Para os autores, como não havia em bases médicas estudos sobre a eficácia dos paraquedas para diminuir injúrias por queda, se levassem os preceitos da EBM, de receitar tratamentos com base em evidências devidamente coletadas, não seria possível receitar o uso de paraquedas para saltar de aviões. Como, claro, faz todo o sentido do mundo usar paraquedas quando for saltar de uma grande altitude, para os autores, isso implicaria em uma falha da EBM.
Mas essa crítica é uma caracterização errônea da EBM. Como Sackett et al. 1996 escreveram: "Evidence based medicine is not restricted to randomised trials and meta-analyses. It involves tracking down the best external evidence with which to answer our clinical questions. To find out about the accuracy of a diagnostic test, we need to find proper cross sectional studies of patients clinically suspect of harbouring the relevant disorder, not a randomised trial. For a question about prognosis, we need proper follow up studies of patients assembled at a uniform, early point in the clinical course of their disease. And sometimes the evidence we need will come from the basic sciences such as genetics or immunology. It is when asking questions about therapy that we should try to avoid the non-experimental approaches, since these routinely lead to false positive conclusions about efficacy. Because the randomised trial, and especially the systematic review of several randomised trials, is so much more likely to inform us and so much less likely to mislead us, it has become the 'gold standard'' for judging whether a treatment does more good than harm. However, some questions about therapy do not require randomised trials (successful interventions for otherwise fatal conditions) or cannot wait for the trials to be conducted. And if no randomised trial has been carried out for our patient's predicament, we must follow the trail to the next best external evidence and work from there." ["A medicina baseada em evidência não é restrita a estudos aleatorizados e meta-análises. Ela envolve buscar indícios externos que podem responder a questões clínicas. Para encontrar a precisão de um teste diagnóstico, precisamos encontrar estudos transversais adequados de pacientes clinicamente suspeitos de terem transtornos relevantes, não de testes aleatorizados. Para uma questão sobre prognóstico, precisamos de estudos adequados de acompanhamento temporal de pacientes reunidos em um ponto inicial uniforme em relação ao desenvolvimento clínico da doença. às vezes os indícios de que necessitamos virão das ciências básicas como a genética e a imunologia. É quando elaboramos questionamentos sobre uma terapia que precisamos evitar abordagens não experimentais, já que elas levam rotineiramente a conclusões sobre a eficácia baseadas em falsos positivos. Porque os estudos aleatorizados e, especialmente, a revisão sistemática de vários estudos aleatorizados, são muito mais prováveis de nos informar e muito menos prováveis de nos enganar, que se tornaram 'padrões ouro' na hora de julgar se um tratamento faz mais bem do que mal. No entanto, algumas questões sobre uma terapia não requer estudos aleatorizados (intervenções bem sucedidas para condições, de outro modo, fatais) ou não podem esperar para que tais estudos sejam realizados. E, caso nenhum estudo aleatorizado tiver sido realizado para o azar de nosso paciente, devemos seguir a trilha dos indícios que são os melhores a partir daí."]
Ou seja, mesmo se não houver estudos que mostrem diretamente a eficácia do uso de paraquedas para saltar de uma grande altura, pode-se prescrever seu uso com base em outros indícios existentes. Tanto de um ponto de vista teórico: a lei da gravitação e mecânica newtoniana são bem estabelecidas, bem como modelagem aerodinâmica para calcular o arrasto, e prever matematicamente a velocidade terminal da pessoa ao cair de uma determinada altura - e conhecimento do estrago que altas desacelerações causam em organismos modelos e em humanos. Como em bases empíricas: o fato de a velocidade de cargas usadas em testes serem bastante reduzidas; e também pelo histórico de baixa taxa de morte entre os que usam paraquedas (virtualmente zero; com ferimentos graves a uma taxa de cerca de 1 a 2 casos a cada 1.000 saltos) em comparação com pessoas que caem sem paraquedas de alturas até menores (quedas a partir do 8o andar costumam ser 100% fatais, do 6o andar, a taxa de mortalidade é de 80%; pouco mais de 10% do 2o andar e menos de 5%, do 1o andar) - mesmo que não sejam estudos sistemáticos e aleatorizados. No caso totalmente hipotético, em que a ética permitisse realizar com humanos estudos sistemáticos aleatorizados com número suficiente, aí, sim, poderíamos nos valer disso e, garantido que a metodologia seja adequada, se os resultados indicarem o contrário do que dizem esses outros indícios mais indiretos, poderíamos confiar e declarar que os paraquedas seriam inúteis com um razoável grau de confiança.
Esses dados disponíveis da eficácia de paraquedas tornam inúteis os dados de relatos de casos como de Bekerom et al. 2016, com dois eventos em que pessoas caindo de altas altitudes sem paraquedas sobreviveram (sendo que uma caiu sobre uma rede de segurança a 60 metros de altura) ou os experimentos de Yeh et al. 2018 descrevendo o resultado de saltos de aeronaves em solo paradas. O primeiro por serem relatos de caso tipo de indícios muito mais fraco do que um do tipo caso-controle (isso de modo geral, há fatores que alteram a relevância relativa); o segundo por uma falha da metodologia, ao usar alturas não relevantes (ao menos considerando o tamanho amostral utilizado).
Embora críticas a metodologias, teorias e procedimentos científicos sejam importantes para o aperfeiçoamento, elas precisam ser relevantes. Pra começar, precisam mirar em um alvo devidamente caracterizado, não em espantalhos e estereótipos que não condizem com o objeto da crítica. Não se pode acusar a EBM de falhar ao só considerarem válidos dados que venham de estudos aleatorizados quando isso não é verdade. A metodologia dos estudos críticos também precisam ser válidas.
O efeito colateral vai muito além de simplesmente gerar uma crítica mal feita. Tais estudos chamam a atenção e espalham manchetes engraçadinhas como "estudo prova que paraquedas não servem pra nada" - mesmo quando no corpo do texto da notícia explicam os detalhes, muita gente só irá ler o título. É um risco que precisamos ponderar (talvez estudos mais sistemáticos mostrando o quanto isso afeta a percepção sobre a utilidade do paraquedas sejam necessários para uma condenação mais forte; sem falar em estudos sobre o quanto isso afeta a confiança nos prognósticos e prescrições médicos).
2 comentários:
Por falar em EBM, gosto muito de uma abordagem denominada SBM (Science-Based Medicine), que objetiva amenizar alguns pontos cegos da EBM, em especial a pouca importância dada à plausibilidade da hipótese na avaliação dos resultados dos estudos duplo-cego.
A sua análise do artigo sobre a eficácia dos paraquedas já traz implícita a abordagem bayesiana pregada pela SBM, afinal a probabilidade a priori da hipótese nula desse caso ("o uso de paraquedas não aumenta a chance de sobrevivência em quedas de alturas elevadas") é ridiculamente baixa, porém é importante destacarmos esses priors e conscientemente levá-los em conta ao se avaliar as evidências. Se isso fosse a postura padrão, não veríamos mais a famigerada expressão "Further studies needed" em artigos sobre homeopatia...
Mais informações sobre SBM em https://sciencebasedmedicine.org/about-science-based-medicine/.
Salve, Ricardo,
Bayes pode ser muito útil realmente. Mas também tem lá alguns pontos de fragilidade. P.e. se alguém jogar a probabilidade a priori para cima, redundaria em um tamanho amostral muito grande para se rejeitar a hipótese. De todo modo, sempre importante haver uma análise crítica para se aperfeiçoar os procedimentos de pesquisa e tomada de decisão.
Grato pela visita e comentários.
[]s,
Roberto Takata
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