O blogue
Discutindo Ecologia, do Scienceblogs, mantido por dois (bidu!) ecólogos: Breno Alves e Luiz Bento (por que estou explicando isso se é muito mais provável que o improvável leitor desta postagem conheça o blogue deles e, até hoje, não conhecesse este?) publicou uma
postagem sobre
James Lovelock.
Ali
eles cometem é cometido (
Upideite 13/ago/2009: o blogue é dos dois, mas o texto é de Luiz Bento) algo que considero uma tremenda injustiça para com este cientista inglês (por que estou explicando que Lovelock é cientista e é inglês? talvez menos conhecida seja a faceta dele como inventor - ele é cientista independente, não está vinculado a nenhuma universidade ou instituto de pesquisa, e sua independência financeira é garantida pelas patentes/royalties sobre seus inventos). Julgam a teoria Gaia pelo que apressados misticóides novevais (ok,
esta palavra que inventei precisa de explicação: neologismo "referente ao movimento da Nova Era", do latim
novus,a,um 'novo' (dãã) e
aevus 'tempo' - como em medievo, longevo) falam: cuidam a metáfora da Terra como um organismo vivo como se fosse dizer que a Terra tem consciência...
Para quem quiser conhecer o trabalho original de Lovelock (em coautoria com Lynn Margulis - bem, já que expliquei que Lovelock é cientista inglês, vou explicar que Margulis é cientista americana, preciso mencionar a teoria endossimbiótica?),
aqui. (Esse trabalho é de 1974, a primeira menção a Gaia é de um artigo de 1972, mas não encontrei disponível para acesso aberto. De todo modo, eis a referência: Lovelock, J.E. 1972. Gaia as seen through the atmosphere.
Atmospheric Environment 6: 579-80. )
A teoria Gaia, normalmente denominada de hipótese Gaia, de Lovelock diz tão somente que o planeta Terra funciona como um grande sistema homeostático, em que relações de retroalimentação negativa mantêm certos parâmetros ambientais: como a composição atmosférica e a temperatura média global (sim, juro que um dia eu retomo as duas postagens faltantes sobre o aquecimento global), dentro de uma dada faixa de variação - amigável à vida e que a própria biota participa ativamente desse processo.
Teleonômico? Não! Os seres vivos não têm consciência de que precisam regular a temperatura do planeta; do mesmo modo como nossas células não têm consciência de que precisam regular a nossa temperatura corporal. Mas como então tal sistema autorregulado pode surgir? No caso de nossas células é mais ou menos fácil, evolução por seleção natural. Mas e quanto a uma autorregulação em escala planetária? A resposta é um tanto mais complexa, posto que quase certamente a Terra não passou ela mesma por um processo de seleção natural - a Terra essencialmente não se reproduz... No entanto, mesmo se considerarmos apenas uma pequena porção dela, algum ecossitema mais limitado, notaremos que a interação dos organismos com o ambiente faz com que diversos parâmetros ecológicos se mantenham mais ou menos estáveis ao longo do tempo - e o ecossistema, como a Terra, não se reproduz (bem, eu diria que tanto a Terra, quanto um ecossistema poderiam se reproduzir, mas vamos aceitar aqui a visão tradicional de que não o fazem). (Sim, a estabilidade não é absoluta. Em um termo muito mais longo ocorrem alterações sensíveis. Mas Lovelock também prediz que a existência da Terra como Gaia - isto é, um sistema autorregulado - é finita no tempo: demorou um tempo para se estabelecer desde a origem da vida e deverá se extinguir quando alguns limites forem rompidos: se não a própria atividade humana a ferir de morte o sistema, o inevitável desenvolvimento do Sol em uma gigante vermelha.) Não está claro se a seleção dos organismos e da interação entre eles por si mesma pode levar ao surgimento de um sistema como Gaia. De todo modo, a existência de Gaia é algo que pode ser testado: p.e. verificando-se (claro, por indícios indiretos) a flutuação da temperatura global na escala geológica. Uma vez constada é questão de explicar por quê.
Há um considerável número de artigos científicos que procuram testar as predições da teoria Gaia. Aqui alguns exemplos, longe de serem exaustivos ou representativos, apenas ilustrativos:
*Lenton T.M. 2002. Testing Gaia: the effect of life on Earth's habitability and regulation.
Climatic Change 52(4): 409-22
*Kirchner, J.W. 2003. The Gaia hypothesis: conjectures and refutations.
Climatic Change 58: 21–45. (Sim, este artigo procura
refutar a teoria - o papel do cientista, segundo Popper.) Disponível
aqui.
*Kleidon, A. 2002. Testing the Effect of Life on Earth's Functioning: How gaian is the Earth system?
Climatic Change 52(4): 383-9. (Outro que refuta diversas formulações de Gaia.)
Pode-se até dizer que seja uma teoria atualmente sem validade (eu discordaria, mas seria uma alegação aceitável posto que há tentativas de refutação), no entanto, ao se aceitarem as refutações é preciso, então, reconhecer a cientificidade da teoria - já que se trataria então de uma idéia refutável. Longe, portanto, de conceitos misticóides dos adeptos da Nova Era.
Upideite (12/ago/2009): Acresço algumas palavras do próprio Lovelock em relação às acusações sobre a questão da Terra ser senciente, do uso indiscriminado de linguagem metafórica e da teleonomia.
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Occasionally it is difficult, without excessive circumvolution, to avoid talking of Gaia as if she were known to be sentient. This is meant no more seriously than is the appellation 'she' when given to a ship by those who sail in her, as a recognition that even pieces of wood and metal when specifically designed and assembled may achieve a composite identity with its own characteristic signature, as distinct from being the mere sum of its parts." (prefácio,
Gaia: a new look at life on earth, Oxford University Press, 1979)
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I failed to make clear that it was not the biosphere alone that did the regulation but the whole thing, life, the air, the oceans, and the rocks." (prefácio,
Gaia: a new look at life on earth, Oxford University Press, 2000)
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When I wrote the preface of the previous edition of this book change was under way but the old attitudes to the Earth persisted. I began by saying '... Let me tell of an exchange that took place recently at at a meeting in Oxford, in 1994, entitled, The Self-Regulating Earth. It was a transdiciplinary meeting of working scientists in fields ranging from climatology to community ecology. It was unusually friendly and ideas and information were freely exchanged accross disciplinary boundaries. Towards the end of my talk at this meeting, a talk in which I tried to show that the ecosystems of the land masses and the ocean are at present failing to achieve thermostasis and would operate more effectively during an ice age, I said, 'Perhaps Gaia likes it cold'. This was intended simply as verbal shorthand for some wordy technical phrase such as: the evidence suggests that the system, comprising the algal ecosystems of the oceans and those of the land plants, taken together with the atmosphere and climate, maintain thermostasis only at global average temperature below about 12oC. In my talk I had spoken like this more than once. I felt the need for metaphor and it seemed to me that 'Gaia likes it cold' might be a neat sentence with which to summarize and conclude my talk. To my amazement a scientist friend came to me afterwards and said 'Jim, you can't say things like that. It take us back to the days of Gaia as an Earth Goddess. The scientists sitting near me were shocked to hear you speak in such terms.' Shocked they may have been but nowhere near as shocked as I was by their response. I was shocked most of all that they were more interested in my choice of words than in the content of my talk. Worse still, the scientists present at the Oxford meeting were selected and self-selected from those few prepared to attend a transdisciplinary meeting on such a unconventional topic as The Self-Regulating Earth. If they thought this way, no wonder Gaia is not considered science by most scientists." (prefácio,
The ages of Gaia: a biography our living Earth, Oxford University Press, 2000.)
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When Earth scientists use the word regulation, they usually have in mind a passive process where the input ant output of some component or property are in balance. In geophysiology, by contrast, regulation implies the active process of homeostasis; the preservation of a comfortable Earth by the interaction of life and its environment. The speculations that follow about the regulation of climate, oxygen, salinity, and other properties of the environment are in this geophysiological context, in other words, as if they were speculations about the state of a living organism. In no sense is this intented as a teleology, or meant to imply that the biota use foresight or planning in the regulation of the Earth. What we need to think about is how a global regulatory system can develop from the local activity of organisms. It is by no means far-fetched to imagine a single new bacterium evolving with its environment to form a system that can change the Earth. Indeed the first cyanobacterium, progenitor of the ecosystem that used light energy to make organic matter and oxygen, did just this." (p. 97,
The ages of Gaia: a biography our living Earth, Oxford University Press, 2000.)