Lives de Ciência

Veja calendário das lives de ciência.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Ciência: coisa do diabo?

Não, não é. Mas é engraçada a quantidade de fenômenos naturais ou matemáticos que recebem uma denominação que os associa com o tinhoso, o cão sarnento, o belzebu, o rabudo, o chifrudo, o satanás, o anjo rebelde, o príncipe das trevas, o pé-de-cabra, o lúcifer, o demo, o canhoto, o coisa-ruim, o malino... bem, acho que você entendeu a quem me refiro. (@ju_galak nos comentários acrescenta: caramunhão e sem sombra; @joeysalgado: mefistófeles.)

Mais uma das séries de compilações pouco úteis:

- Caverna do diabo: Nome de diversas cavernas brasileiras. Uma das mais famosas fica no município de Eldorado, SP.

- Cubo diabólico (diabolic cube, diabolical cube): dissecção policúbica em 6 peças de um cubo 3 x 3 x 3.
A figura ao lado (tirada de Wikimedia Commons) é de um policubo formado por cinco cubículos (pentacubo) unidos pelos lados. O problema do cubo diabólico consiste em dividir um cubo formado por 3 x 3 x 3= 27 cubículos em 6 peças de policubo (naturalmente não terão todos o mesmo tamanho).


- Curva do diabo (devil's curve ou devil in two sticks):

Gráfico da função cartesiana: y4 - a2y2 = x4 - b2x2



Figura ao lado: Weisstein 2003.





- Demônio de Descartes: criatura imaginária concebida por Descartes em suas Meditações sobre Filosofia Primeira que poderia, em princípio, ser a causadora da ilusão da existência do filósofo. Mas Descartes pondera que, mesmo que tudo o que ele vê, sente e pensa, fosse fruto da ação desse demônio, isso significaria apenas que tudo em que ele acredita não é verdadeiro, mas ele só poderia ser enganado se existisse de verdade - então ao menos sua própria existência estaria assegurada, sustentando assim sua famosa conclusão: cogito, ergo sum.

- Demônio de Laplace (Laplace's demon)**: intelecto que, sabendo em um dado momento os valores de todas as forças atuantes e as posições de todos os corpos do universo, saberia dizer exatamente como seria a natureza em qualquer ponto passado, presente e futuro.

- Demônio de Maxwell (Maxwell's demon): criatura imaginária concebida por James Clerk Maxwell que ajudaria a violar a segunda lei da termodinâmica.

O demônio de Maxwell controlaria uma porta que separa dois compartimentos. Pela porta, o demônio deixaria passar apenas partículas com velocidade acima de um determinado valor e apenas em um direção. Assim, o demônio faria com que, através dos movimentos aleatórios das partículas nos compartimentos, fosse gerada uma diferença nas temperaturas entre os dois compartimentos, inicialmente a temperaturas iguais (com partículas com velocidades médias idênticas) - isto é, criaria um desequilíbrio termodinâmico a partir de uma situação de equilpibrio termodinâmico sem gasto de energia.

(Mas os cientistas não entregaram os pontos tão facilmente: o próprio demônio geraria entropia ao observar as moléculas - e decidir quais seriam admitidas através da porta - e controlar o mecanismo; além de interagir com as moléculas do gás. Os compartimentos poderiam, assim, ter temperaturas finais diferentes, mas o sistema: compartimentos-porta-demônio, teria um aumento geral da entropia ao final do processo.)

- Demônio de Mendel (Mendel's demon)*: criatura imaginária concebida por Mark Ridley que, de modo benigno, controla o comportamento dos genes, evitando que entrem em conflito e evita o acúmulo de mutações deletérias. É uma metáfora do resultado do surgimento da reprodução sexual - com a separação dos cromossomos homólogos na formação dos gametas e sua passagem aleatória para as células-filhas. Esse processo cria uma incerteza quanto ao ambiente genético que a cópia de um gene puramente egoísta herdará, reduzindo sua vantagem.

- Diabo-da-tasmânia (Tasmanian devil):

Marsupial carnívoro da Tasmânia.

Imagem ao lado: Wikimedia Commons.



- (Dust devil, dancing devil, sun devil, desert devil, dancing dervish, dust whirl): redemoinho de areia.
Hábitat dos sacis. Os árabes chamam o fenômeno de djin (gênio).

Sua passagem pode causar uma variação abrupta do campo elétrico da atmosfera: dust devil effect.

Foto ao lado: Wikimedia Commons.




- Escadaria do diabo (devil's staircase):

Gráfico de função contínua de crescimento monotônico (contínuo e limitado) cujos platôs mais extensos correspondem a números racionais mais simples: como 1/2, 2/3, 1/5...

A definição precisa é muito mais complexa. Um uso prático dessa função aqui.

Figura ao lado: Su et al. 2007.

Também: nome de cachoeira no estado de Oregon, EUA; trilha de montanha na Escócia.


- Níquel: o nome do metal vem do alemão Kupfernickel - literalmente demônio do cobre. Seu minério a nicolita (composto basicamente de arsenieto de níquel), assemelha-se ao cobre.

- Peixe-diabo: denominação popular de várias espécies de Lophiiformes, também conhecidos como peixe-pescador. Em inglês, 'devil fish' designa a arraia-jamanta.

Figura ao lado: Wikimedia Commons.


- Quadrado diabólico (diabolic square, diabolical square, diabolical magic square, panmagic square, pandiagonal magic square): quadrado panmágico.

Um quadrado mágico é um quadriculado em que se dispõe números naturais consecutivos - geralmente a partir de um - sem repetição em cada quadrículo de modo que a soma dos valores em cada linha, coluna e diagonais principais resulta em um mesmo número: o número mágico. No quadrado panmágico o mesmo número mágico é obtido também pela soma das quadrículas nas diagonais quebradas (soma dos cantos dos quadrados não unitários formados por um subconjunto de quadrículas do quadriculado original).

Na figura acima (extraída de Wikimedia Commons): o número mágico é 34, p.e., a soma dos valores da primeira coluna 3+13+2+16 é igual à soma dos valores da terceira linha 2+11+14+7 = 34. A soma dos valores dos cantos do quadrado (2x2) 3+10+13+8 = 34; assim como a do quadrado (3x3) 8+12+5+9 = 34.

- Quebra-cabeça da agulha do diabo (devil's needle puzzle, baguenaudier, Chinese rings, Cardan's suspension, five pillars puzzle):

Quebra-cabeça mecânico em que se deve remover uma corda presa a uma série de hastes conectadas por um anel.



Figura ao lado: Wikimedia Commons.






*Upideite(29/jan/2009): acrescentado a esta data.
**Upiteide(21/fev/2011): acrescentado a esta data.

Referências
Su, Francis E., et al. 2007. "Devil's Staircase." Mudd Math Fun Facts. http://www.math.hmc.edu/funfacts.
Weisstein, E.W. 2003. CRC Concise Encyclopedia of Mathematics. CRC Press, 3.242 pp.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Asas às cobras

Não são cobras. São parentes relativamente distantes: mais próximos dos jacarés e parentes ainda mais próximos de outros répteis voadores - os pterossauros. Os dinossauros são o segundo grupo de vertebrados a apresentarem membros capazes de voar. (O terceiro são os morcegos. Em todo o reino animal, apenas mais um grupo, pelo que sabemos, conquistou o ar - os insetos.)

O leitor deste blogue (sim, incluo no genérico masculino a parte feminina do grupo) certamente sabe que as aves são um tipo de dinossauro, como os morcegos são um tipo de mamífero. Certamente sabe dos achados relativamente recentes - desde o fim do século passado - de dinossauros não-aviários com penas e protopenas. Uma pequena surpresa (mas não de toda imprevista) foi que aparentemente, de início, as penas formaram uma superfície aerodinâmica não apenas nos membros anteriores - formando as familiares asas -, mas também nos membros posteriores - o que faz com que muitos paleontólogos considerem-no como segundo par de asas. A descoberta desse detalhe anatômico foi feita por Xu et al. 2002 com o Microraptor gui, um pequeno diossauro terópodo (grupo que inclui os mais famosos tiranossauros) manirraptor (grupo que inclui os também famosos velocirraptores).

Há muita discussão ainda sobre como reconstituir o funcionamento desse possível segundo par de asas.

Chatterjee & Templin (2007) consideram que a configuração em biplano seria anatomicamente mais factível e aerodinamicamente mais eficiente: os membros posteriores se dobrariam sob os membros anteriores (formando, em vista lateral, um Z - vide Figura 1).

Figura 1. Posição das asas de Microraptor gui em dois planos. Figura editada de: Chatterjee & Templin 2007.

Outros, como seus descobridores Xu et al. 2002, interpretam as duas asas como dispostas em tandem - como em uma libélula. A aerodinâmica dessa configuração, bem como a do modelo biplano, foram testadas por Alexander et al. 2010 (veja Video 1).


Video 1. Teste de desempenho de modelo. Posição das asas de Microraptor gui em um mesmo plano.

Segundo Alexander et al. 2010, os dois modelos apresentam uma eficiência equivalente no planeio, mas o modelo biplano exige uma distribuição desfavorável de peso.

Como as duas configurações se sairiam em um vôo verdadeiro? Chatterjee e Templin (2007) fizeram uma simulação em computador com modelo aerodinâmicos disponíveis para animais modernos. Mas apenas para a configuração de biplano.

De todo modo, ambos os estudos privilegiam o Microraptor gui como um animal planador em lugar de um organismo capaz de voar e concordam que as asas posteriores tornariam uma locomoção terrestre bastante prejudicada.

Como curiosidade, em 1915, foi aventada a hipótese de um ancestral com quatro asas - denominado de Tetrapteryx (Figura 2).

Figura 2. "Tetrapteryx" hipótetico ancestral das aves com quatro asas imaginado por Beebe 1915. Fonte: Wikimedia Commons.

Mas sejam dinossauros/aves, morcegos ou pterossauros, nos tetrápodos, as asas são modificações dos membros anteriores (e posteriores no caso dos dinossauros com quatro asas). Poderiam as cobras criarem - evolutivamente falando - asas, uma vez que não possuem braços ou pernas (salvo o par de ganchos pélvicos nos machos de algumas espécies)?

Alguns lagartos, como o dragão voador, possuem costelas expansíveis que formam um superfície aerodinâmica que permitem o planeio; há mesmo uma cobra planadora, que se achata ao expandir suas costelas (do gênero Chrysopelea, chamada de cobra-voadora, embora não voe de verdade), a naja e a cobra-rei possuem costelas modificadas expansíveis que formam um capelo característico perto da cabeça (sem relação com planeio ou vôo, no entanto). Em um futuro evolutivo totalmente hipotético (e seguramente pesadelar para um bom número de pessoas), serpentes poderiam deixar de rastejar com asas desenvolvidas a partir de costelas modificadas.

Referências
Alexander, D., Gong, E., Martin, L., Burnham, D., & Falk, A. (2010). Model tests of gliding with different hindwing configurations in the four-winged dromaeosaurid Microraptor gui Proceedings of the National Academy of Sciences DOI: 10.1073/pnas.0911852107

Beebe, C. W. A. (1915). "Tetrapteryx stage in the ancestry of birds." Zoologica, 2: 38-52.

Chatterjee, S., & Templin, R. (2007). Biplane wing planform and flight performance of the feathered dinosaur Microraptor gui Proceedings of the National Academy of Sciences, 104 (5), 1576-1580 DOI: 10.1073/pnas.0609975104

Xu, X., Zhou, Z., Wang, X., Kuang, X., Zhang, F., & Du, X. (2003) Four-winged dinosaurs from China. Nature, 421(6921), 335-340. DOI: 10.1038/nature01342

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

A incrível geleira que não derreteu (ou derreteu?)

É um problema sério. Uma comida de bola, sim. Ponto.

No caso das taxas de degelo do Himalaia não se seguiu o rigor usual necessário. Não se utilizou os melhores dados científicos disponíveis. Sim, o relatório do IPCC é uma obra complexa e, como tal, sujeita a erros. E erros não saem de graça.

Arranha a imagem. Sim. Ponto.

Agora, não é o fim do mundo para o relatório. As principais conclusões seguem firmes e fortes. Inclusive os dados ainda apontam, sim, para o derretimento das geleiras himalaias - só que não à taxa sugerida no IPCC 4.

Upideite(22/jan/2010): Uma boa análise do caso no blogue Ecopolítica do jornalista Sérgio Abranches.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Malvedere

Terminou mal a edição 2009 do prêmio Veolia Environment Wildlife Photographer of the Year (anunciado aqui neste blogue ano passado).

O vencedor havia sido o espanhol José Luis Rodríguez com sua fotografia de um lobo saltando o portão de uma fazenda à noite.

Mas a organização do concurso concluiu, após denúncia, que o fotógrafo havia burlado as regras do concurso - fraudado - ao usar um lobo treinado de zoólogico. O acusado nega.

Se verdade, muito triste isso. O prêmio era interessante - dez mil libras -, mas é relativamente pouco para alguém sujar sua reputação.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Patrulha purista vocabular 5

Certa vez propus ao pessoal da editoria de Ciências da Folha a criação de um catálogo interno de termos a serem evitados a todo custo nas reportagens. A sugestão foi bem recebida. (Não sei como está a implementação.)

Um termo que deveria ser banido - seria para ser usado com muuuuuuito cuidado, mas o melhor é evitar por completo, já que os casos especiais em que seria justificável o uso não compensam os riscos do mau uso - é "primitivo" para se referir a organismos atuais (e muitos antropólogos também gostariam que fosse vetado o uso para se referir a povos atuais que não apresentam uma cultura tecnológica tão desenvolvida como a nossa).

Vou usar como exemplo uma reportagem recente da própria Folha a respeito da capacidade de abstração matemática de macacos resos. Vai no próprio título da matéria: "Macaco primitivo aprende conceitos de matemática".

Em seu mais recente livro: "The greastest show on Earth" (editado no Brasil pela Cia. das Letras: "O maior espetáculo da Terra"), Dawkins lista 5 concepções errôneas por trás das expressões "superior" e "inferior", que se ajusta à noção de "avançado/evoluído" e "primitivo". Em relação, p.e., à frase: "Macacos são superiores às minhocas", poderíamos ter as seguintes interpretações, todas equivocadas:

1. 'Macacos evoluíram de minhocas'. Errado. Macacos e minhocas partilham um ancestral em comum - juntamente com muitos outros organismos. Macacos e minhocas não evoluíram um do outro, mas cada um evoluiu a partir desse ancestral em comum. (Em uma comparação familiar, dizer que João é parente de Pedro, digamos são irmãos, não implica que João seja descendente de Pedro ou vice-versa, mas sim que ambos partilham um ancestral em comum, no caso, a mãe - e ambos foram gerados pela mesma mãe. Se compararmos primos, ambos terão a mesma avó e/ou o mesmo avô.)

2. 'O ancestral em comum entre macacos e minhocas era mais parecido com uma minhoca'. Para esse uso Dawkins faz uma conceçãoconcessão. Em alguns casos, um dos ramos sofre mesmo uma menor modificação morfológica em relação ao ancestral em comum - mas isso não é necessariamente verdadeiro.

3. 'Macacos são mais espertos (ou mais bonitos, um genoma maior, um plano corporal mais complexo, etc.)'. Para Dawkins (e para mim) isso é uma visão esnobe. Dar importância a uma dada característica em detrimento a outra não tem nada de objetivo. Protozoários possuem cérebros menores (na verdade não possuem) do que mamíferos, mas alguns protozoários possuem um genoma muito maior (essa dissociação entre tamanho do genoma e complexidade morfológica é chamado de paradoxo ou enigma do valor de C - em que C representa o conteúdo genômico nuclear da célula).

4. 'Macacos são mais parecidos com humanos do que as minhocas'. Antropocentrismo insustentável. Por que os humanos seriam o padrão de julgamento a respeito da evolução? Humanos possuem cinco dedos, sendo nesse aspecto, mais parecidos com os ancestrais dos tetrápodos atuais (tirando os muito mais antigos que tinham seis, oito ou mais dedos em cada 'mão'), do que, por exemplo, cavalos, que possuem apenas um dedo funcional em cada pata.

5. 'Macacos (e outros animais 'superiores') são mais capazes de sobreviver do que as minhocas (e outros animais 'inferiores'). Bem, todas as espécies atuais são sobreviventes. Além disso, várias espécies de macacos encontram-se ameçadas de extinção.

(Outras interpretações igualmente equivocadas poderiam ser acrescentadas.)

Veja que o título da manchete não perderia nada em informação se fosse simplesmente: 'Macaco aprende conceitos de matemática', se quiser ser mais específico: 'Macaco reso aprende conceitos de matemática'. O termo 'primitivo' é inútil e, pior, desinformativo. Nos 25 milhões de anos que separam as nossas linhagens, os macacos resos não ficaram parados evolutivamente. A figura abaixo representa uma filogenia molecular dos primatas. Repare que a distância horizontal de Macaca mulatta (a espécie do macaco reso) até o ponto de ramificação em relação à linhagem que daria origem aos humanos é a mesma distância que separa os humanos desse ancestral - como a distância está calibrada para refletir as alterações do gene considerado, isso significa que houve o mesmo grau de mudança a partir do ancestral em comum nas duas linhagens. (Veja que em outros organismos o comprimento é maior - e poderia ser menor, como é nosem certos ramos omitidos da figura original.) Se o macaco reso tivesse se congelado no tempo, seu ramo seria muito mais curto.

Figura 1. Filogenia molecular de primatas símios (catarrinos + platirrinos). O triângulo indica o ponto de divergência entre as linhagens que deram origem ao macaco reso e aos humanos. Filogenia com gene nuclear IRBP. Fonte: Poux & Douzery 2004.

Referência
Poux, C & Douzery, E.J.P. 2004 - Primate phylogeny, evolutionary rate variations, and divergence times: A contribution from the nuclear gene IRBP. AJPA 124(1): 1-16. Disponível em: http://www3.interscience.wiley.com/journal/104549040/abstract

Meninas, vocês namorariam este cara?

Os raros (e qualificados) leitores mais assíduos deste blogue devem ter notado que o Semciência é uma fonte constante de pautas para as postagens aqui.

Por lá que tomei conhecimento desta reportagem da Folha Online sobre este estudo aqui, feito pelo estudante de doutorado da University of Warwick, Peter Backus. (Garotas, deem uma olhada na figura, no currículo dele e respondam se vocês namorariam o rapaz. Ok, sem preconceitos, garotos também podem responder.)

O estudo se baseia na equação de Drake que tenta estimar o número de civilizações inteligentes no Universo (ou em nossa galáxia), mas aplicada para as chances de se encontrar um par amoroso.

Diligentemente, Backus identifica suas preferências pessoais, a fração da população que corresponde a cada uma dessas preferências e procede a uma simples operação de multiplicação.

A vantagem de se usar tal procedimento no cálculo das chances de se encontrar alguém interessante no planeta em vez de no Universo é que, para a maioria dos fatores, no primeiro caso é possível se estimar valores com base em dados reais, já no segundo caso, para vários fatores cruciais (como o número de planetas com vida) só podemos ainda chutar algum valor. Ao fim de todo o trabalho, Backus chega a um decepcionante resultado de 0,00034% de chance de encontrar um par dentro de suas especificações (que não são tão restritivas quanto esse número parece indicar) ao longo de sua vida em uma noitada em Londres.

Porém, notemos que Backus é economista. Na verdade, sua modelagem para encontros é biologicamente irrealista. Podemos chamar o modelo totalmente casualizado de Backus para encontrar um par de "modelo cinético" (Joey Salgado, nos comentários, sugere outro nome: "modelo boltzmanniano"*) - encontros aleatórios como o de moléculas em uma reação química. Para a felicidade geral, inclusive de Backus, isso *não* é o que acontece. Do contrário, as espécies com reprodução sexual estariam extintas há muito tempo.

O leitor ou a leitora antirromântica poderia objetar: "Mas alto lá! Isso apenas indicaria que as pessoas acabam formando par com pessoas por quem não se sentem tão atraídas". É verdade que muitos casais não apresentam o mais alto grau de afinidade, porém mesmo assim o solteirão não-convicto pode ter muito mais esperanças.

Em primeiro lugar, os encontros *não* são aleatórios. Se o critério for de se encontrar pessoas com afinidades socioeconômicas, a dinâmica social faz com que seja muito mais provável que encontremos com pessoas com condições socioeconômicas similares: Backus, como economista, deve frequentar simpósios e congressos de economia, onde encontrará vários outros (e, para o interesse dele, outras) economistas. O fato de eu manter este blogue, faz com que eu mantenha contato (ainda que na maior parte das vezes por meios eletrônicos) com várias pessoas com interesses em ciências. Mas há muito mais do que isso.

Como sapas encontram parceiros? É preciso que seja da mesma espécie para começo de conversa. E, mais do que isso, é preciso atender a critérios importantes: se a sapa se acasala com um sapo da mesma espécie, mas que não tenha uma constituição genética que favoreça a prole, a sapa corre sérios riscos de ter uma descendência que esteja em desvantagem em relação aos filhotes de outras sapas que se acasalaram com machos com melhor constituição genética ("melhor" aqui no sentido de que aumentem as chances de sobrevivência até a idade reprodutiva - por exemplo, versões de genes que aumentem a capacidade imunológica ou de escape à predação). A sapa não irá aplicar a equação de Drake-Backus, não irá aplicar um questionário padrão, nem irá se inscrever no Perfect(Toad)Match.com. É possível até que ela faça escolha de modo totalmente automático. Kentaro Mori destrincha alguns mecanismos de *comunicação* biológica. Muitos sapos machos cantam à beira do lago - e não sobre seus hábitos higiênicos suspeitos a respeito de seus pés -, esse canto leva informações bastante interessantes às fêmeas: 1) localização (ahá! não é preciso mais sair catando papel em ventania), 2) espécie (o acasalmento será compatível), 3) constituição genética (entre outras coisas, cantar envolve um gasto energético considerável - é o que os biólogos chamam de sinalização honesta, não dá para fingir que é capaz de cantar -, certas características sonoras podem ainda indicar o tamanho do emissor ou estar associadas com aspectos não-físicos).

A comunicação afasta ainda mais da realidade um modelo cinético puro. E humanos, queiram ou não, também emitem comunicação o tempo todo - inclusive sobre sexo. Feromônios, proporções corporais, modo de se vestir e de caminhar, etc. tudo isso se constitui em comunicação não-verbal processada por quem está à procura de parceiros potenciais. (Sem falar em anúncios explícitos como nos sítios de relacionamento.) Um equivalente humano do coaxar pode ser, por exemplo, um carango turbinado - as garotas podem achar tremendamente cafona, mas sabem avaliar os custos envolvidos (sim, nem todas, nem todas).

Então, Backus, lamento, mas sua desculpa de vítima da estatística não cola. Estar desacompanhado sendo uma pessoa com características atraentes às mulheres ou é coisa de solteirão convicto (como Charlie Harper) ou é sinal de que possui alguma outra característica negativa que sobrepuje a atratibilidade (não necessariamente algo repugnante - pode ser excesso de timidez, p.e.). Ou então, pode ser coisa de gênio do automarketing amoroso - agora é uma pessoa famosa, com um trabalho não-publicável em revistas científicas padrão comentado em diversos veículos. Afinal, até assassinos perigosos reconhecidos conseguem parceiras. Resistirei à tentação de sugerir que, em último caso, tente se lambusar de chocolate, fazer um pouco de ginástica, inventar jeans mais largos, e se libertar do celular e da TV de plasma. (Não sei se o resultados dessas pesquisas revelam mais do famoso humor britânico ou se realmente revelam que príncipe Charles, afinal, seja um britânico típico.)

*Upideite(20/jan/2009): atualizado a esta data.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Lagartos brancos e a praga da teleologia

(Atenção, leitor desavisado ou leitora desavisada, eu disse teleologia não teologia.)

Uma reportagem do New York Times, reproduzida pela Folha Online, fala a respeito da evolução da coloração de lagartos que colonizaram dunas de areia branca. (A reportagem do NYT é mais completa, com figuras e link para o trabalho original.)

A matéria destaca um aspecto banal em termos científicos: os lagartos que colonizaram as dunas, descendentes de variedades de cores escuras, apresentam cores mais claras que seus parentes que ocupam os arredores - com cores de fundo mais escuras. Isso é tão esperado que a Dra. Rosenblum (a principal autora do artigo) diz: "É óbvio o que aconteceu". Mas esse destaque não é de todo despropositado, já que a comunicação se volta para um público mais amplo, que inclui, sabidamente, uma fração considerável de pessoas que desconhecem a teoria da evolução e os fatos que a sustentam.

O meu destaque vai para a escorregada dada pela pesquisadora (licença poética abusiva?): a linguagem finalista. Ela assim explica o óbvio: "Todos ficaram brancos para que pudessem fugir de seus predadores com mais facilidade". É uma linguagem finalista, teleológica: branco *para* fugir. Como se a evolução tivesse algum tipo de presciência. Ou que os lagartos fossem capazes - como o camaleão - de mudar sua coloração a seu bel-prazer. De quebra ainda passa a impressão de que a evolução é um fenômeno individual: um lagarto A, de cor escura, muda para um ambiente de cor clara, e esse mesmo lagarto A adquire uma cor clara.

Em um frase, bate de frente com toda a diferença de pensamento evolutivo estabelecida a partir de Darwin e Wallace.

Só mais abaixo na reportagem entra-se no cerne do mérito do estudo - a ocorrência da evolução e a direção em que ela ocorreu não são novidades, nem mesmo a velocidade dessa mudança - ao estudar as populações de três espécies diferentes que passaram pelo mesmo processo geral, encontraram que o mesmo gene (envolvido na produção de melanina, claro) estava alterado nas populações claras de duas espécies. Qual a importância disso? A importância é que lança luz sobre o processo de evolução convergente: a evolução de uma mesma característica de modo independente por linhagens distintas. (Figura 1.)

Figura 1. A - Formas claras e escuras das espécies analisadas de lagartos. Em cima, as formas claras - da região das dunas; abaixo - as formas escuras - das regiões do entorno, com solo mais escuro; mais abaixo - código da posição e dos aminoácidos alterados nas formas claras, em relação às formas escuras, na proteína MC1R. B - Esquema da proteína de membrana MC1R. Pontos escuros indicam as posições de mutação nas formas claras.*

Mas os pesquisadores analisaram em mais detalhes. Embora o mesmo gene tivesse sido alterado, as alterações eram distintas.

O gene alterado é o que codifica o receptor de melanocortina do tipo 1 (MC1R ou Mc1r). Melanocortinas formam uma classe diversa de hormônios peptídicos - como o hormônio adrenocorticotrópico, ACTH, (que estimula a produção de cortisol pela glândula adrenal, bem como androgênios - está ligado á resposta ao estresse) e o hormônio estimulante de melanócitos, MSH, que está ligado à pigmentação. O MSH se liga ao MC1R, que dispara uma série de reações na célula, levando à produção de melanina - tornando a pele mais escura.

O gene Mc1r (os genes recebem o mesmo nome da proteína que codificam - quando se conhece o produto gênico associado -, mas são grafados em itálico) em uma das espécies sofreu uma alteração tal que a proteína MC1R tinha dimuída sua capacidade de disparar os eventos subsequentes à ligação da MSH no receptor (transdução). Em outra espécie, a alteração no Mc1r fez com que a proteína MC1R deixasse de se integrar à membrana celular de modo adequado. O resultado em ambos os casos era uma resposta dimuída à presença de MSH, levando a uma menor produção de melanina no final. Até aí, morreu Neves: dá na mesma.

Dá na mesma? Não. A mutação que levava à diminuição na capacidade de transdução tem um comportamento recessivo - quando uma das cópias é do tipo normal, a coloração é normal, somente quando as duas cópias são mutadas, o indivíduo é branco. Já a mutação que levava à diminuição na capacidade de integração à membrana tem caráter dominante - a presença de uma cópia normal ao lado da mutante leva à produção de uma cor clara, somente se as duas cópias são selvagens, a coloração é escura.

A explicação disso provavelmente é que, como os receptores se dimerizam - isto é, ligam-se em pares -, quando um receptor que não se integra na membrana se liga a outro que seria capaz de se integrar, ambos ficam retidos no interior da célula: assim, o estado de caráter "não se ligar à membrana" domina sobre o estado "ligar-se à membrana" e, consequentemente, o estado de caráter "cor clara" domina sobre o estado "cor escura".

Já no caso de redução transdução, a presença de uma variante normal é o suficiente para disparar o sinal. E como o processo é em cascata, mesmo um sinal inicial reduzido acaba sendo amplificado e não há uma diferença final. Assim o estado de caráter "transduzir" o sinal (atenção não é "traduzir") domina sobre o estado "não transduzir" e, logo, o estado de caráter "cor escura" domina sobre o estado "cor clara".

A matéria comete mais um erro - desta vez não pela boca da pesquisadora -, a partir disso, diz que "pela genética mendeliana" espera-se que o caráter dominante se espalhe mais rapidamente do que o recessivo. Errado, a genética mendeliana não diz nada sobre espalhamento de uma variante. A velocidade de espalhamento é explicada pela teoria sintética da evolução: que une a genética mendeliana à teoria da evolução por seleção natural de Darwin-Wallace.

E agora, com a biologia molecular, tanto a genética mendeliana (bem como a não-mendeliana) quanto a evolução começam a ser destrinchadas caso a caso em um nível bem mais básico (e ao mesmo tempo mais sofisticado). O trabalho de Rosenblum e colaboradores é bem interessante, embora não chegue a ser uma novidade.

Referência
Rosenblum, E., Rompler, H., Schoneberg, T., & Hoekstra, H. (2009). Molecular and functional basis of phenotypic convergence in white lizards at White Sands Proceedings of the National Academy of Sciences DOI: 10.1073/pnas.0911042107

*Anyone may, without requesting permission, use original figures or tables published in PNAS for noncommercial and educational use (i.e., in a review article, in a book that is not for sale) provided that the original source and the applicable copyright notice are cited. (Veja aqui.)

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Pluie de janvier

As tragédias que se abateram sobre Angra dos Reis-RJ, São Luís do Paraitinga-SP e outras paragens por conta das chuvas de fim e começo de ano trazem à tona o lado da solidariedade humana, com várias ações espontâneas pipocando para mobilizar donativos aos desabrigados e outros atingidos (p.e. aqui). (Para doações: aqui e aqui.)

Chuva nesta época, torrencial, não é novidade. Alguns dizem: "Choveu mais de 50% do esperado para o mês todo". Chuvas são assim. Não se distribuem uniformemente por um período. Médias são assim. Representam o valor esperado para um mês, mas não quer dizer que seja um valor fixo - às vezes chove mais, às vezes chove menos. Não tira, portanto, dos ombros das autoridades sua parcela de responsabilidade.

Outros apressam-se em dizer que é tudo culpa do aquecimento global ou das mudanças climáticas. Talvez seja. Mas isso é algo que não se pode saber. As mudanças climáticas são esperadas, mas eventos meteorológicos específicos não podem ser atribuídos ao processo. O que se pode atribuir são mudanças nos *padrões* de longo prazo: e.g. a frequência média de chuvas, a pluviosidade média, a temperatura média. Nunca a quantidade de chuva em um dia em particular - ou mesmo em um mês ou um ano.

Pense, por exemplo, nos balões que são soltos durante as festas de junho. Certamente eles aumentam a ocorrência de incêndios. Mas um incêndio em particular em junho pode não ter nada a ver com balão - pode ter sido um curto-circuito ou algo assim. Só podemos atribuir com maior grau de confiança se encontramos restos de balão no local - ou tivermos testemunhos confiáveis que mostram que um balão começou um incêndio. No entanto, podemos ligar a prática de se soltar balões de são-joão com incêndios ao ver como nos arredores em que se costuma ver balões aumenta o número de incêndios.

Chuvas, como incêndios, possuem várias causas - sim, ao final depende apenas de haver nuvens carregadas cujo vapor se condensa em gotas de chuva suficientemente grandes para vencer a força de ascensão, mas a presença de nuvens no local e sua condensação vai depender de se houve evaporação suficiente de água em uma região, de se ventos sopraram na direção certa, de se massas de ar frias estavam no local correto, etc.

Mas consideremos o caso de Angra dos Reis. Para o mês de janeiro, com os dados disponíveis da década de 1990 (entre os anos de 1991 a 2000 - dados obtidos do banco de dados do CPTEC/INPE), os dias mais chuvosos tiveram uma precipitação de: 36%, 56%, 48%, 19%, 15%, 13%, 13%, 22%, 24%, 47% da média para todo o mês. A média dos dias mais chuvosos é, então, de 29% da precipitação mensal média com uma desvio padrão de 16%. Isso faz com que haja uma probabilidade a cada ano de 5% do dia mais chuvoso ultrapassar os 50% da média mensal. É uma probabilidade maior do que de ocorrer um abalo maior do que 7 graus na escala Richter, p.e., em Tóquio a qualquer ano (cerca de 2%). Imagine se as autoridades japonesas negligenciassem o risco...

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

2010.0

O Gene Repórter está de cara nova. Como são poucos os habituês, poucos deverão notar ou mesmo se incomodar.

O visual está ainda mais simples - com ainda mais predominância do branco, os textos em cinza para não cansar tanto a vista (mas em um tom mais escuro para dar contraste suficiente na maior parte das vezes). Os menus de navegação - como links e histórico de postagens - foram jogados para a esquerda: creio que seja a posição mais natural. A largura da coluna principal de texto está maior.

O blogue ganhou um logo pra dar uma identidade visual. E está agora cadastrado (eu acho) no Research Blogging em Português (por convocação da Fernanda Poletto).

Há outras modificações mais cosméticas: como padrão da fonte, aviso de copyleft e detalhes da paleta de cores.

As alterações cumprem então várias funções: a) satisfazer ao dono (insatisfeito com o visual anterior); b) satisfazer ao público (na pesquisa do sorteio do livro de Dawkins apontou a necessidade de mudança no design - outras sugestões poderão ser incorporadas gradualmente... ou não); c) melhorar a apresentação técnica; d) atender à renovação periódica de praxe; e) trazer uma novidade de ano novo.

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