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sexta-feira, 22 de junho de 2012

Jogo dos erros 5

Claudio Angelo, da Folha de São Paulo, cantou a bola, uma onda negacionista estava por vir. Veio. No Brasil, foi uma entrevista no programa do Jô, uma carta dos negacionistas, uma série de reportagens no Jornal da Band, uma no Jornal Nacional, um debate no Entre Aspas da Globo News e várias reportagens na mídia impressa.

Quem vem à carga agora é um colunista da Folha de São Paulo, o engenheiro-civil e de petróleo Rodolfo Landim: "Influência humana em mudanças climáticas é discutível".

É discutível apenas no sentido de que, como toda hipótese científica, é aberta à discussão e à contestação. Mas não no sentido que ele quer passar: de que as bases factuais em apoio sejam suspeitas e fracas.

"Há uma clara divisão de opiniões sobre o tema: existe um grupo de cientistas que acredita que o comportamento da humanidade nos coloca a caminho de grandes desastres, enquanto outros defendem que o aquecimento global que estamos vivenciando é apenas parte de um processo cíclico que vem ocorrendo na face da Terra ao longo dos últimos milhares de anos."
De fato, a divisão é relativamente clara no sentido de que é mais ou menos fácil de se distinguir membros de um grupo do de outro*. Mas não no sentido que invoca: de que a divisão separa em grupos mais ou menos equivalentes. A divisão não é equivalente nem numericamente (alhures mostro como a visão de que não há influência humana significativa é minoritária entre os especialistas: só 6% dos membros da Associação Meteorológica acreditam que o aquecimento não é antropogênico em nenhuma extensão e 82% dos cientistas da Terra concordam que há aquecimento e os humanos têm um papel nisso), nem - o que realmente importa - em termos de embasamento factual, os melhores indícios disponíveis apontam para o aquecimento global antropogênico (como mostro na série sobre o AGA e outras postagens compiladas aqui).

O que o colunista diz é o equivalente a dizer que há uma clara divisão de opiniões sobre a evolução biológica - existe um grupo de cientistas que acredita que a vida evoluiu, enquanto outros que ela surgiu mais ou menos da mesma forma que se encontra atualmente, ou que há uma clara divisão entre os cientistas que acreditam que a Aids é causada pelo HIV e os que acham que é por outra coisa.

"Os impactos causados pelo lançamento de compostos de carbono de origem humana na atmosfera afetariam apenas os locais onde eles se situam, ou, no máximo, o seu entorno, e sem nenhuma expressão em termos de abrangência global."
O colunista deve achar que a atmosfera é uma coisa estática, que não há mistura gasosa - fora isso verdade, as cidades morreriam sufocadas sem oxigênio (localmente não é produzido quase nenhum). Também deve achar que na Antárctica tem fábricas de CFCs.

"Toda a energia consumida pela humanidade por dia equivale a sete milésimos da que o nosso planeta recebe do Sol no mesmo período."
Verdade. Mas completamente irrelevante para a questão. Nenhum modelo que indica a AGA diz que o aquecimento se deve à introdução de mais energia no sistema pela energia consumida pelos seres humanos. A questão é a mudança na composição atmosférica que leva a uma maior captura da energia solar (na verdade, a uma menor saída de energia solar na faixa do infravermelho).

"Em recente carta enviada à Presidência da República, um grupo de renomados cientistas brasileiros de algumas das mais importantes instituições do país (como USP, UFRJ, Inpe, ITA, Unesp e CPRM), formado por geólogos, geógrafos, físicos, meteorologistas, engenheiros e ambientalistas, defenderam essa visão de forma clara e objetiva."
Aceitemos que seja de forma clara e objetiva. Mas foi de uma forma clara, objetiva e errada.

"Considerando apenas o período dos últimos 20 mil anos, ou seja, a partir do início do degelo da última glaciação, as evidências geológicas demonstram ter havido períodos em que as variações de temperatura e do nível do mar foram várias vezes maiores que no período de 1.850 a 2.000, pós-Revolução Industrial, quando a temperatura subiu 0,74ºC (grau centígrado) e o mar subiu 20 centímetros."
Deveria considerar também que a variação foi em cima do último máximo *glacial*. O aumento de 0,74ºC e 20 cm observados entre 1850 e 2000 foi em cima já de um nível aumentado. Se as temperaturas globais médias tivessem partido da temperatura equivalente do último máximo glacial - alguma coisa como 10ºC menos do que hoje - aí, sim, não deveríamos nos preocupar com o aquecimento atual. Mas sair de uma temperatura média de 14ºC para 16ºC ou mais provavelmente não será uma boa ideia.

A ideia sugerida de que a variação atual estaria dentro da variação observada anteriormente e, portanto, que isso indicaria causas naturais, não se sustenta pelos indícios a favor da hipótese do AGA. O que essa variação mostra é que a temperatura da Terra tem seguido muito de perto os níveis de CO2 na atmosfera (Figura 1 e 2*).

Figura 1. Correlação da concentração atmosférica de CO2 e a temperatura. Fontes: CDIAC, concentração de CO2 em Vostok/Antártica; NOAA, temperatura na Groenlândia. (Nota: a concentração de CO2 usada foi a média para as idades imediatamente anterior e posterior correspondentes às datas para as temperaturas.)


Figura 2. Evolução da temperatura atmosférica (Groenlândia) - em  ºC - e da concentração atmosférica de CO2 (Vostok/Antárctica) - em ppmv. Fontes: CDIAC, concentração de CO2 em Vostok/Antártica; NOAA, temperatura na Groenlândia.*

"A 'descarbonização' da economia seria desnecessária e contraproducente por buscar uma pseudosolução para um problema inexistente, já que, além de não implicar nenhum efeito palpável sobre o clima, levaria ao encarecimento das tarifas de energia pelo uso de outras fontes alternativas mais caras ou subsidiadas, cujos recursos poderiam ser mais bem direcionados."
Dá para responder em duas palavras: wishful thinking. Vamos voltar para a hipótese do gajo de que os problemas do carbono lançados na atmosfera seriam apenas locais. Vamos, por caridade, considerar tal hipótese verdadeira, então, como assim, desnecessária? A poluição nas cidades não é um fato? Não temos problemas com chuva ácida (pelo enxofre presente nos combustíveis fósseis), fuligem, monóxido de carbono?

"Assim, a humanidade, que hoje detém um enorme acervo de conhecimentos e recursos técnicos e humanos, deveria deixar de lado o alarmismo climático e dirigir seu foco para viabilizar de forma sustentável a universalização de melhores níveis de bem-estar por meio de obras de infraestrutura de água, saneamento, transportes, comunicação, serviços de educação e saúde e prover eletricidade a mais de 1,5 bilhão de pessoas hoje desassistidas."
Há concordância quanto aos problemas do alarmismo climático e há concordância em relação às necessidades de desenvolvimento sustentável (tanto é que é dos poucos pontos que ficaram no texto base para a discussão dos chefes de estado na Rio+20). O problema é que não se pode negligenciar as mudanças climáticas sob o risco desse bem estar se perder, afetando-se, entre outras coisas, as infraestruturas, a produção de alimentos e acesso à água.

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*Obs: Só mais ou menos porque se descermos aos detalhes, a divisão não é tão nítida assim: por exemplo, há os que acham que não ocorrem aquecimento algum; há os que acham que há aquecimento, mas os humanos não têm influência nenhuma; há os que acham que os humanos estão causando um aquecimento global, mas que isso é benéfico e por aí vai. Para complicar um pouco mais, há os que oscilam entre as diferentes posições.

Upideite(22/jun/2012): Carlos Orsi tem uma postagem analisando a estrutura geral dos argumentos negacionistas.
*Upideite(23/jun/2012): Adido a esta data.

4 comentários:

Victor Hugo disse...

Ótima análise!
Sempre aprendo e me surpreendo com o Jogo dos erros.

E parabéns pela paciência.

none disse...

Salve, Victor Hugo,

Grato pela visita e comentários.

[]s,

Roberto Takata

Alexandre disse...

Os principais aspectos do aquecimento global estão bem estabelecidos na ciência, como a propriedade dos gases estufa de reterem radiação infravermelha, o aumento de temperatura decorrente da maior concentração destes gases, a causa humana em sua acumulação, e a importância deste aquecimento no clima.


De fato, o consenso do meio científico a este respeito é virtualmente unânime. Um levantamento realizado na base de dados do ISI analisou os 928 artigos publicados entre 1993 e 2003 a respeito de mudanças climáticas, e não encontrou um único estudo que rejeitasse a posição de consenso.
ISI: http://en.wikipedia.org/wiki/Institute_for_Scientific_Information
Levantamento dos estudos publicados a respeito das mudanças climáticas: http://www.sciencemag.org/content/306/5702/1686.full


Em contraste, a mídia não-científica, numa distorcida busca por equilíbrio e imparcialidade, com frequência procura apresentar “os dois lados” da questão. Numa pesquisa similar, feita com artigos de alguns grandes jornais dos EUA, encontrou-se que 67% deles negava explicitamente algum dos aspectos do aquecimento global (o aumento da temperatura em si, sua causa ou a gravidade de suas consequências), ou apresentava um texto “equilibrado”, dando espaço similar aos discordantes.
Boykoff & Boykoff 2004. Balance as Bias: http://www.eci.ox.ac.uk/publications/downloads/boykoff04-gec.pdf

Esta discrepância é corroborada por outro estudo, em que entrevistados respondiam se 1) as temperaturas globais eram maiores hoje que no século XIX e 2) se a ação humana tinha um papel significativo nisso. Apenas 47% do público em geral respondeu afirmativamente às duas questões. A proporção tornou-se gradativamente maior quanto mais o segmento pesquisado tinha conhecimento na área de climatologia, chegando a 97% de concordância entre os climatólogos em atividade, que publicavam estudos neste campo.
Aqui a referência: http://tigger.uic.edu/~pdoran/012009_Doran_final.pdf


Obviamente, o equilíbrio de espaço entre posições discordantes é regra necessária no jornalismo, especialmente em temas políticos. Entretanto, proporcionar igual visibilidade a uma corrente científica tão marginal seria análogo a esperar que as notícias relacionadas à AIDS proporcionassem o mesmo espaço à ínfima minoria de cientistas que discordam do papel do vírus HIV em sua causa. Neste caso, o “equilíbrio” traduz-se em atenção desproporcional a visões marcadamente marginais e sem correspondente respaldo dentro da comunidade científica.

(texto que estou compondo pra outro propósito, e que achei que cabia aqui. Além da onda negacionista que vc mencionou, eu ainda acrescento a Veja na edição dessa semana...)

none disse...

Salve, Alexandre,

Grato pela visita e complementações.

A Veja acaba entrando na categoria de mídia impressa.

[]s,

Roberto Takata

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