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quarta-feira, 13 de abril de 2011

Data venia: uma respeitosa discordância

Roberto Belisário, em seu Ciências e Adjacências, publicou duas postagens comentando a respeito de um video com o médico sueco Hans Rosling que fez algum sucesso na internet há não muito tempo (ou, no Paleógeno, se contarmos pelo calendário web de desatualização de notícias).

São basicamente três pontos de questionamentos:
a) a origem e confiabilidade dos dados referentes a países em época em que ainda não se constituíam como tal;
b) o uso de escala logarítmica para linearizar o gráfico levaria a uma visão errada da evolução dos dados;
c) uso do PIB e da expectativa de vida ao nascer como indicadores socioeconômicos e de saúde.

Como se estima a economia e a saúde de tempos remotos? (E de países que ainda não existiam?)
Belisário questiona os dados anteriores a 1900 (os mais antigos usados na análise de Rosling remontam a 1810) uma vez que muitos dos países incluídos na análise não existiam como tal nessa época. Apresenta mapas que reconstituem as fronteiras e as divisões, de fato, não correspondem aos territórios atuais.

Embora haja dificuldades técnicas de reconstituição de parâmetros antigos, eles não são impossíveis. É possível se estimar até mesmo o produto interno bruto de tempos pré-históricos. Claro que são estimativas bem grosseiras: as barras de erro associadas serão bastante grandes. A modelagem histórico-econômica, ainda que sujeita a muitos problemas, de modo geral, segue o mesmo princípio da modelagem de sistemas físicos que sofrem evolução temporal: como modelar a evolução de galáxias a partir de dados atualmente disponíveis - atualizam-se alguns princípios para o funcionamento de sistemas similares no passado e aplicam-se alguns dados de regressão, comparando-se com os disponíveis dos registros da época.

Não haverá, claro, dados pormenorizados como os atualmente disponíveis - e mesmo os dados atuais a respeito de contas nacionais e outros parâmetros estão bastante sujeitos a falhas e até mesmo a fraudes. Mas a partir de variáveis proxy (grosso modo, variáveis - de mais fácil acesso - que indicam o comportamento das variáveis de interesse - mas de acesso mais dificultado) ou mesmo a partir de dados parciais é possível se fazer a estimativa. Por exemplo, se tivermos o registro de vendas de, digamos, especiarias de algumas cidades importantes - tendo como base a importância econômica das especiarias, é possível se fazer um chute mais ou menos calibrado do tamanho total da economia de uma colônia (ou do 'embrião' de um país vindouro).

Tamanhos de população e rendas de alguns indivíduos, p.e, são mais fáceis de se estimar. A partir dos dois é possível de se ter alguma ideia do PIB de uma região em um dado momento histórico.

Indicadores de longevidade podem ser obtidos, em tempos históricos, a partir de tábuas de registros de nascimento e morte; em locais em que tais dados não estão disponíveis, a partir do estudo forense (dentição e ossatura principalmente) e censitário (a estrutura populacional dos restos humanos indicando a constituição da população viva) de tumbas e locais de enterro.

Escala logarítmica cria ilusões de óptica?
Se bem interpretadas, esse risco é minimizado. A linearização obtida é visualmente mais fácil de se acompanhar, mas esse processo por si só *não* gera falsas correlações.

Figura 1. Evolução da expectativa de vida x PIB per capita em diferentes países do globo. Paineis superiores: escala logaritmica. Paineis inferiores: escala linear. Fonte: Gapminder

(Veja ainda que mesmo que descartássemos os dados mais antigos por incertos, temos a mesma tendência de 1901 a 2009 - um aumento do número de países ricos e um aumento generalizado da expectativa de vida.)

O PIB per capita e a expectativa de vida ao nascer são bons indicadores?
A resposta é: depende do que se está querendo medir. Nenhum indicador é perfeito, mas os dois são indicadores amplamente utilizados de nível socioeconômico e de saúde. São dois dos principais componentes do IDH (ao lado do grau de escolaridade).

Belisário observa muito bem que houve um enorme aumento na disparidade de renda entre os países mais ricos e os mais pobres - Rosling comenta no video analisado que há ainda uma enorme diferença de renda -, mas podemos sim falar que o mundo está mais rico: indicado pela média. E observamos que há menos países concentrados na região de menor renda per capita. E pode se dizer que o mundo está mais saudável: aí todos os países mudaram de patamar. A *menor* expectativa de vida (cerca de 40 anos) em 2009 corresponde à *maior* expectativa de vida em 1800s.

Neste aspecto tanto Belisário quanto Rosling estão certos. A diferença é na ênfase em um ou outro aspecto.

No entanto, negar uma conclusão geral de que o mundo está mais rico e saudável com base em que houve um aumento na disparidade entre os mais ricos e os mais pobres remete à mesma linha de argumentação dos negacionistas climáticos (coisa que Belisário não é nem de longe, note-se).

Senão vejamos, seria como negar que há uma tendência de aumento da temperatura média global na região da troposfera com base em que o que há é uma maior disparidade entre as temperaturas máximas e mínimas (na realidade, ocorre ambos - tanto a média aumentou quanto a amplitude).

Negar que estejamos mais ricos e saudáveis porque os dados mais remotos não são os melhores e não correspondem aos países de hoje corresponde a negar que a temperatura global média aumentou porque os dados de temperatura do passado são mais imprecisos do que os dados atuais - às vezes recorrendo a verificações indiretas como a proporção de isótopos em bolhas presas no meio do gelo das calotas polares ou espessuras de aneis de crescimento em árvores - e os pontos de coletas não correspondem em sua maioria às estações meteorológicas atuais.

Por outro lado, constatar que estamos mais ricos e saudáveis não é imaginar que essa evolução tenha se dado simplesmente por causa do passar do tempo - o papel do avanço da medicina (notadamente da vacinação e antibióticos) e da disponibilidade de alimentos (com a chamada revolução verde) é bem conhecido (bem como os efeitos colaterais como a seleção de linhagens resistentes de agentes etiológicos e a poluição de corpos d'água com fertilizantes e contaminação de humanos com agrotóxicos). Nem negar a situação dramática por que passam diversos povos e nações, privados sobretudo desses referidos avanços: assistência médica adequada e alimentação saudável.

Agora, Rosling pode estar sendo um pouco otimista demais ao sugerir que essa tendência mantida até os dias de hoje deva prosseguir no futuro. Muitos desses avanços deram-se às expensas da capacidade de regeneração do ambiente; e, em muitos países mais ricos, a hiperabundância de alimentos ameaça a saúde por problemas cardiovasculares e de obesidade. Além disso, a África subsaariana é fustigada como nenhuma outra região pela Aids - que provocou uma queda brutal da expectativa de vida de diversos países. Aliás, pelo gráfico vemos bem como essa região é a que mais inspira cuidados - explorada até recentemente pelo colonialismo europeu, vítima de ferozes ditaduras, golpes e guerras civis (em boa parte como legado do colonialismo anterior), negligenciada desde então e agora novamente alvo de olhos e investidas cobiçosas de potências emergentes como a China e o Brasil como fonte de matérias-primas e combustíveis. Mas até por isso Rosling condiciona esse futuro ainda mais rico e saudável a: paz, tecnologia e assistência.

Upideite(19/abr/2011): Belisário fez outra postagem em resposta a esta.

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