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segunda-feira, 30 de abril de 2012

Jogos dos erros 2

O Estadão reproduz reportagem da AFP: "Cientistas identificam microrganismo que pode esclarecer vida primitiva"

Sobre o uso do termo primitivo já comentei aqui no GR.

Aspas para o responsável do grupo de pesquisadores: "Descobrimos no lago um ramo desconhecido na árvore da vida. É única". O que essa frase quer dizer exatamente? Tecnicamente, uma espécie ou subespécie nova também é um novo ramo da árvore da vida - e, por definição, único. É um domínio novo ao lado de arqueas, eubactérias e eucariotos? Não há nenhuma informação a respeito na reportagem.

Mais aspas: "Para nós, nenhum outro grupo de microrganismos é descendente de tão perto das raízes da árvore da vida". Isso não faz o menor sentido. *Todos* os organismos atuais são descendentes exatamente da mesma raiz e estão à mesma distância temporal dela: cerca de 4 bilhões de anos.

Continua a reportagem: "O microrganismo 'se desenvolveu há cerca de um bilhão de anos, com uma margem de erro de cem milhões de anos', acrescentou." 1 bilhão de anos... Vejamos, o tempo de divergência entre os domínios atuais é estimado em algo como 3,5 bilhões de anos - 1 bilhão está bem distante desse ponto de separação das linhagens. E mais, cianobactérias devem existir há pelo menos 2,6 bilhões de anos (e talvez 3,5 bilhões de anos se a interpretação Schopf dos Sílex de Apex se mostrar correta).

Celenterados e demais eumetazoários têm um tempo de divergência estimado em alguns estudos em cerca de 1,2 a 1,5 bilhão de anos. Nemátodos e bilatérios em cerca de 1,2 bilhão de anos. Porém, outros estudos indicam um tempo de divergência bem mais recente para os eucariotos: o LECA (o último ancestral em comum dos eucariotos) teria vivido entre 1 e 1,4 bilhão de anos atrás.

E mais: "Para o cientista, o organismo microscópico 'pode servir de telescópio para observar o microcosmo original' e assim conseguir 'entender melhor como foi a vida primitiva na Terra'." Até pode, mas não mais do que muitos outros organismos.

A reportagem não dá nenhuma contextualização mais aprofundada - só que a descoberta foi feita originalmente há 20 anos e aparentemente foi feita uma nova análise. Mas não nos informa se é um estudo publicado, submetido, se foi anunciado em um congresso científico ou se é apenas um press release. Não nos informa que tipo de micro-organismo é: uma bactéria, uma arquea, uma alga, um fungo, um protozoário...

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Só alhures encontramos a menção de que é um eucarioto. E acrescentam uma afirmação sensacionalista do tipo "mankind's furthest relative". Só será se arbitrariamente se definir o limite do parentesco com a linhagem que deu origem aos humanos no nó em que se encontra o ancestral em comum mais recente desse micro-organismo e os humanos. De todo modo, o organismo teria uma divergência mais próxima da base dos *eucariotos* e não da árvore da *vida* - se considerarmos um LECA mais recente (outras estimativas ficam na ordem de 2 bilhões de anos).

O estudo foi publicado na Molecular Biology Evolution, ainda em versão eletrônica: Zhao et al. 2012. Collodictyon – an ancient lineage in the tree of eukaryotes. Mol. Biol. Evol.

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