculinos e femininos de elite.

Precisaremos de mais estudos para saber se realmente há a tal vantagem das atletas trans - as indicações disponíveis até o momento (são fracas, é preciso frisar) é que não.

Mas, mesmo que eventualmente encontre-se uma vantagem, não necessariamente a solução seria a segregação entre atletas trans e cis. Várias modalidades aplicam mecanismos de compensação para tornar a disputa mais equilibrada. O golfe, por exemplo, usa o sistema de handicap para que jogadores em níveis distintos possam competir entre si com chances mais parecidas de vitória. O próprio vôlei, no Brasil, usa sistema de classificação de atletas: os clubes têm um limite de número de atletas mais bem avaliados que podem ter em seus elencos. Associações como a NBA usam o sistema de draft, em que as equipes se alternam na escolha dos atletas estreantes. Quase todas as modalidades apresentam divisão por idade; muitas dividem por peso.

Upideite (11/fev/2018): Veja também.
Pirula (15/jan/2018): Tiffany e transexuais no esporte. (video)

Upideite(20/jun/2022): Um estudo publicado em 2021 (Roberts et al.) com um número maior de pessoas trans (46 mulheres trans) não encontrou diferenças, após 2 anos de tratamento hormonal, no desempenho atléticos entre mulheres cis e trans em exercícios de flexão de braço e abdominais, a vantagem das mulheres trans na velocidade de corrida de 1,5 milha caiu de 21% para 12%. No caso dos homens trans, após 1 ano de terapia, as diferenças para os homens cis despareceram para flexões e corrida, em abdominais a média dos homens trans foi até superior em relação aos homens cis (em contagem durante um minuto).

2 comentários:

Anônimo disse...

Talvez pelo fato da pessoa (independente de como se sente e quer ser vista, vestida ou tratada) biologicamente continua sendo do gênero que nasceu (mas um meio, imprensa, ideologias, politicamente correto, etc não permite falar sobre isso é já silenciaria ou chamaria de transfobico quem queira debater o assunto de forma imparcial). Esse próprio excesso de classificações e nomenclaturas é algo que não promove igualdade nenhuma, só deixa as pessoas mais encantadas.

none disse...

Anônimo,

Entendendo gênero como se referindo à construção social do sexo: p.e. o que indivíduos classificados como de um dado sexo pode ou não fazer, que expectativas se tem deles, que aparência deve ter, etc. - não é que uma pessoa nasça com um gênero. O indivíduo nasce de um ou outro sexo relacionado às gônadas (ou ambos, no caso do intersexo) e, a depender da sociedade em que se desenvolve, tem uma certa expectativa em torno dela.

Mas a pessoa pode perfeitamente não se identificar com essas expectativas.

Não se trata de um excesso de classificações, mas se uma tentativa de adequar a descrição à realidade, que é razoavelmente mais complexa.

Roberto Takata

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