Continuando a série sobre as PICs - práticas integrativas e complementares - no SUS, vamos analisar o que a literatura científica diz a respeito da terapia de florais.
.terapia de florais
>O que é? proposta de tratamento com base em essências de flores ultradiluídas em solução alcoólica, independente de composição química ou ação farmacológica, mas por meio, supostamente, de transferência de energia ou vibração das flores para o preparado. (Vide: Ernst 2010.)
> Status: não funciona além de nível de placebo.
É ofertado pelo SUS desde março de 2018.
Thaler et al. 2009. Revisão sistemática de 4 artigos do tipo aleatorizado com controle e 2 de observações restrospectiva.
>>sem efeito: além do placebo para: dor e problemas psicológicos; ansiedade e TDAH.
Ernst 2010. Revisão sistemática de 7 artigos do tipo aleatorizado com controle.
>>sem efeito: além de placebo para: ansiedade, desempenho escolar de crianças com TDAH (transtorno do déficit de atenção e hiperatividade), tempo de parto, uso de medicamentos durante o parto.
Nota: Ersnt 2010 amplia a revisão anterior Ernst 2002, para o qual não consegui acesso - apenas o resumo: 4 estudos foram incluídos na revisão, os dois estudos que controlam para o placebo e usa a aleatorização dos tratamentos falham em detectar efeito. A técnica é muito similar à homeopatia, na qual Edward Bach, médico britânico, baseou-se para criar sua proposta de terapia de florais; não surpreende que, como aquela, esta tampouco demonstre eficácia além do placebo. Não encontrei uma meta-análise, a quantidade de estudos incluídos nas revisões sistemáticas parecem apontar para uma falta de estudos de qualidade.
segunda-feira, 26 de março de 2018
quinta-feira, 22 de março de 2018
SUS e "Medicina Alternativa": Musicoterapia
Continuando a série sobre as PICs - práticas integrativas e complementares - no SUS, vamos analisar o que a literatura científica diz a respeito da musicoterapia.
.musicoterapia
>O que é? Uso controlado da música, seus elementos (sons, ritmos, melodias, harmobias) e suas influências no ser humano a fim de ajudar na integração fisiológica, psicológica e emocional dos indivíduos durante o tratamento de uma doença ou deficiência. Munro & Munro 1978.*
> Status: funciona para determinados grupos e condições.
É ofertado pelo SUS desde março de 2017.
>> crianças e adolescentes com psicopatologias
Whipple 2004. Meta-análise com 9 estudos (86 crianças e adolescentes com autismo): aumento dos comportamentos sociais adequados e diminuição de comportamentos inadequados, estereotípicos e autoestimulatórios; aumento da atenção às tarefas; aumento das vocalizações, verbalizações, gestos e compreensão vocabular; aumento da ecolalia (repetição de sons emitidos por outros), comunicação e diminuição do percentual de ecolalia sobre o total de sons emitidos; aumento de atos de comunicação e interação com outros; melhora da consciência corporal e coordenação; melhora de habilidade de autocuidado e brincadeiras simbólicas. redução da ansiedade.
Shi et al. 2016. Meta-análise com 6 estudos (300 crianças com autismo): melhora do humor ('mood'), habilidade com linguagem, percepção sensorial, comportamento e habilidade social.
Gold et al. 2004. Meta-análise com 11 estudos (188 crianças e adolescentes com psicopatologias): efeitos grandes sobre doenças comportamentais e de desenvolvimento, moderado para doenças emocionais; grande melhora de resultados comportamentais e de desenvolvimento, melhora média para grande da autoimagem e piora nas habilidades sociais.
>> doenças mentais graves ('serious mental disorders')
Gold et al. 2009. Meta-análise com 15 estudos (691 indivíduos): apresenta efeitos pequenos a partir de 3 a 10 sessões e grandes entre 16 e 51 sessões tanto para indivíduos com doenças mentais graves tanto psicóticas quanto não-psicóticas quando em combinação com tratamentos padrões, nos seguintes componentes: estado global, sintomas gerais, sintomas negativos, depressão, ansiedade, funcionalidade, engajamento musical.
Gold et al. 2006. Meta-análise com 4 estudos (266 indivíduos com esquizofrenia e outras psicoses): melhora dos estados mentais e da funcionalidade social a depender do número de sessões.
>> cognição de idosos
Li et al. 2015. Meta-análise com 5 estudos (234 indivíduos): sem efeito a curto prazo sobre a capacidade cognitiva de pacientes idosos.
>> demência
Ueda et al. 2013. Meta-análise com 20 estudos (651 indivíduos): efeito moderado sobre a ansiedade e pequeno sobre sintomas comportamentais.
Fusar-Poli et al. 2017. Meta-análise com 6 estudos (330 indivíduos): efeito moderado na melhora da cognição global.
Zhang et al. 2017. Meta-análise com 34 estudos (1.757 indivíduos idosos): diminuição do comportamento violento ('disruptive behavior'), depressão e ansiedade, e melhora da função cognitiva e qualidade de vida.
>> depressão em idosos
Zhao et al. 2016. Meta-análise com 19 estudos (1.494 indivíduos): redução da depressão em idosos.
>> estresse
Pelletier 2004. Meta-análise com 22 estudos (965 indivíduos): apresenta efeitos de relaxamento de pacientes com excitação por situação de estresse - medida por meio fisiológico (batimentos cardíacos), comportamentais ou auto-relato.
Rudin et al. 2007. Meta-análsise com 6 estudos (641 indivíduos): apresenta efeito de redução da ansiedade e necessidade de anestésicos para pacientes em sessão de endoscopia.
>> neonatos prematuros & pais
Standley 2002. Meta-análise com 10 estudos (290 recém-nascidos prematuros): melhora de nível de oxigenação, ganho de massa corporal, redução de tempo de internação, aumento de tolerância a estímulos, aumento do movimento de sucção, melhora da alimentação, promoção de ligação afetiva;
Standley 2012. Meta-análise com 30 estudos (1.243 recém-nascidos em unidades de terapia intensiva): frequência cardíaca, estado comportamental, frequência respiratória, saturação de oxigênio, habilidade de sugar/mamar, tempo de internação apresentaram grande melhora; peso/gasto energético em descanso, uma melhora média; e circunferência cefálica e pressão sanguínea, pequenas melhoras.
Bieleninik et al. 2016. Meta-análise com 14 estudos (964 bebês prematuros e 266 pais): melhora a taxa respiratória do bebê e a ansiedade maternal. Sem indício suficiente a respeito de outros parâmetros fisiológicos e comportamentais.
.musicoterapia
>O que é? Uso controlado da música, seus elementos (sons, ritmos, melodias, harmobias) e suas influências no ser humano a fim de ajudar na integração fisiológica, psicológica e emocional dos indivíduos durante o tratamento de uma doença ou deficiência. Munro & Munro 1978.*
> Status: funciona para determinados grupos e condições.
É ofertado pelo SUS desde março de 2017.
>> crianças e adolescentes com psicopatologias
Whipple 2004. Meta-análise com 9 estudos (86 crianças e adolescentes com autismo): aumento dos comportamentos sociais adequados e diminuição de comportamentos inadequados, estereotípicos e autoestimulatórios; aumento da atenção às tarefas; aumento das vocalizações, verbalizações, gestos e compreensão vocabular; aumento da ecolalia (repetição de sons emitidos por outros), comunicação e diminuição do percentual de ecolalia sobre o total de sons emitidos; aumento de atos de comunicação e interação com outros; melhora da consciência corporal e coordenação; melhora de habilidade de autocuidado e brincadeiras simbólicas. redução da ansiedade.
Shi et al. 2016. Meta-análise com 6 estudos (300 crianças com autismo): melhora do humor ('mood'), habilidade com linguagem, percepção sensorial, comportamento e habilidade social.
Gold et al. 2004. Meta-análise com 11 estudos (188 crianças e adolescentes com psicopatologias): efeitos grandes sobre doenças comportamentais e de desenvolvimento, moderado para doenças emocionais; grande melhora de resultados comportamentais e de desenvolvimento, melhora média para grande da autoimagem e piora nas habilidades sociais.
>> doenças mentais graves ('serious mental disorders')
Gold et al. 2009. Meta-análise com 15 estudos (691 indivíduos): apresenta efeitos pequenos a partir de 3 a 10 sessões e grandes entre 16 e 51 sessões tanto para indivíduos com doenças mentais graves tanto psicóticas quanto não-psicóticas quando em combinação com tratamentos padrões, nos seguintes componentes: estado global, sintomas gerais, sintomas negativos, depressão, ansiedade, funcionalidade, engajamento musical.
Gold et al. 2006. Meta-análise com 4 estudos (266 indivíduos com esquizofrenia e outras psicoses): melhora dos estados mentais e da funcionalidade social a depender do número de sessões.
>> cognição de idosos
Li et al. 2015. Meta-análise com 5 estudos (234 indivíduos): sem efeito a curto prazo sobre a capacidade cognitiva de pacientes idosos.
>> demência
Ueda et al. 2013. Meta-análise com 20 estudos (651 indivíduos): efeito moderado sobre a ansiedade e pequeno sobre sintomas comportamentais.
Fusar-Poli et al. 2017. Meta-análise com 6 estudos (330 indivíduos): efeito moderado na melhora da cognição global.
Zhang et al. 2017. Meta-análise com 34 estudos (1.757 indivíduos idosos): diminuição do comportamento violento ('disruptive behavior'), depressão e ansiedade, e melhora da função cognitiva e qualidade de vida.
>> depressão em idosos
Zhao et al. 2016. Meta-análise com 19 estudos (1.494 indivíduos): redução da depressão em idosos.
>> estresse
Pelletier 2004. Meta-análise com 22 estudos (965 indivíduos): apresenta efeitos de relaxamento de pacientes com excitação por situação de estresse - medida por meio fisiológico (batimentos cardíacos), comportamentais ou auto-relato.
Rudin et al. 2007. Meta-análsise com 6 estudos (641 indivíduos): apresenta efeito de redução da ansiedade e necessidade de anestésicos para pacientes em sessão de endoscopia.
>> neonatos prematuros & pais
Standley 2002. Meta-análise com 10 estudos (290 recém-nascidos prematuros): melhora de nível de oxigenação, ganho de massa corporal, redução de tempo de internação, aumento de tolerância a estímulos, aumento do movimento de sucção, melhora da alimentação, promoção de ligação afetiva;
Standley 2012. Meta-análise com 30 estudos (1.243 recém-nascidos em unidades de terapia intensiva): frequência cardíaca, estado comportamental, frequência respiratória, saturação de oxigênio, habilidade de sugar/mamar, tempo de internação apresentaram grande melhora; peso/gasto energético em descanso, uma melhora média; e circunferência cefálica e pressão sanguínea, pequenas melhoras.
Bieleninik et al. 2016. Meta-análise com 14 estudos (964 bebês prematuros e 266 pais): melhora a taxa respiratória do bebê e a ansiedade maternal. Sem indício suficiente a respeito de outros parâmetros fisiológicos e comportamentais.
>> hipertensão
Amaral et al. 2016: Meta-análise com 2 estudos (90 indivíduos): melhora da pressão sanguínea sistólica. Sem efeito significativo sobre a pressão sanguínea diastólica.
>> criminosos
Chen et al. 2016: Meta-análise com 5 estudos (409 indivíduos, predominantemente homens): melhora a auto-estima e a funcionalidade social.
>> transtornos associados ao uso de drogas ('substance use disorders')
Hohmann et al. 2017. Meta-análise com 40 estudos (cerca de 1.900 indivíduos): inconclusivo pela variabilidade dos resultados sobre expressão das emoções, interações em grupo, desenvolvimento de habilidades e melhoria da qualidade de vida.
Nota: Várias meta-análises acabam incluindo relativamente poucos estudos, mas, no geral, parece haver um efeito primário da musicoterapia em acalmar os indivíduos (certamente pelas características das músicas escolhidas). É uma área que parece bem ativa em pesquisa - mas com grande parte dos estudos (a julgar pela redução que há durante a filtragem das meta-análises) com qualidade que ainda deixa a desejar. Queria incluir a meta-análise de Dileo 2006, que parece ser a mais abrangente, com 183 estudos em várias áreas médicas, infelizmente não encontrei uma cópia disponível - caso futuramente consiga uma, incluo nesta análise.
Parte 4: Terapia de florais.
*Upideite(22/mar/2018): modifique a definição - originalmente utilizei a que constava no site do MS sobre as PICs, mas substituí por uma mais objetiva.
Parte 4: Terapia de florais.
*Upideite(22/mar/2018): modifique a definição - originalmente utilizei a que constava no site do MS sobre as PICs, mas substituí por uma mais objetiva.
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segunda-feira, 12 de março de 2018
Epigenética. "Cesse tudo o que a musa antiga canta"?
Com um certo grau de exagero é possível que a epigenética esteja para a genética como a mecânica quântica está para a física clássica. Nem tanto pela alteração da compreensão de aspectos fundamentais do funcionamento do Universo (ou de parte dele) - que, sim, é necessária -, quanto pelos abusos perpretados atribuindo-se uma série de fenômenos não bem estabelecidos (ou bem estabelecidos como ausentes) por conta de um mecanismos relativamente mal compreendido - no limite, nas explorações misticóides pseudocientíficas.
Mesmo especialistas podem ser tentados a cair em exageros a respeito do quão revolucionária à compreensão da evoluçãoda a epigenética seria.
Um artigo de divulgação do Prof. Kevin Laland, originalmente publicado no site Aeon, foi recentemente traduzido para a Folha de S. Paulo. A versão brazuca dá um título diferente e amplamente enganador. O título original: "Science in flux: is a revolution brewing in evolutionary theory?" ["Ciência em transformação: estaria uma revolução sendo gestada na teoria da evolução?"] é mais comedido (a começar pela interrogação - ainda que, no texto, o autor procure responder positivamente) do que a afirmação do título da tradução: "Descobertas contestam hegemonia de Darwin e recuperam Lamarck".
O próprio autor, embora faça menção a Lamarck, reconhece que não dá pra cravar que a herança epigenética seja uma herança de caracteres adquiridos como teria sido proposta pelo naturalista francês: "Biologists dispute whether epigenetic inheritance is truly Lamarckian or only superficially resembles it [...]" ["Biólogosargumentam discutem se a herança genética é verdadeiramente lamarquiana ou apenas superficialmente se parece com ela [...]", o que é longe de "recuperar Lamarck" como o título brazuca diz. Cabe salientar que o mecanismos de herança é totalmente secundário tanto na teoria evolutiva de Lamarck quanto na de Darwin - que aceitava a possibilidade da ocorrência de herança de características adquiridas - de modo que é muita forçação de barra contrapor os dois gigantes com base nos achados sobre a epigenética.
Mas, afinal, o que é a epigenética?
O termo é ambíguo e com várias definições, de modo que o potencial de confusão é ainda maior, mas, grosso modo, pode-se referir a uma camada de informação além da codificada no ADN que permite que células e organismos com o mesmo conteúdo genético exibam características diferentes.
Na origem, o biólogo britânico Conrad H. Waddington, estudando a diferenciação celular (epigênese), definiu a epigenética, na década de 1940, como "estudo dos mecanismos causais pelos quais os genes de um genótipo levam a seus efeitos fenotípicos" (Haig 2004). Na década seguinte, o geneticista americano David L. Nanney redifiniu mecanismos epigenéticos como aqueles que permitem a perpetuação de diferença fenotípicas na ausência de diferenças na sequência de ADN, uma "persistência homeostática" não-genética (Greally 2018).
No uso mais recente - que emergiu nos últimos 30 a 40 anos -, a epigenética pode ser definida como o ramo da biologia que estuda fenômenos de alterações estruturais em partes dos cromossomos em resposta a fatores ambientais que registra, sinaliza ou perpetua alterações no estado de atividade de um ou mais genes [Bird 2007] - tais alterações podem ser transmitidas ao longo de várias gerações.
O geneticista médico americano John M. Greally (2018) propôs a seguinte lista de conferência para se decidir pelo uso do termo "epigenética" e correlatos:
"1) Você quer usar o termo 'epigenética' para descrever a memória celular, homeostase persistente na ausência da perturbação original ou o efeito sobre o destino celular que não é atribuível a mudanças na sequência de ADN?
Vá em frente. Waddington e Nanney ficariam orgulhosos de você.
2) Você quer descrever um nível mais elevado de informação que existe além do genoma e instrui aos genes como e quando se ativarem ou desativarem?
Você está descrevendo a regulação de transcrição. A menos que você esteja também descrevendo a situação do primeiro ponto, você não deve chamar isso de epigenética, ainda que você ache que isso faça sua pesquisa soar mais sexy. Aplique a precisão científica e use termos como 'regulação da transcrição'.
3) Você encontrou diferenças na metilação do ADN ao comparar dois conjuntos de amostras, mas não controlou influências que podem confundir como a proporção de subtipos celulares, polimorfismo da sequência de ADN ou causação reversa. Você quer chamar isso de 'epigenético'?
Não. Você não pode.
4) Se você quer saber se é OK acrescentar geleia real a geleia de petróleo e comercializar isso como 'creme facial epigenético'?
Se você puder vender isso para os otários, vá em frente. Mas não poderemos mais ser amigos."
Qual é a da epigenética?
Os fenômenos a que Laland se refere em seu texto são todos epigenéticos do tipo 1 de Greally? Nem todos foram estudados a ponto de isolar adequadamente os fatores de confusão.
A frase do autor em que reconhece a disputa que há entre biólogos para classificar os fenômenos como lamarckianos termina com: "[...] but there is no getting away from the fact that the inheritance of acquired characteristics really does happen" ("[...] mas não há como negar o fato de que a herança de características adquiridas realmente ocorrem"). Que pode ocorrer - como herança cultural e mesmo por marcações epigenéticas - é razoavelmente bem estabelecido. Porém, o quão frequente e distribuído é esse tipo de herança entre os organismos, isto é, o quão significativo é para se clamar por revolução ou contestação de hegemonia é algo por ser estabelecido.
Um dos estudos citados por Laland, de aparente transmissão de comportamento diante de um cheiro a que os ancestrais foram expostos (Dias & Ressler 2014), sofre do problema de ausência de mecanismos conhecidos em que a exposição a um cheiro e associação a uma situação traumática possa influenciar a gametogênese - especialmente resultando em uma marcação específica (os descendentes não parecem responder do mesmo modo a estímulos diversos dos apresentados à geração original). De modo geral, vários casos propostos de herança epigenética padecem do mesmo problema (Isbel & Whitelaw 2015).
De todo modo, as enzimas que controlam as modificações estruturais nos cromossomos - isto é, as marcações epigenéticas - são codificadas por genes e estão sob controle da expressão de outros genes. O processo de transdução do sinal também envolve a ação de produtos de outros genes. (Uma pena que a expressão 'hipogenética' já seja empregada como 'desenvolvimento abaixo do normal', daria um bom trocadilho para enfatizar que as alterações epigenéticas estão em grande parte sob controle genético.)
E, independentemente disso, os fenótipos resultantes das marcações epigenéticas estarão sujeitos aos mesmos processos evolutivos dos resultantes das mutações genéticas: seleção natural, deriva, migração, seleção sexual...
Nos animais, em que as células que darão origem aos gametas são segregadas muito cedo durante o desenvolvimento (ao contrário das plantas em que virtualmente qualquer célula pode acabar dando origem a um novo indivíduo), há mais fatores complicadores para estabelecer a marcação epigenética como um fator de alto potencial evolutivo. Durante a gametogênese e nos estágios iniciais do desenvolvimento embrionário, costuma ocorrer um amplo "apagamento" das marcações, restabelecendo um estado padrão de metilação do ADN; algumas regiões, como áreas de ADN repetitivo, resistem ao apagamento, mas não está bem estabelecido que a metilação dessas áreas seja responsiva a sinais ambientais (Isbel & Whitelaw 2015).
Porém, mais do que tudo, ainda faltam exemplos de efeitos evolutivos de longo prazo.
A herança epigenética pode eventualmente se mostrar relevante e realmente provocar uma significativa modificação na compreensão da evolução biológica. Mas clamar vitória, pelo menos até o momento, parece-me ainda altamente precipitado.
Mesmo especialistas podem ser tentados a cair em exageros a respeito do quão revolucionária à compreensão da evolução
Um artigo de divulgação do Prof. Kevin Laland, originalmente publicado no site Aeon, foi recentemente traduzido para a Folha de S. Paulo. A versão brazuca dá um título diferente e amplamente enganador. O título original: "Science in flux: is a revolution brewing in evolutionary theory?" ["Ciência em transformação: estaria uma revolução sendo gestada na teoria da evolução?"] é mais comedido (a começar pela interrogação - ainda que, no texto, o autor procure responder positivamente) do que a afirmação do título da tradução: "Descobertas contestam hegemonia de Darwin e recuperam Lamarck".
O próprio autor, embora faça menção a Lamarck, reconhece que não dá pra cravar que a herança epigenética seja uma herança de caracteres adquiridos como teria sido proposta pelo naturalista francês: "Biologists dispute whether epigenetic inheritance is truly Lamarckian or only superficially resembles it [...]" ["Biólogos
Mas, afinal, o que é a epigenética?
O termo é ambíguo e com várias definições, de modo que o potencial de confusão é ainda maior, mas, grosso modo, pode-se referir a uma camada de informação além da codificada no ADN que permite que células e organismos com o mesmo conteúdo genético exibam características diferentes.
Na origem, o biólogo britânico Conrad H. Waddington, estudando a diferenciação celular (epigênese), definiu a epigenética, na década de 1940, como "estudo dos mecanismos causais pelos quais os genes de um genótipo levam a seus efeitos fenotípicos" (Haig 2004). Na década seguinte, o geneticista americano David L. Nanney redifiniu mecanismos epigenéticos como aqueles que permitem a perpetuação de diferença fenotípicas na ausência de diferenças na sequência de ADN, uma "persistência homeostática" não-genética (Greally 2018).
No uso mais recente - que emergiu nos últimos 30 a 40 anos -, a epigenética pode ser definida como o ramo da biologia que estuda fenômenos de alterações estruturais em partes dos cromossomos em resposta a fatores ambientais que registra, sinaliza ou perpetua alterações no estado de atividade de um ou mais genes [Bird 2007] - tais alterações podem ser transmitidas ao longo de várias gerações.
O geneticista médico americano John M. Greally (2018) propôs a seguinte lista de conferência para se decidir pelo uso do termo "epigenética" e correlatos:
"1) Você quer usar o termo 'epigenética' para descrever a memória celular, homeostase persistente na ausência da perturbação original ou o efeito sobre o destino celular que não é atribuível a mudanças na sequência de ADN?
Vá em frente. Waddington e Nanney ficariam orgulhosos de você.
2) Você quer descrever um nível mais elevado de informação que existe além do genoma e instrui aos genes como e quando se ativarem ou desativarem?
Você está descrevendo a regulação de transcrição. A menos que você esteja também descrevendo a situação do primeiro ponto, você não deve chamar isso de epigenética, ainda que você ache que isso faça sua pesquisa soar mais sexy. Aplique a precisão científica e use termos como 'regulação da transcrição'.
3) Você encontrou diferenças na metilação do ADN ao comparar dois conjuntos de amostras, mas não controlou influências que podem confundir como a proporção de subtipos celulares, polimorfismo da sequência de ADN ou causação reversa. Você quer chamar isso de 'epigenético'?
Não. Você não pode.
4) Se você quer saber se é OK acrescentar geleia real a geleia de petróleo e comercializar isso como 'creme facial epigenético'?
Se você puder vender isso para os otários, vá em frente. Mas não poderemos mais ser amigos."
Qual é a da epigenética?
Os fenômenos a que Laland se refere em seu texto são todos epigenéticos do tipo 1 de Greally? Nem todos foram estudados a ponto de isolar adequadamente os fatores de confusão.
A frase do autor em que reconhece a disputa que há entre biólogos para classificar os fenômenos como lamarckianos termina com: "[...] but there is no getting away from the fact that the inheritance of acquired characteristics really does happen" ("[...] mas não há como negar o fato de que a herança de características adquiridas realmente ocorrem"). Que pode ocorrer - como herança cultural e mesmo por marcações epigenéticas - é razoavelmente bem estabelecido. Porém, o quão frequente e distribuído é esse tipo de herança entre os organismos, isto é, o quão significativo é para se clamar por revolução ou contestação de hegemonia é algo por ser estabelecido.
Um dos estudos citados por Laland, de aparente transmissão de comportamento diante de um cheiro a que os ancestrais foram expostos (Dias & Ressler 2014), sofre do problema de ausência de mecanismos conhecidos em que a exposição a um cheiro e associação a uma situação traumática possa influenciar a gametogênese - especialmente resultando em uma marcação específica (os descendentes não parecem responder do mesmo modo a estímulos diversos dos apresentados à geração original). De modo geral, vários casos propostos de herança epigenética padecem do mesmo problema (Isbel & Whitelaw 2015).
De todo modo, as enzimas que controlam as modificações estruturais nos cromossomos - isto é, as marcações epigenéticas - são codificadas por genes e estão sob controle da expressão de outros genes. O processo de transdução do sinal também envolve a ação de produtos de outros genes. (Uma pena que a expressão 'hipogenética' já seja empregada como 'desenvolvimento abaixo do normal', daria um bom trocadilho para enfatizar que as alterações epigenéticas estão em grande parte sob controle genético.)
E, independentemente disso, os fenótipos resultantes das marcações epigenéticas estarão sujeitos aos mesmos processos evolutivos dos resultantes das mutações genéticas: seleção natural, deriva, migração, seleção sexual...
Nos animais, em que as células que darão origem aos gametas são segregadas muito cedo durante o desenvolvimento (ao contrário das plantas em que virtualmente qualquer célula pode acabar dando origem a um novo indivíduo), há mais fatores complicadores para estabelecer a marcação epigenética como um fator de alto potencial evolutivo. Durante a gametogênese e nos estágios iniciais do desenvolvimento embrionário, costuma ocorrer um amplo "apagamento" das marcações, restabelecendo um estado padrão de metilação do ADN; algumas regiões, como áreas de ADN repetitivo, resistem ao apagamento, mas não está bem estabelecido que a metilação dessas áreas seja responsiva a sinais ambientais (Isbel & Whitelaw 2015).
Porém, mais do que tudo, ainda faltam exemplos de efeitos evolutivos de longo prazo.
A herança epigenética pode eventualmente se mostrar relevante e realmente provocar uma significativa modificação na compreensão da evolução biológica. Mas clamar vitória, pelo menos até o momento, parece-me ainda altamente precipitado.
quarta-feira, 7 de março de 2018
Mulheres nas Ciências: Por que tão poucas?*
Em um artigo publicado na revista Science, a socióloga Alice S. Rossi, da University of Chicago, pergunta já no título de seu artigo: "Women in Science: Why So Few?" ["Mulheres nas Ciências: Por que tão poucas?"].
A cientista recapitula o contexto americano em que, entre os anos 1940 e 1950, houve um rápido crescimento da população com deslocamento das famílias para os subúrbios, com saudação do papel das mulheres nas casas. Tal cenário começava a se modificar mais acentuadamente na década de 1960, com as autoridades procurando incentivar a maior participação das mulheres no mercado de trabalho. Se a sociedade americana deseja mais mulheres nas ciências, conclui Rossi, será preciso:
1) "Educar meninos e meninas para todos os principais papéis adultos (como pais, cônjuges, trabalhadores, e mesmo como seres que se divertem)." Para a autora, "as mulheres não deixarão de ver o trabalho como algo temporário até encontrar um marido se não se garantirem ocupações significativas em suas vidas, como é para os homens".
2) "Parar de restringir e diminuir os objetivos ocupacionais das meninas com a desculpa de aconselhá-las a serem 'realistas'." Rossi assinala o papel triplo das mulheres: "profissional, esposa e mãe; e que as dificuldades por elas enfrentadas devem ser encaradas como um problema *social* e não algo individual - será preciso realizar uma engenharia social (não exatamente no sentido usual da cultura hacker) e não relegar para que as mulheres se virem sozinhas". "Os conflitos", diz a autora, "não são necessariamente um mal a ser evitado, podem ser usados para estimular mudanças sociais".
3) "Aplicar a tecnologia para racionalizar a manutenção do lar. As responsabilidades das mulheres e maridos empregados podem ser diminuídas por empresas de limpeza e cuidados domésticos."
4) "Encorajar os homens a serem mais articulados a respeito de si mesmos como homens e sobre as mulheres. A visão de jovens e capacitadas mulheres a respeito do casamento e carreira pode ser mudada mais eficientemente se os homens acharem o casamento com mulheres que trabalham uma experiência satisfatória do que por exortação de mulheres profissionais ou por especialistas em mercado de trabalho e instrutores familiares cujas esposas são do lar."
A cientista ainda enfatiza que as diferenças fisiológicas entre homens e mulheres são suficientemente claras e tão fundamentais na autodefinição que nenhuma alteração no sentido de uma maior similaridade nos papéis sociais de homens e mulheres irá afetar a identidade sexual de crianças ou adultos. Ninguém ficará confuso se os homens forem mais gentis e expressivos e as mulheres mais agressivas e intelectuais. Se alguma mudança será causada pela maior similaridade nos papéis de homens e mulheres na família e na profissão, será um maior entusiasmo e vitalidade nas relações entre homens e mulheres, minimizando a segregação social entre os sexos. E um aumento no número de mulheres cientistas é apenas um dos efeitos desejáveis que seriam resultantes de tal mudança social, finaliza a pesquisadora.
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Ah, pequeno detalhe. O artigo foi escrito em 1965. Há mais de cinquenta anos. Talvez seja exagero dizer que não avançamos nada. Mas nem tanto dizer que o texto e as observações da socióloga, morta em 2009, permanecem atualíssimos (infelizmente).
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A cientista recapitula o contexto americano em que, entre os anos 1940 e 1950, houve um rápido crescimento da população com deslocamento das famílias para os subúrbios, com saudação do papel das mulheres nas casas. Tal cenário começava a se modificar mais acentuadamente na década de 1960, com as autoridades procurando incentivar a maior participação das mulheres no mercado de trabalho. Se a sociedade americana deseja mais mulheres nas ciências, conclui Rossi, será preciso:
1) "Educar meninos e meninas para todos os principais papéis adultos (como pais, cônjuges, trabalhadores, e mesmo como seres que se divertem)." Para a autora, "as mulheres não deixarão de ver o trabalho como algo temporário até encontrar um marido se não se garantirem ocupações significativas em suas vidas, como é para os homens".
2) "Parar de restringir e diminuir os objetivos ocupacionais das meninas com a desculpa de aconselhá-las a serem 'realistas'." Rossi assinala o papel triplo das mulheres: "profissional, esposa e mãe; e que as dificuldades por elas enfrentadas devem ser encaradas como um problema *social* e não algo individual - será preciso realizar uma engenharia social (não exatamente no sentido usual da cultura hacker) e não relegar para que as mulheres se virem sozinhas". "Os conflitos", diz a autora, "não são necessariamente um mal a ser evitado, podem ser usados para estimular mudanças sociais".
3) "Aplicar a tecnologia para racionalizar a manutenção do lar. As responsabilidades das mulheres e maridos empregados podem ser diminuídas por empresas de limpeza e cuidados domésticos."
4) "Encorajar os homens a serem mais articulados a respeito de si mesmos como homens e sobre as mulheres. A visão de jovens e capacitadas mulheres a respeito do casamento e carreira pode ser mudada mais eficientemente se os homens acharem o casamento com mulheres que trabalham uma experiência satisfatória do que por exortação de mulheres profissionais ou por especialistas em mercado de trabalho e instrutores familiares cujas esposas são do lar."
A cientista ainda enfatiza que as diferenças fisiológicas entre homens e mulheres são suficientemente claras e tão fundamentais na autodefinição que nenhuma alteração no sentido de uma maior similaridade nos papéis sociais de homens e mulheres irá afetar a identidade sexual de crianças ou adultos. Ninguém ficará confuso se os homens forem mais gentis e expressivos e as mulheres mais agressivas e intelectuais. Se alguma mudança será causada pela maior similaridade nos papéis de homens e mulheres na família e na profissão, será um maior entusiasmo e vitalidade nas relações entre homens e mulheres, minimizando a segregação social entre os sexos. E um aumento no número de mulheres cientistas é apenas um dos efeitos desejáveis que seriam resultantes de tal mudança social, finaliza a pesquisadora.
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Ah, pequeno detalhe. O artigo foi escrito em 1965. Há mais de cinquenta anos. Talvez seja exagero dizer que não avançamos nada. Mas nem tanto dizer que o texto e as observações da socióloga, morta em 2009, permanecem atualíssimos (infelizmente).
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*Em outra feita, usei da frase da divulgadora científica Sharon Berstch McGrayne - relembrada pela psicóloga Nadia Regina Loureiro de Barros Lima, em uma entrevista para um texto sobre a participação das mulheres nas ciências - que é a pergunta oposta: "mas como tantas?", tais as quantidades e os tamanhos das barreiras que as mulheres enfrentam nas profissões de prestígio social do ingresso à progressão na carreira.
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