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sexta-feira, 29 de julho de 2011

Um presente de grego (chinês) para o sesquicentenário de Archie?

ResearchBlogging.orgEste ano completam-se 150 anos desde a primeira descrição científica de um dos fósseis mais iconônicos: Archaeopteryx lithographica - com suas características eminentemente reptilianas: cauda óssea, dentes e garras nos membros anteriores, mescladas com características eminentemente avianas: penas e asas.

Um artigo publicado na Nature que descreve o Xiaotingia zhengi foi apresentado como prova de que o Archie afinal não é uma ave (ponto de uma longa discussão no meio paleontológico, ainda que, pelo menos até hoje, minoritário).

O resumão da ópera é que o Xiaotingia é representado por mais um daqueles famosos fósseis de excelente preservação encontrado na China e tem uma cara genérica dos dinos emplumados que têm sido descritos desde 19991998 na região. Quando analisadas suas características anatômicas, junto com a de Archie e alguns outros dinos terópodos (88 no total se não contei errado), resultou em uma árvore filogenética em que Xiao arrasta Archie pra fora do grupo conhecido como Avialae (dentro do qual as aves modernas estão incluídas - nota-se que no estudo não foram incluídos representantes de aves atuais): mais especificamente, faz com que Archie esteja mais próximo de um Velociraptor do que de um Confuciusornis. Ao menos em uma das árvores - a que foi discutida mais detidamente no artigo.


Figura 1. Árvore filogenética proposta por Xu et al. 2011 conforme Witmer 2011.

Se esse resultado se confirmar (lembremos que no material suplementar outras ávores são apresentadas, em uma delas, Archie está bem empoleirado no grupo dos Aviale), poderemos dizer que Archie não é uma ave?

Hmmm, depende. Pode ser mais o caso de dizer que *Velociraptor* é uma ave. Ocorre que há uma divergência entre os especialistas sobre como definir Aviale ou mesmo Aves. A definição de Avialae usada por Xu e colaboradores foi: o grupo mais inclusivo contendo Passer domesticus, mas não Dromaeosaurus albertensis (que define o grupo dos Deinonychosauria) ou Troodon formosus (que define o grupo dos Troodontidae). Mas há definições que usam exatamente o Archie como ponteiro, como a de Sereno 2005 para Aves: grupo menos inclusivo contendo Archaeopteryx lithographica e Passer domesticus. (Para uma discussão sobre algumas das definições propostas, veja aqui; para uma pequena lista de definições propostas que obedecem às regras de monofiletismo, veja aqui.)

Adotando-se a proposta de Sereno 2005, *por definição* Archie é uma ave, e a mudança de sua posição na árvore apenas aumentaria ou restringiria (no caso deste estudo, aumentaria) a amplitude da definição.


Referências
Sereno, P. (2005). The Logical Basis of Phylogenetic Taxonomy Systematic Biology, 54 (4), 595-619 DOI: 10.1080/106351591007453

Xu X, You H, Du K, & Han F (2011). An Archaeopteryx-like theropod from China and the origin of Avialae. Nature, 475 (7357), 465-70 PMID: 21796204

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Thomas Holtz Jr.: "O que todo mundo deveria saber sobre Paleontologia?"

Esta é a primeira postagem de autor convidado no GR. E é em grande estilo.

Dr. Thomaz Holtz Jr. é um dos principais paleontólogos da atualidade; a partir de uma pergunta que fiz a uma lista de discussão - uma versão capenga em broken english do título desta postagem - ele desenvolveu a resposta cuja tradução publico abaixo (no texto há links para a versão original em inglês). Agradeço muitíssimo ao professor Holtz pela resposta e pela autorização da publicação desta tradução.
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"O que todo mundo deveria saber sobre Paleontologia?"

Thomas R. Holtz, Jr.

A questão do título foi recentemente feita por Roberto Takata no Dinosaur Mailing List.

Penso que é uma boa questão. Quais são os elementos da Paleontologia realmente importantes que o público em geral deveria compreender? Procurei respondê-la com uma lista de conceitos-chave (aqui e aqui), baseado na minha experiência com o ensino de Paleontologia e Geologia Histórica e com cursos menos formalmente estruturados de divulgação para o público. Ofereci esta lista (postada também nos blogues Sauropod Vertebrae Picture of the Week, Dave Hone's Archosaur Musings, Crurotarsi: The Forgotten Archosaurs e Superoceras) como uma forma de alcançar uma audiência mais ampla. Que esta seja a Semana Darwin torna isto ainda mais apropriado, na medida em que devemos aproveitar esta ocasião para encorajar uma melhor compreensão das mudanças da Terra e da Vida ao longo do Tempo pelo grande público.

Embora eu gostasse que fosse diferente, muito dos detalhes específicos da função dos membros posteriores do Tyrannosaurus rex ou das características pneumáticas das vértebras de braquiossaurídeos não são mesmo os elementos mais importantes deste campo. Compreender e apreciar os detalhes básicos da filogenia e anatomia de um ramo particular da Árvore da Vida não são realmente necessários de todo mundo saber, mais do que consideraríamos o conhecimento detalhado da bioquímica bacteriana ou da distribuição dos minerais em uma câmara magmática como significativo para o conhecimento geral. (Na verdade, esses dois últimos itens são muito mais críticos para a sociedade humana que qualquer aspecto específico da Paleontologia e, assim, de certo modo, realmente mais importantes para as pessoas saberem do que a História da Vida.)

Dito isto, todas as sociedades humanas e muitos indivíduos perguntaram-se de onde viemos e como o mundo veio a ser como é hoje. Estas são, em minha opinião, as maiores contribuições da Paleontologia: ela nos dá a História da Terra e da Vida e, particularmente, a nossa própria história.

Dividi esta lista em duas seções. A primeira é uma lista de tópicos gerais de Paleontologia, versando sobre os principais elementos de geologia necessários para dar algum sentido aos fósseis. A segunda é uma lista mais específica de pontos-chave na história da vida.

(Nota: como a ideia da lista é que ela seja voltada para o público em geral, procurei evitar terminologias técnicas tanto quanto possível.)

Geral
  • As rochas são produzidas por diversos fatores (erosão e sedimentação; metamorfismo; atividade vulcânica; etc.).
  • As rochas não se formaram em um único momento no tempo, mas, em vez disso, foram e continuam a ser geradas através da história do planeta.
  • Fósseis são restos de organismos ou traços de seu comportamento registrados nessas rochas.
  • As rochas (e os organismos que produziram os fósseis) podem ter milhares, milhões ou mesmo bilhões de anos de idade.
  • As espécies descobertas como fósseis e as comunidades de organismos em cada local e tempo são diferentes das do mundo moderno e umas das outras.
  • A despeito dessas diferenças, há continuidade entre a vida do passado e a vida do presente: essa continuidade é um registro da evolução da vida.
  • Podemos usar os fósseis, em conjunto com dados anatômicos, moleculares e de desenvolvimento das formas de vida, para reconstruir o padrão evolutivo da vida ao longo do tempo.
  • Os fósseis são vestígios incompletos de coisas que uma vez foram vivas e para reconstituir como os organismos que os produziram realmente viveram, podemos:
    • Registrar sua anatomia (tanto a geral externa quanto a interna com o uso de tomografia computadorizada) e compará-la com a anatomia de criaturas vivas de modo a avaliar sua função;
    • Examinar sua composição química, que pode revelar aspectos de sua bioquímica;
    • Examinar sua microestrutura para avaliar os padrões de crescimento;
    • Modelar suas funções bioquímicas com o uso de computadores e outras técnicas de engenharia;
    • Investigar suas pegadas, buracos e outros traços para revelar o movimento e outras ações das espécies quando vivas;
    • E coletar informação de várias espécies que viveram juntas de modo a reconstituir comunidades do passado.
  • No entanto, com tudo isso, os fósseis são necessariamente incompletos e sempre haverá informação sobre o passado que, por mais que queiramos muito conhecer, terá sido perdida para sempre. Aceitar isso é muito importante quando se trabalha com Paleontologia.
  • Os ambientes do passado foram muito diferentes do presente.
  • Houve episódios no tempo em que a maior parte do mundo vivo foi extinta em um tempo muito curto: esses dados não poderiam ser conhecidos sem o registro fóssil.
  • Ramos inteiros da árvore da vida pereceram (às vezes nesses eventos de extinção em massa, às vezes mais gradualmente).
  • Certos modos de vida (formadores de recife, predadores marinhos velozes, grandes pastadores terrestres, etc.) foram desempenhados por grupos muito diferentes de organismos em diferentes períodos da História da Terra.
  • Todas as espécies vivas, e todos os indivíduos vivos, têm um ancestral em comum com todas as espécies e indivíduos em algum ponto na História da Vida.
Específica

Sendo franco, embora os fatos de questões específicas sobre partes específicas da Árvore da Vida sejam no que paleontólogos, meios noticiosos, cidadãos médios, etc. estão mais interessados, eles são muito menos significativos para o público geral saber do que os pontos acima. Infelizmente, companhias de documentários e similares continuam a se esquecer disso e continuam a se esquecer que boa parte do público não sabe dos pontos acima.

Realmente, no quadro maior, a distinção entre dinossauros, pterossauros e crurotársios são trivialidades se comparadas à compreensão básica de que o registro fóssil é nossa documentação da história da Vida e das mudanças da Terra.

Resumir os pontos-chave da história da vida de mais de 4 bilhões de anos de história evolutiva é uma tarefa gigantesca. Afinal, há uma tendência a focar no espetacular e sensacional em lugar do ordinário e sem graça. Como Stephen Jay Gould e outros várias vezes frisaram, de um ponto de vista puramente objetivo e externo sempre estivemos na Idade das Bactérias e a panóplia cambiante de animais e plantas durante o último meio bilhão de anos foram apenas mudanças superficiais.

Mas a questão não foi "o que um forasteiro desapaixonado deveria considerar como o aspecto modal da História da Vida?"; foi "o que todo mundo deveria saber sobre Paleontologia?" Como somos mamíferos terrestres do Cenozóico posterior, temos um interesse natural nos eventos sobre a terra e durante as partes mais recentes da História da Terra. Isso é um viés justo: isso foca em quem NÓS somos e de onde NÓS viemos.

Dito isto, esta é a lista dos conceitos-chave na história da vida. Outros pesquisadores podem pinçar outros momentos e não incluir alguns que apresento aqui. Ainda assim, creio que a maioria das listas teria muitos dos mesmos pontos-chave.
  • A vida desenvolveu-se primeiro nos oceanos, e, por quase toda sua história, foi confinada aí.
  • Por quase toda a história da Vida, os organismos foram apenas unicelulares. (E hoje a maior parte da diversidade permanece unicelular.)
  • A evolução da fotossíntese foi um evento crítico na história da Terra e da Vida; seres vivos foram capazes de afetar o planeta e sua química em escala global.
  • Vida multicelular evoluiu várias vezes de modo independente.
  • Os primeiros animais foram todos marinhos.
  • Os principais grupos de animais divergiram entre si antes de terem capacidade de produzir partes duras.
  • Cerca de 540 milhões de anos atrás, a capacidade de produzir partes duras foi desenvolvida em vários ramos da árvore da vida animal, e passou a haver um registro fóssil muito melhor.
  • As plantas colonizaram a terra em uma série de estágios e adaptações. Isso transformou a superfície da terra e permitiu que animais de vários grupos seguissem-nas depois.
  • Nos primeiros 100 milhões de anos de animais com esqueleto, nosso próprio grupo (os vertebrados), foram relativamente raros e primordialmente organismos filtradores. A evolução das mandíbulas permitiu nosso grupo diversificar-se amplamente e a partir desse ponto os vertebrados de uma ou outra forma permaneceram os predadores de topo na maioria dos ambientes marinhos.
  • Florestas complexas de plantas que na maioria eram relacionadas com as pequenas plantas de charcos atuais cobriram amplas regiões das planícies do Carbonífero.
  • Soterramento dessa vegetação antes que pudesse se decompor levou à formação de boa parte do carvão que forneceu energia para a Revolução Industrial e que continua a fornecer energia para o mundo moderno.
  • Embora muitas das plantas dos pântanos carboníferos necessitassem de superfícies úmidas para se propagarem, um ramo evoluiu um método de reprodução por meio de sementes. Essa adaptação permitiu que elas colonizassem o interior e as plantas com sementes desde então tornaram-se a forma dominante de plantas terrestres.
  • Nos pântanos carboníferos, um grupo de artrópodos (os insetos) evoluiu a capacidade de voar. Desse ponto em diante, os insetos estiveram entre os animais terrestres mais comuns e diversos.
  • Os primeiros vertebrados terrestres muitas vezes eram capazes de se locomoverem sobre a terra como adulto, mas tipicamente precisavam retornar à água para se reproduzirem. Nos pântanos carboníferos um ramo desses animais evoluiu um ovo especializado que os permitiu reproduzirem-se na terra e assim evitar o estágio de "girino".
  • Esses novos vertebrados terrestres - os amniotos - diversificaram-se em muitas formas. Alguns incluíam os ancestrais dos mamíferos modernos; outros, os dos répteis atuais (incluindo aves).
  • Um gigantesco evento de extinção, o maior na idade dos animais, devastou o mundo cerca de 252 milhões de anos atrás. Causado pelos efeitos diretos e indiretos de vulcões gigantescos, ela alterou radicalmente a composição de comunidades tanto marinhas quanto terrestres.
  • Após essa extinção Permo-Triássica, os répteis (e especialmente um ramo que inclui os ancestrais dos crocodilos e dinossauros) diversificaram-se e tornaram-se dominantes ecologicamente na maior parte dos nichos de organismos de tamanho médio a grande.
  • Durante o Triássico, surgiram muitas das linhagens típicas do mundo terrestre moderno (incluindo tartarugas, mamíferos, formas similares a crocodilos, formas similares a lagartos, etc.). Outros grupos que seriam muito importantes no Mesozóico, mas desapareceriam depois (como os pterossauros e, nos oceanos, ictiossauros e plesiossauros) evoluíram nesse tempo.
  • Os dinossauros foram inicialmente um componente menor nessas comunidades do Triássico. Apenas sauropodomorfos, altos e de longo pescoço, eram ecologicamente diversos durante essa época dentre os vários ramos de dinossauros. No entanto, um evento de extinção em massa ao fim do Triássico (essencialmente uma extinção Permo-Triássica em miniatura) permitiu aos dinossauros diversificarem enquanto seus competidores desapareceram.
  • Durante o Jurássico, os dinossauros diversificaram. Alguns cresceram até tamanhos gigantescos; alguns desenvolveram armaduras espetaculares; alguns tornaram-se os maiores carnívoros terrestres que o mundo já havia visto até então. Entre os dinossauros carnívoros menores, evoluiu uma cobertura isolante de penas (possivelmente a partir de uma forma mais antiga partilhada com todos os dinossauros). Entre os dinossauros com penas estava o ancestral das aves.
  • Outros grupos terrestres como pterossauros, ancestrais de crocodilos, mamíferos e insetos continuaram a se diversificar em novos hábitos.
  • Durante o Jurássico e (especialmente) o Cretáceo, uma grande transformação da vida marinha ocorreu. O fitoplâncton de algas verdes foi substituído por fitoplâncton de algas vermelhas (que continua a dominar os ecossistemas marinhos modernos). Uma ampla variedade de novos predadores - tubarões e raias avançados, peixes teleósteos, caramujos predadores, crustáceos com pinças poderosas, equinóides especializados, etc. - surgiu, e os filtradores sésseis de superfície que dominavam as comunidades marinhas rasas desde o Ordoviciano tornaram-se raros. Em seu lugar, formas mais móveis, natantes ou escavadoras tornaram-se mais comuns.
  • Durante o Cretáceo um grupo de plantas terrestres evoluiu as flores e os frutos e, assim, associou intimamente sua reprodução aos animais. Embora não imediatamente dominante, esse tipo de plantas eventualmente se tornaria o principal grupo de plantas terrestres.
  • O impacto de um asteróide gigante - associado a outras mudanças ambientais em curso - trouxe fim ao Mesozóico. A maior parte dos grupos de organismos de grande tamanho na terra e no mar e muitas formas de tamanho menor desapareceram. Os únicos dinossauros sobreviventes foram as aves sem dentes.
  • O início do Cenozóico viu o estabelecimento dos mamíferos como o grupo dominante entre os vertebrados terrestres de grande tamanho. Bem cedo os mamíferos colonizaram tanto o mar quanto o ar.
  • Durante seu início, o mundo Cenozóico foi quente e úmido, como o Cretáceo. No entanto, mudanças na posição dos continentes e o soerguimento de montanhas levaram o clima a resfriar e ressecar.
  • Conforme o mundo resfriava e secava, as grandes pradarias se desenvolveram (primeiro na América do Sul e, depois, em quase todos os outros continentes).
  • Vários grupos de animais adaptaram-se às novas condições de pradarias. Mamíferos herbívoros tornaram-se corredores ágeis com dentes de coroas altas, frequentemente vivendo em bandos para proteção. Predadores mamíferos tornaram-se mais ágeis também, alguns tornando-se caçadores em grupos.
  • Outras novas comunidades de plantas evoluíram e bem como novas comunidades de animais que as habitavam. A ascensão dos prados (dominados por plantas relacionadas a margaridas e gramas) viram a diversificação dos roedores do tipo rato-camundongo, muitas rãs e sapos, cobras avançadas, aves canoras, etc.
  • Um grupo de mamíferos arbóreos com cérebros bem grandes, comunidades sociais complexas e mãos preênseis - os primatas - produziu muitas formas. Na África, um ramo destes evoluiu de modo a viver nas margens mistas de florestas/savanas e desse ramo evoluiu alguns que se tornaram totalmente eretos e se deslocaram para as savanas.
  • Esse grupo de primatas manteve e desenvolveu a capacidade de usar ferramentas de pedra que seus ancestrais das florestas já possuíam. Muitos ramos evoluíram e alguns desenvolveram cérebros ainda maiores e ferramentas mais complexas. Foi a partir destes que os ancestrais dos humanos modernos e outros parentes próximos evoluíram e eventualmente espalharam-se da África para outras regiões do planeta.
  • Cerca de 2,6 milhões de anos atrás, vários outros fatores levaram às condições da idade do gelo, em que as geleiras avançaram e recuaram. Vários grupos de animais evoluíram adaptações a esses novos climas gelados.
  • Os primeiros humanos colonizaram boa parte do planeta; logo após sua chegada ao Novo Mundo, quase todas as espécies nativas de animais de grande porte desapareceram.
  • Em algum ponto antes que o ancestral em comum de todos os humanos modernos se espalhasse por todo o planeta, a habilidade de uma linguagem simbólica muito complexa evoluiu. Isso levou a muitas e muitas diversificações tecnológicas e culturais que mudaram muito mais rapidamente do que a própria biologia dos humanos.
  • No oeste da Ásia e no norte da África (e eventualmente em outras regiões), os humanos modernos desenvolveram técnicas de produzir alimentos sob circunstâncias controladas, levando à verdadeira agricultura. (Sabe-se que outras culturas desenvolveram de modo independente técnicas protoagriculturais.)
  • Essa revolução neolítica permitiu o desenvolvimento de comunidades mais fixas, especialização de habilidades individuais dentro da comunidade (incluindo soldados, metalurgistas, ceramistas, sacerdotes e, com o desenvolvimento da escrita, escribas).
  • A partir deste ponto iniciamos o registro escrito e assim os historiadores podem continuar a história...
Esta lista obviamente não é exaustiva e há muitos elementos que tive que ignorar para mantê-la relativamente curta. Ainda assim, espero que esta visão geral ajude a nos localizar, como espécie, nessa perspectiva mais ampla da longa viagem da Vida, uma viagem que pode ser traçada somente através do estudo dos fósseis.
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Outros blogues e sítios web que publicaram:
Love in the Time of Chasmosaurus
Oceans of Kansas Paleontology
Project Dryptosaurus
Pterosauria
RMDRC paleo lab
Saurian

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Elefante fóssil amazônico?

O jornalista Reinaldo José Lopes está cobrindo o VII Simpósio Brasileiro de Paleontologia de Vertebrados no Rio de Janeiro*.

Várias descobertas e estudos ainda não publicados são apresentados nessas reuniões. Uma das novidades é um dente fóssil - um molar de cerca de 15 cm de comprimento (dos quais cerca de 12 cm foram preservados) por 5 cm de largura - cheio de lamelas (estruturas em formas de lâminas) transversais.

Esse arranjo de dente só é conhecido entre elefantes (e parentes próximos) e capivaras (e parentes próximos).

Lopes descreve o achado na reportagem:
Folha: Garimpeiro acha dente de elefante no sul da Amazônia

Claro, o jornalista cravou elefante no título provavelmente pela confiança expressa pelo cientista que lhe apresentou o dente, o paleontólogo Mario Cozzuol da UFMG.

Cozzuol interpreta como sendo de um elefantídeo pelo tamanho - dentes de hidrocoerídeos (membros da família da capivara) conhecidos (incluindo os fósseis) têm cerca de 5 cm de comprimento por 1 cm de largura. E fósseis de elefantídeos foram descobertos na América Central. Não parece que seria uma maior dificuldade terem alcançado a América do Sul em sua porção norte.

Mas não dá para se descartar assim a hipótese de uma capivara fóssil de grandes proporções. São conhecidos fósseis de uma família próxima: dinomídeos - com crânio com o dobro do comprimento das capivaras.

Cozzuol aposta que seja dente do Mammuthus columbi, cujos fósseis são encontrados na América Central (até a Costa Rica).

Figura 1. Distribuição de fósseis de gênero Mammuthus na América do Norte. (Fonte: A Mammoth Site; B Mota e Calles 2007)


Por uma rápida análise da foto publicada na Folha, porém, contamos cerca de 8-9 lamelas por decímetro (i.e. a frequência lamelar é de cerca de 8-9). A frequência lamelar de M. columbi é de cerca de 4-7 para o molar 3 (verdade que há exemplares que chegam a 9 para o molar 1 superior). Por certo, outros elefantídeos têm frequência lamelar compatível com o dente encontrado - M. primigenius, p.e., tem uma frequência lamelar típica de 8-10.

No entanto, Richard White Jr., da International Wildlife Museum, observou, em um grupo de discussão sobre paleontologia de vertebrados, que a morfologia das lamelas parece mais compatível com uma capivara: apresentam uma curva sigmoide (em forma de "S") e duas delas parecem ter uma bifurcação - características de molares de capivaras, porém não de elefantídeos. (Claro que ele ressalva que é apenas uma interpretação em cima de uma foto publicada no sítio web do jornal.)

Na Figura 2, as fotos e ilustrações de molares para comparação.


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Figura 2. Painel superior, molar (figura G) de um hidrocoerídeo (Cardiatherium patagonicum): Vucetich et al. 2005. Painel central, dente amazônico não identificado (tentativamente atribuído a um elefantídeo, Mammuthus columbi, por Mario Cozzuol): Pedro Carrilho/Folhapress. (Setas indicam possíveis bifurcações) Painel inferior, molares de elefantídeos: Wikimedia Commons.

Em qualquer caso é uma descoberta que parece ser interessante. E somente estudos aprofundados poderão resolver a questão - eventualmente talvez até se descubra que seja uma espécie de um outro grupo (nunca subestime o poder da evolução convergente).

Obs1: Enquanto eu negociava a liberação da imagem da Folhapress, o jornalista Peter Moon, da Época, adiantou-se na publicação das informações. A Moon, Cozzuol reafirmou sua convicção de que se trata de um dente de elefantídeo. De fato, como também enfatizou White, a interpretação por fotografia, sem a posse do exemplar tridimensional, é altamente limitada.
Obs2: *Estava. O simpósio terminou dia 23/jul/2010.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Free Leviathan: parente da cachalote comia mesmo baleias?

ResearchBlogging.orgUma equipe europeruana de pesquisadores publicou uma descrição de um fóssil de baleia de dentes na revista Nature (Lambert et al. 2010).

Alguns título de notícias referindo-se ao achado:
Discover/Not Exactly Rocket Science: Behold Leviathan: the sperm whale that killed other whales
Estadão: Início do conteúdo Descoberto fóssil de baleia pré-histórica que devorava outras baleias
Folha Online: Cachalote gigante de 12 milhões de anos se alimentava de outras baleias

A nova espécie, batizada de Leviathan melvillei em referência ao monstro marinho bíblico Livyatan e também ao novelista americano criador de Moby Dick, Herman Melville foi identificada como pertencendo à mesma superfamília das cachalotes. É o maior fóssil do grupo já encontrado, mas seu tamanho estimado - entre 13,5 e 17,5 m de comprimento - é menor do que o das cachalotes atuais de maior tamanho - podendo chegar a cerca de 18 m de comprimento.

Mas o que chamou a atenção dos cientistas foi o tamanho dos dentes - alguns com mais de 36 cm de comprimento, contra cerca de 16 cm dos maiores dentes de cachalote. Dentes similares já eram conhecidos, porém é primeira vez que se encontra um crânio associado. A conformação do crânio (focinho mais curto e robusto) e dos dentes (relativamente grandes, pontiagudos, presentes nas maxilas superior e inferior e que se encaixam) lembram mais um predador do tipo orca - que caça focas, golfinhos, tubarões e baleias - do que do tipo cachalote - que se alimentam de lulas-gigantes a grandes profundidades.

Escrevem os autores: "Functionally able to feed on other groups of marine animals, including large fish, pinnipeds and odontocetes, Leviathan may have predominantly preyed on higher-energy content medium-size mysticetes, which would have provided the large amount of fat required to fulfil the high caloric demands of this huge endothermic aquatic predator". É um chute, um bom chute, mas não muito mais do que um chute que tenham se alimentados de baleias. Colocar isso no título e do modo como foi publicado em sites e jornais passa uma ideia de certeza que não há.

Na região em que se encontrou o fóssil - onde atualmente é o deserto de Pisco-Ica, no Peru -, há fósseis de baleias de barbatana de 5 a 18 metros de comprimento. Mas também há fósseis de tubarões gigantes. Não poderia o leviatã ter se alimentado de tubarões? (Sim, não são opções mutuamente excludentes.) Infelizmente apenas o material cranial foi descrito. O esqueleto pós-craniano poderia fornecer pistas sobre, por exemplo, a velocidade de nado do animal. Isso poderia sustentar ou refutar hipóteses a respeito do tipo de presas. Ou se, melhor ainda, houvesse vestígios da última refeição na região abdominal (infelizmente tais fósseis são bastante raros - ainda que haja um punhado deles no registro conhecido com conteúdo gastrointestinal preservado).

Outro detalhe é que possivelmente os autores terão que modificar o nome escolhido. Leviathan é um nome bom demais para ter escapado por tanto tempo de uso pelos paleontólogos. Esse gênero foi aplicado por Albert Koch em 1841 a uma espécie de mastodonte - originalmente grafou erroneamente como Levathan, mas corrigido em seguida. Mesmo que a espécie depois tenha sido transferida para o gênero Mammut, o nome não é liberado pelas regras da nomenclatura zoológica.

Referências
Koch, A. 1841. Description of the Missourium, or Missouri Leviathan; together with its supposed habits. And Indian traditions concerning the location from whence it was exhumed: also, comparisons of the whale, crocodile and Missourium, with the Leviathan, as described in the 41st chapter of the Book of Job. 2nd edition. Prentice and Weissinger, printers, Louisville, KY.

Lambert, O., Bianucci, G., Post, K., de Muizon, C., Salas-Gismondi, R., Urbina, M., & Reumer, J. (2010). The giant bite of a new raptorial sperm whale from the Miocene epoch of Peru Nature, 466 (7302), 105-108 DOI: 10.1038/nature09067

Upideite(26/ago/2010): O novo nome da baleia é Livyatan.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Morte apaga rastros da evolução

Robert S. Sansom e colaboradores da University of Leicester, R.U., provavelmente tiveram um dos laboratórios mais inabitáveis durante a condução dos experimentos: observar a decomposição de uma lampreia. Mike Rowe aprovaria.

No vídeo abaixo é possível se acompanhar as principais etapas - aproveite enquanto o Google não desenvolve vídeos com cheiro.



O que os autores descobriram é que há uma certa ordem no processo de decomposição desses organismos: características evolutivamente mais derivadas tendem a desaparecer primeiro, restando ao fim principamente características menos derivadas. (Figura 1.)

Figura 1. Processo de decomposição de lampreia e de anfioxo. Características mais derivadas tendem a desaparecer antes. Em estágio avançado do processo, ambos os organismos adquirem uma estrutura muito similar. Fonte: Sansom et al. 2010.

Uma possível consequência no estudo da evolução é que fósseis de organismos com características mais derivadas podem acabar parecendo-se com fósseis de organismos ancestrais. Isso pode fazer com que, na reconstrução de seu parentesco, ele seja posicionado em uma ramificação mais precoce. De uma consequência de maior alcance, isso pode afetar a calibração do relógio molecular - posicionando a ramificação em um tempo mais recente.

Claro, nada do tipo fazer um tiranossauro ficar parecido com um ser similar a uma lampreia, mas é interessante a contraposição do processo: se a ontogenia recapitula a filogenia (isso não é exatamente correto), a morte a desrecapitula (o que também não é exatamente correto, apenas para efeitos dramáticos).

No entanto, o trabalho dos paleontólogos, que já não era fácil, de interpretar o registro fóssil ganha mais um desafio, a velha máxima saganiana "ausência de evidência não é evidência da ausência" - o fato de um fóssil não exibir uma característica derivada pode ser simplesmente um viés de preservação. Se o processo fosse aleatório, então, na posse de uma coleção razoável de fósseis da mesma espécie (o que depende também de um certo golpe de sorte - um número muito grande de organismos extintos são conhecidos por um único fóssil), esperar-se-ia que, em uma estrutura estando presente no organismo vivo, fosse preservada em alguns dos espécimes e, se nenhum deles tivesse a estrutura, isso seria um bom indicador de que ela não estava presente na espécie. Infelizmente não é isso o que ocorre.

Não chega a ser o fim do mundo. Alguns espécimes excepcionalmente preservados podem ainda lançar luz sobre detalhes há muito idos, como o recente estudo de Zhang et al. (2010) que busca reconstituir a coloração de espécies de dinossauros a partir de detalhes celulares preservados - no caso, melanossomos, cujas diferentes morfologias indicariam o tipo de pigmento produzido pelas penas. Detalhes aqui.

Referências
Sansom, R., Gabbott, S., & Purnell, M. (2010). Non-random decay of chordate characters causes bias in fossil interpretation Nature DOI: 10.1038/nature08745

Zhang, F., Kearns, S., Orr, P., Benton, M., Zhou, Z., Johnson, D., Xu, X., & Wang, X. (2010) Fossilized melanosomes and the colour of Cretaceous dinosaurs and birds. Nature. DOI: 10.1038/nature08740

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