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segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Minha cordial (e natural) mas marcada e severa divergência do Dr. Max Langer

Na edição de 28 de julho do caderno Ilustríssima, o Prof. Dr. Max Langer, eminente paleontólogo brasileiro, publicou sua visão (cuidado! contém paywall poroso!) a respeito da ação humana no ambiente, particularmente no efeito sobre outras espécies, levadas a ou em vias de desaparecer por culpa direta e indireta de nossa atuação: poluição, desmatamento, caça, pesca, introdução de doenças, predadores e competidores... Fiquei um tempo pensando se respondia ou não - alguns amigos meus ficaram de responder também, achei que seria redundante - e, como se percebe, acabei optando por fazê-lo.

A divergência começa logo na primeira frase. "Vivemos um momento na história da humanidade em que as atitudes ditas ambientalmente corretas são aceitas de forma quase unânime e sem maiores questionamentos, seja na esfera científica, seja na política, na educacional ou na social."

Fiquei pelo menos uns 5 minutos pensando e não consegui encontrar muita coisa de que eu pudesse factualmente discordar mais - sei lá, talvez se ele tivesse dito que a evolução não ocorre. A situação atual de mudanças climáticas e acelerada taxa de extinção (muito mais alta do que a taxa normal - de fundo) de espécies só ocorre exatamente porque somos ambientalmente *IN*corretos. Cada mudança na legislação para diminuir nosso impacto deletério sobre o ambiente é uma batalha e muitas são perdidas (retrocesso do código florestal alguém?). A despeito das inúmeras cúpulas, tratados e relatórios do IPCC, as emissões dos gases de efeito estufa só aumentam ano a ano (Fig. 1).

Figura 1. Emissões globais anuais de equivalentes de carbono. Fonte: CDIAC.

Conhecedor da história geológica da Terra que é, Langer desfila a relação de algumas mudanças dramáticas nas condições de clima e composição atmosférica pela qual o planeta passou conforme podemos ler nos registros geológicos e fossilíferos. Tais mudanças deixam marcas na composição química dos minerais - como ferro oxidado indicando uma maior quantidade de oxigênio na atmosfera -, e nas características dos fósseis - por exemplo, espécies tropicais em latitudes mais altas nos fazem suspeitar que a temperatura global era maior (e isso pode ser verificado independentemente com a composição de isótopos de oxigênio, por exemplo, em calcário: temperaturas mais altas diminuem a solubilidade mais de um isótopo do que de outro). Estão também registrados intensos episódios de extinção, quando fósseis de grupos abundantes em camadas mais profundas de rochas deixam de ser encontrados em camadas logo acima.

Aqui um ponto de concordância com o professor. Sim, isso mostra que episódios de alterações ambientais são recorrentes e que, sim, extinções são naturais. Concordo até com o elemento-chave de sua argumentação: "A resposta é simples: as extinções em curso não diferem dessas outras, a não ser pelo agente causador."

Mas, então, qual o babado? O babado é o truque semântico ao se usar a palavra "natural". Sim, nossas ações são naturais no sentido de que ocorrem na natureza, de que estão de acordo com as leis físicas, químicas e biológicas conhecidas. Porém, do mesmo modo, a violência é natural. Animais praticam violência: primatas cometem infanticídio, guerras, roubos, estupros. E os humanos, uma espécie de primata, também. E isso não viola nenhuma lei física ou química. E segue até uma explicação de natureza biológica - um certo nível de violência, do ponto de vista evolutivo, é até adaptativo: ajuda a deixar mais descendentes na próxima geração.

Agora, isso significa que, como a violência é natural, devemos aceitá-la? Oras, a história da civilização - entre indas e vindas - é exatamente a de se conter tal violência. Em alguns casos ritualizá-la como em demonstrações esportivas. Mas no geral contê-la por meio de punições convencionadas: prisões e, em alguns lugares, inclusive a pena capital. Até mesmo quando o agente violento, ao contrário de nós, é incapaz de refletir a respeito de suas próprias ações, nós atuamos para conter tal violência: capturamos animais perigosos que apareçam nas imediações de povoados (não raro os sacrificamos), marcamos culturalmente certas plantas como inadequadas ao consumo, criamos serviços de alertas de tsunamis, tempestades e deslizamentos e investimos milhões em pesquisas para previsão de terremotos.

A palavra "natural" tem uma pluralidade de sentidos e validá-la em um não implica na validação automática em outros. Há até um termo lógico-filosófico para isso: a falácia naturalista ou apelo à natureza. O "a não ser pelo agente causador" é fundamental aqui em um ponto: o tal agente somos nós e nós somos dotados de uma capacidade intelectiva que permite prever e avaliar as consequências dos atos. Nós, ao contrário de uma tempestade que destrói casas e ceifa vidas, podemos ser responsabilizados.

Isto é, independentemente da natureza da causa isso não é um impeditivo para que atuemos para evitar as consequências e, se possível, debelar a causa. E, ligado à natureza da causa, podemos - e devemos - responsabilizar o agente quando este é consciente.

Langer pontua a respeito das incertezas existentes em relação ao nível da taxa de extinção atual. Mas, embora, sim, mais estudos devam continuar a serem feitos para refinar as estimativas, isso não deve ser um convite à inação. Há dados suficientes para um cálculo, ainda que os números comportem uma faixa de incógnita - sim, pode ser sensivelmente mais baixo; e, sim, pode ser sensivelmente mais alto. Há um risco e tal risco deve ser abordado. Especialmente porque as consequências são bem danosas (a extinção de anfíbios pode levar a um grande aumento de vetores de doenças, p.e.). Além disso, há casos bem documentados de animais que foram extintos mais diretamente por ação humana: como o dodô, a vaca-marina-de-steller, o pombo passageiro, a alca-gigante... Sem falar em populações locais. Temos responsabilidade direta sobre isso. Por mais natural que seja a caça, por mais natural que seja derrubar florestas para construir casas.

Assim, em resposta à conclusão de Langer: "Se, nesse processo, levarmos algumas à extinção, certamente não seremos os primeiros" - devo dizer que, tanto quanto os registros geológicos e paleontológicos nos permitem saber, somos os primeiros seres conscientes a fazê-lo (e serão bem mais do que "algumas"). E grande é a nossa responsabilidade, como diria um certo amigo da vizinhança.

Veja também:
24.ago Darwin & Deus/Alex Hubbe & Olívia Mendonça-Furtado: "Não fazer nada é o melhor que podemos fazer sobre o nosso futuro?" (cuidado! contém paywall poroso)
26.ago Folha/Reinaldo José Lopes: "Homem não pode ignorar efeitos das transformações que causa no planeta" (cuidado! contém paywall poroso)

5 comentários:

Fernando Ariel Genta disse...

Infecções, doenças e a morte são super naturais também. Por que tomar antibióticos então?

none disse...

Salve, Genta,

Valeu pela visita e comentário.

Pois é, exemplos de falácia naturalista que não sei como abordariam nessa de "extinção não tem problema porque é natural".

[]s,

Roberto Takata

Ricardo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Ricardo disse...

Em relação às incertezas e à sua utilização como justificativa para a inação, gosto muito de uma analogia originalmente (salvo engano) proposta pelo astrônomo Phil Plait: se o mesmo nível de incerteza que temos hoje em relação aos modelos climáticos existisse em um modelo que previsse um grande impacto de asteróide na Terra, muito provavelmente os Governos já estariam há muito tempo despejando dinheiro na mitigação do risco.

Isso pode ser explicado em parte pelo viés cognitivo da heurística de disponibilidade e pela nossa "predileção" por eventos raros e dramáticos, embora o resultado final das duas catástrofes na biosfera não seja muito diferente.

none disse...

Salve, Ricardo,

Enquanto isso, nossos bravos legisladores conseguem banir o perigosíssimo canudo plástico. (Ok, é melhor do que nada, mas longe de resolver o maior problema.)

Valeu pela visita e comentários.

[]s,

Roberto Takata

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