"Dinossauros voadores pareciam-se com répteis, e não com aves".
A Folha.com também reproduziu a notícia e usava o termo "dinossauro voador", alertada, corrigiu para a designação correta: "pterossauros".
Pterossauros são um grupo de répteis voadores que conviveu com os dinossauros, mas não são eles mesmos dinossauros. Ainda que parentes relativamente próximos.
O grupo que inclui os crocodilos e as aves é chamado de Archosauria. Esse grupo inclui os dinossauros, parentes bem próximos das aves - na verdade, como o leitor (ou leitora) solitário(a) deste blogue já sabe (pelo menos desde Jurassic Park), aves *são* dinossauros, do mesmo modo como os humanos *são* mamíferos. Há alguns outros grupos menores, mas os pterossauros também estão incluídos. Pterossauros formam um grupo com os dinossauros (e alguns grupos menores) chamado de Ornithodira - os crocodilos (e alguns parentes) estão fora desse grupo .
A Figura 1 mostra um esquema simplificado das relações entre diversos grupos dos Amniotas.
(A posição das tartarugas é mais discutível, mas dados moleculares parecem colocá-las como parentes vivas mais próximas dos crocodilos e jacarés.)*
Por que pterossauros não são dinossauros? Por definição. Na verdade há um grupo minoritário de paleontólogos que propuseram a inclusão dos pterossauros entre os dinossauros - e.g. Robert T. Bakker. Mas a maioria não aceita essa proposição, por razões eminentemente históricas - mas com algumas consequências práticas.
Dinosauria foi um termo criado pelo anatomista Richard Owen em 1842 em um trabalho em que descrevia fósseis de alguns répteis do Mesozóico totalmente diferente do que se conhecia até então: um Megalosaurus bucklandii, um Hylaesaurus armatus e um Iguanodon bernissartensis. Dentro do esquema rígido de classificação hierárquica, Dinosauria foi proposto como uma nova Ordem reconhecida dentro dos Reptilia. O termo Pterosauria foi criado antes, em 1834 por Joahann Jakob Kaup como uma Ordem específica dentro dos Reptilia.
Ampliar o grupo dos Dinosauria para abarcar os Pterosauria não seria de muita ajuda. Seria preciso criar um nome para o grupo formado pelos Saurischia e Ornithischia (os dois grandes grupos - ou Subordens - em que se dividem os dinossauros) - que a despeito da diversidade morfológica têm mais em comum entre si do que com os pterossauros.
Claro que seria útil um nome para se referir ao grupo formado pelos dinossauros+pterossauros e é, como dito antes, Ornithodira.
Há diversas definições dadas pelos cientistas para Dinosauria. Uma é como o grupo formado por Megalosaurus bucklandi, Iguanodon bernissartensis, o ancestral em comum mais recente entre eles e todos os descendentes desse ancetral. Uma outra definição segue os mesmos moldes, mas usa Passer domesticus e Triceratops horridus. Essas são as mais usadas nos trabalhos sobre dinossauros e, em consequência das relações evolutivas inferidas pelo estudo da morfologia dos organismos, os pterossauros ficam de fora, ainda que próximos nas árvores construídas.
Isto é, de acordo com o que se conhece até o momento, do ancestral mais recente que deu origem ao Megalosaurus (ou ao Passer) e ao Iguanodon (ou ao Triceratops) *não* surgiram os pterossauros. O ancestral dos dinossauros e os pterossauros, por sua vez, partilham um ancestral mais remoto que *não* deu origem aos crocodilos.
Aqui a já surrada comparação familiar é útil: Juca e seu irmão Pedro possuem um ancestral em comum (o pai Neco) que *não* partilham com o primo Zeca; mas Zeca e Juca (e Pedro) têm um ancestral mais remoto (o avô Noel, pai de Neco e da tia Lena, mãe de Juca) em comum.
Oquei. Mas a história não para na questão de pterossauros não serem dinossauros. O que querem dizer com "parecido com répteis, e não com aves"?
Se continuarmos com o rigor que passa o limite da
Esqueçamos o detalhe "até pouco tempo atrás eram poucos os exemplares de fósseis obtidos dos pterossauros" - não reflete bem a verdade (daria a impressão de que o estudo revelou um novo sítio com dezenas de milhares de espécimes de pterossauros). Mas a reportagem *não* diz de que modo a biologia reprodutiva dos pterossauros seria
Temos que ir até o site da Science para ler o estudo - e infelizmente não está disponível para todo o público. Mas creio que o resumo esclareça a questão:
"A sexually mature individual of Darwinopterus preserved together with an egg from the Jurassic of China provides direct evidence of gender in pterosaurs and insights into the reproductive biology of these extinct fliers. This new find and several other examples of Darwinopterus demonstrate that males of this pterosaur had a relatively small pelvis and a large cranial crest, whereas females had a relatively large pelvis and no crest. The ratio of egg mass to adult mass is relatively low, as in extant reptiles, and is comparable to values for squamates. A parchment-like eggshell points to burial and significant uptake of water after oviposition. This evidence for low parental investment contradicts the widespread assumption that reproduction in pterosaurs was like that of birds and shows that it was essentially like that of reptiles."
Os aspectos mais parecidos com os demais répteis são, então, a baixa relação massa do ovo/massa corporal e a casca provavelmente do tipo coriácea, presente em alguns outros répteis (mas não, por exemplo, em lagartixas), e não rígida como a das aves.
O título deveria ser mais algo como: "Ovo de pterossauro tinha casca flexível como de cobras". Claro, se não bancarmos o matemático da piada sobre ovelhas negras nos campos escoceses: "Pelo menos um ovo de pelo menos um indivíduo de uma espécie de pterossauro...".
Referência
Lu, J., Unwin, D., Deeming, D., Jin, X., Liu, Y., & Ji, Q. (2011). An Egg-Adult Association, Gender, and Reproduction in Pterosaurs Science, 331 (6015), 321-324 DOI: 10.1126/science.1197323
Upideite(01/fev/2011): Aproveitando o tema paleontológico e a citação sobre dinossauros, recentemente deu-se algum destaque a (mais) um estudo que indicaria que alguns dinossauros (não-avianos - lembremos, aves são dinossauros) teriam sobrevivido à extinção K/Pg. Mas tudo indica que a história não é bem essa. A técnica utilizada - com radioisótopos de urânio - não foi ainda validada para datar diretamente fósseis; átomos de urânio podem penetrar do meio para os fósseis 'rejuvenescendo'-o (ao recompor parte do urânio perdido que foi transformado em chumbo pelo decaimento radioativo); a amplitude de variação das datas também é grande: 64,8+/-0,9 x 106 de anos - o que na verdade faz com que o fóssil possa ser perfeitamente anterior ao evento K/Pg (datado em 65,5 milhões de anos atrás).
*Upideite(28/out/2012): @carloshotta indica um estudo recente com elementos ultraconservados que posiciona as tartarugas no ramo dos arcossauromorfos (como grupo-irmão dos arcossauros).
6 comentários:
Ótimo. Difícil ser mais didático sobre filogenia. Parabéns.
Soluções de compromisso são sempre negociáveis quando se trata de popularização científica em mídias não especializadas, mas para fazer isso seria legal, pelo menos, saber do que se está falando e o que pode ser alvo de compromisso. Gostaria que os jornalistas que cobrem essas coisas lessem mais sobre o assunto ou consultassem que lê como a equipe gigantesca do gene repórter. :)
Parabéns de novo.
Abraços,
Rodrigo
Salve, Véras,
Valeu pela visita e comentário.
Tentei encontrar a notícia no original - imagino que a EFE tenha distribuído em inglês - mas não encontrei. Então não sei direito onde o erro se deu - se no original ou se na tradução.
Bem, eu especificamente não sou especialista no assunto. Mas certamente há paleontólogos que poderiam ser mesmo consultados. (Se bem que isso sobre pterossauros não serem dinossauros, bastava terem perguntado ao próprio sobrinho.)
[]s,
Roberto Takata
Pois é Takata, mas são nessas coisas básicas que os maiores problemas e erros ocorrem. Jornalistas que cobrem estas áreas deveriam ter os telefones de alguns cientistas ou divulgadores confiáveis que pudessem checar este tipo de coisa. Boa parte é trivial e, como vc disse, até um moleque de 12 anos poderia ajudá-los.
Existem ótimos jornalistas científicos mesmo no Brasil, mas parecem basicamente colaborar em blogs, colunas de jornais e artigos de divulgação. Alguns devem até ser editores, mas não vejo uma preocupação com a qualificação dos jornalistas mais na linha de frente. Quando leio certas coisas fico me perguntando quem é que está nas redações e é responsável pelas noticias de ciência no dia a dia. A certa displicência com que isso é tratado nas redações é que me incomoda.
Tenho alguns amigos jornalistas e é comum, sobretudo no começo de carreira, que eles tenham que cobrir todo o tipo de assunto. Um deles até recebeu proposta de escrever o horóscopo, mas escapou. hehehe!! Um outro simplesmente foi colocado para cobrir economia e ficar responsável pelo assunto no jornal (As especialidades dele eram esporte, música e noticiário policial. Acho que é onde todos começam). Óbvio ele foi atrás de aprender sobre o assunto, mas não sei se isso acontece no caso da cobertura de ciências, mesmo por que as ciências naturais são já bem variadas e há a necessidade de especializar em alguma área.
Jornalistas precisariam, na minha opinião, além de uma formação humanística de base (jornalista sem cultura em história e política é dose), precisam saber o feijão com arroz das ciências. Mas, pelo menos, todo jornalista que é colocado para cobrir notícias de ciência deveria ter um conhecimento básico de metodologia científica, dominar um vocabulário técnico mínimo e possuir uma lista com uma meia duzia de contatos técnicos em diversas áreas da pesquisa científica.
Abraços,
Rodrigo
Não tenho estudos, é só impressão, mas acho que no passado a coisa foi mais grave.
Erros, mesmo crassos ocorrem em toda profissão. P.e., passar "código genético" como sinônimo de "genoma" em um artigo assinado por mais de uma dezena de biólogos moleculares, revisado por pares na *Science*... naquele trabalho de Venter e cia. sobre o ADN sintético implantado em um micoplasma.
Claro, continuam sendo erros crassos.
Como isso passou pelo controle de qualidade da EFE não sei - o erro tem que ter saído da EFE, já que a nota é a mesma em todos os veículos que a publicaram. Certamente eles têm contato com os cientistas - no mínimo o que foi entrevistado para a reportagem.
E não sei como é a questão da especialização em agências de notícias de modo geral e da EFE em particular.
(Mas faltou o double-checking por parte dos portais que reproduziram a notícia. Confiaram demais no despacho da agência.)
Sei que na Folha e no Estadão tem gente que entende do riscado - quase toda a editoria é formada por pessoas especializadas. Acho que no G1 também. (Aliás, na Folha eu só disse: "Sei que não passou por vocês, mas dá uma olhada nisso", o editor sacou na hora a mancada e corrigiu.)
Pra veículos menores, a situação fica mais complicada. Não dá pra manter um estafe grande - aí tem que ser gente faz-tudo mesmo (às vezes até técnico de informática).
Como uma solução ideal, compartilho com sua proposta. O quanto isso é viável, aí...
[]s,
Roberto Takata
Entendo, mas mesmo assim a questão de formação básica ainda me preocupa. Bem, um técnico em informática que goste de biologia e corra atrás do assunto pode ajudar.Hehe! Conheço alguns assim. :) mas creio que com a pressão dos blogs, talvez, isso melhore.
Abraços,
Hmmm,
Talvez sua proposta se ligue a isto:
http://genereporter.blogspot.com/2010/10/discutindo-ciencias-palpiteiramente.html
Uma discussão mais ampla, mas que acho que abarcaria o caso dos jornalistas também.
[]s,
Roberto Takata
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