Quem vem à carga agora é um colunista da Folha de São Paulo, o engenheiro-civil e de petróleo Rodolfo Landim: "Influência humana em mudanças climáticas é discutível".
É discutível apenas no sentido de que, como toda hipótese científica, é aberta à discussão e à contestação. Mas não no sentido que ele quer passar: de que as bases factuais em apoio sejam suspeitas e fracas.
"Há uma clara divisão de opiniões sobre o tema: existe um grupo de cientistas que acredita que o comportamento da humanidade nos coloca a caminho de grandes desastres, enquanto outros defendem que o aquecimento global que estamos vivenciando é apenas parte de um processo cíclico que vem ocorrendo na face da Terra ao longo dos últimos milhares de anos."
De fato, a divisão é relativamente clara no sentido de que é mais ou menos fácil de se distinguir membros de um grupo do de outro*. Mas não no sentido que invoca: de que a divisão separa em grupos mais ou menos equivalentes. A divisão não é equivalente nem numericamente (alhures mostro como a visão de que não há influência humana significativa é minoritária entre os especialistas: só 6% dos membros da Associação Meteorológica acreditam que o aquecimento não é antropogênico em nenhuma extensão e 82% dos cientistas da Terra concordam que há aquecimento e os humanos têm um papel nisso), nem - o que realmente importa - em termos de embasamento factual, os melhores indícios disponíveis apontam para o aquecimento global antropogênico (como mostro na série sobre o AGA e outras postagens compiladas aqui).
O que o colunista diz é o equivalente a dizer que há uma clara divisão de opiniões sobre a evolução biológica - existe um grupo de cientistas que acredita que a vida evoluiu, enquanto outros que ela surgiu mais ou menos da mesma forma que se encontra atualmente, ou que há uma clara divisão entre os cientistas que acreditam que a Aids é causada pelo HIV e os que acham que é por outra coisa.
"Os impactos causados pelo lançamento de compostos de carbono de origem humana na atmosfera afetariam apenas os locais onde eles se situam, ou, no máximo, o seu entorno, e sem nenhuma expressão em termos de abrangência global."
O colunista deve achar que a atmosfera é uma coisa estática, que não há mistura gasosa - fora isso verdade, as cidades morreriam sufocadas sem oxigênio (localmente não é produzido quase nenhum). Também deve achar que na Antárctica tem fábricas de CFCs.
"Toda a energia consumida pela humanidade por dia equivale a sete milésimos da que o nosso planeta recebe do Sol no mesmo período."
Verdade. Mas completamente irrelevante para a questão. Nenhum modelo que indica a AGA diz que o aquecimento se deve à introdução de mais energia no sistema pela energia consumida pelos seres humanos. A questão é a mudança na composição atmosférica que leva a uma maior captura da energia solar (na verdade, a uma menor saída de energia solar na faixa do infravermelho).
"Em recente carta enviada à Presidência da República, um grupo de renomados cientistas brasileiros de algumas das mais importantes instituições do país (como USP, UFRJ, Inpe, ITA, Unesp e CPRM), formado por geólogos, geógrafos, físicos, meteorologistas, engenheiros e ambientalistas, defenderam essa visão de forma clara e objetiva."
Aceitemos que seja de forma clara e objetiva. Mas foi de uma forma clara, objetiva e errada.
"Considerando apenas o período dos últimos 20 mil anos, ou seja, a partir do início do degelo da última glaciação, as evidências geológicas demonstram ter havido períodos em que as variações de temperatura e do nível do mar foram várias vezes maiores que no período de 1.850 a 2.000, pós-Revolução Industrial, quando a temperatura subiu 0,74ºC (grau centígrado) e o mar subiu 20 centímetros."
Deveria considerar também que a variação foi em cima do último máximo *glacial*. O aumento de 0,74ºC e 20 cm observados entre 1850 e 2000 foi em cima já de um nível aumentado. Se as temperaturas globais médias tivessem partido da temperatura equivalente do último máximo glacial - alguma coisa como 10ºC menos do que hoje - aí, sim, não deveríamos nos preocupar com o aquecimento atual. Mas sair de uma temperatura média de 14ºC para 16ºC ou mais provavelmente não será uma boa ideia.
A ideia sugerida de que a variação atual estaria dentro da variação observada anteriormente e, portanto, que isso indicaria causas naturais, não se sustenta pelos indícios a favor da hipótese do AGA. O que essa variação mostra é que a temperatura da Terra tem seguido muito de perto os níveis de CO2 na atmosfera (Figura 1 e 2*).
Figura 1. Correlação da concentração atmosférica de CO2 e a temperatura. Fontes: CDIAC, concentração de CO2 em Vostok/Antártica; NOAA, temperatura na Groenlândia. (Nota: a concentração de CO2 usada foi a média para as idades imediatamente anterior e posterior correspondentes às datas para as temperaturas.)
Figura 2. Evolução da temperatura atmosférica (Groenlândia) - em ºC - e da concentração atmosférica de CO2 (Vostok/Antárctica) - em ppmv. Fontes: CDIAC, concentração de CO2 em Vostok/Antártica; NOAA, temperatura na Groenlândia.*
"A 'descarbonização' da economia seria desnecessária e contraproducente por buscar uma pseudosolução para um problema inexistente, já que, além de não implicar nenhum efeito palpável sobre o clima, levaria ao encarecimento das tarifas de energia pelo uso de outras fontes alternativas mais caras ou subsidiadas, cujos recursos poderiam ser mais bem direcionados."
Dá para responder em duas palavras: wishful thinking. Vamos voltar para a hipótese do gajo de que os problemas do carbono lançados na atmosfera seriam apenas locais. Vamos, por caridade, considerar tal hipótese verdadeira, então, como assim, desnecessária? A poluição nas cidades não é um fato? Não temos problemas com chuva ácida (pelo enxofre presente nos combustíveis fósseis), fuligem, monóxido de carbono?
"Assim, a humanidade, que hoje detém um enorme acervo de conhecimentos e recursos técnicos e humanos, deveria deixar de lado o alarmismo climático e dirigir seu foco para viabilizar de forma sustentável a universalização de melhores níveis de bem-estar por meio de obras de infraestrutura de água, saneamento, transportes, comunicação, serviços de educação e saúde e prover eletricidade a mais de 1,5 bilhão de pessoas hoje desassistidas."
Há concordância quanto aos problemas do alarmismo climático e há concordância em relação às necessidades de desenvolvimento sustentável (tanto é que é dos poucos pontos que ficaram no texto base para a discussão dos chefes de estado na Rio+20). O problema é que não se pode negligenciar as mudanças climáticas sob o risco desse bem estar se perder, afetando-se, entre outras coisas, as infraestruturas, a produção de alimentos e acesso à água.
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*Obs: Só mais ou menos porque se descermos aos detalhes, a divisão não é tão nítida assim: por exemplo, há os que acham que não ocorre
Upideite(22/jun/2012): Carlos Orsi tem uma postagem analisando a estrutura geral dos argumentos negacionistas.
*Upideite(23/jun/2012): Adido a esta data.
4 comentários:
Ótima análise!
Sempre aprendo e me surpreendo com o Jogo dos erros.
E parabéns pela paciência.
Salve, Victor Hugo,
Grato pela visita e comentários.
[]s,
Roberto Takata
Os principais aspectos do aquecimento global estão bem estabelecidos na ciência, como a propriedade dos gases estufa de reterem radiação infravermelha, o aumento de temperatura decorrente da maior concentração destes gases, a causa humana em sua acumulação, e a importância deste aquecimento no clima.
De fato, o consenso do meio científico a este respeito é virtualmente unânime. Um levantamento realizado na base de dados do ISI analisou os 928 artigos publicados entre 1993 e 2003 a respeito de mudanças climáticas, e não encontrou um único estudo que rejeitasse a posição de consenso.
ISI: http://en.wikipedia.org/wiki/Institute_for_Scientific_Information
Levantamento dos estudos publicados a respeito das mudanças climáticas: http://www.sciencemag.org/content/306/5702/1686.full
Em contraste, a mídia não-científica, numa distorcida busca por equilíbrio e imparcialidade, com frequência procura apresentar “os dois lados” da questão. Numa pesquisa similar, feita com artigos de alguns grandes jornais dos EUA, encontrou-se que 67% deles negava explicitamente algum dos aspectos do aquecimento global (o aumento da temperatura em si, sua causa ou a gravidade de suas consequências), ou apresentava um texto “equilibrado”, dando espaço similar aos discordantes.
Boykoff & Boykoff 2004. Balance as Bias: http://www.eci.ox.ac.uk/publications/downloads/boykoff04-gec.pdf
Esta discrepância é corroborada por outro estudo, em que entrevistados respondiam se 1) as temperaturas globais eram maiores hoje que no século XIX e 2) se a ação humana tinha um papel significativo nisso. Apenas 47% do público em geral respondeu afirmativamente às duas questões. A proporção tornou-se gradativamente maior quanto mais o segmento pesquisado tinha conhecimento na área de climatologia, chegando a 97% de concordância entre os climatólogos em atividade, que publicavam estudos neste campo.
Aqui a referência: http://tigger.uic.edu/~pdoran/012009_Doran_final.pdf
Obviamente, o equilíbrio de espaço entre posições discordantes é regra necessária no jornalismo, especialmente em temas políticos. Entretanto, proporcionar igual visibilidade a uma corrente científica tão marginal seria análogo a esperar que as notícias relacionadas à AIDS proporcionassem o mesmo espaço à ínfima minoria de cientistas que discordam do papel do vírus HIV em sua causa. Neste caso, o “equilíbrio” traduz-se em atenção desproporcional a visões marcadamente marginais e sem correspondente respaldo dentro da comunidade científica.
(texto que estou compondo pra outro propósito, e que achei que cabia aqui. Além da onda negacionista que vc mencionou, eu ainda acrescento a Veja na edição dessa semana...)
Salve, Alexandre,
Grato pela visita e complementações.
A Veja acaba entrando na categoria de mídia impressa.
[]s,
Roberto Takata
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