Uma reportagem do New York Times, reproduzida pela Folha Online, fala a respeito da evolução da coloração de lagartos que colonizaram dunas de areia branca. (A reportagem do NYT é mais completa, com figuras e link para o trabalho original.)
A matéria destaca um aspecto banal em termos científicos: os lagartos que colonizaram as dunas, descendentes de variedades de cores escuras, apresentam cores mais claras que seus parentes que ocupam os arredores - com cores de fundo mais escuras. Isso é tão esperado que a Dra. Rosenblum (a principal autora do artigo) diz: "É óbvio o que aconteceu". Mas esse destaque não é de todo despropositado, já que a comunicação se volta para um público mais amplo, que inclui, sabidamente, uma fração considerável de pessoas que desconhecem a teoria da evolução e os fatos que a sustentam.
O meu destaque vai para a escorregada dada pela pesquisadora (licença poética abusiva?): a linguagem finalista. Ela assim explica o óbvio: "Todos ficaram brancos para que pudessem fugir de seus predadores com mais facilidade". É uma linguagem finalista, teleológica: branco *para* fugir. Como se a evolução tivesse algum tipo de presciência. Ou que os lagartos fossem capazes - como o camaleão - de mudar sua coloração a seu bel-prazer. De quebra ainda passa a impressão de que a evolução é um fenômeno individual: um lagarto A, de cor escura, muda para um ambiente de cor clara, e esse mesmo lagarto A adquire uma cor clara.
Em um frase, bate de frente com toda a diferença de pensamento evolutivo estabelecida a partir de Darwin e Wallace.
Só mais abaixo na reportagem entra-se no cerne do mérito do estudo - a ocorrência da evolução e a direção em que ela ocorreu não são novidades, nem mesmo a velocidade dessa mudança - ao estudar as populações de três espécies diferentes que passaram pelo mesmo processo geral, encontraram que o mesmo gene (envolvido na produção de melanina, claro) estava alterado nas populações claras de duas espécies. Qual a importância disso? A importância é que lança luz sobre o processo de evolução convergente: a evolução de uma mesma característica de modo independente por linhagens distintas. (Figura 1.)
Figura 1. A - Formas claras e escuras das espécies analisadas de lagartos. Em cima, as formas claras - da região das dunas; abaixo - as formas escuras - das regiões do entorno, com solo mais escuro; mais abaixo - código da posição e dos aminoácidos alterados nas formas claras, em relação às formas escuras, na proteína MC1R. B - Esquema da proteína de membrana MC1R. Pontos escuros indicam as posições de mutação nas formas claras.*
Mas os pesquisadores analisaram em mais detalhes. Embora o mesmo gene tivesse sido alterado, as alterações eram distintas.
O gene alterado é o que codifica o receptor de melanocortina do tipo 1 (MC1R ou Mc1r). Melanocortinas formam uma classe diversa de hormônios peptídicos - como o hormônio adrenocorticotrópico, ACTH, (que estimula a produção de cortisol pela glândula adrenal, bem como androgênios - está ligado á resposta ao estresse) e o hormônio estimulante de melanócitos, MSH, que está ligado à pigmentação. O MSH se liga ao MC1R, que dispara uma série de reações na célula, levando à produção de melanina - tornando a pele mais escura.
O gene Mc1r (os genes recebem o mesmo nome da proteína que codificam - quando se conhece o produto gênico associado -, mas são grafados em itálico) em uma das espécies sofreu uma alteração tal que a proteína MC1R tinha dimuída sua capacidade de disparar os eventos subsequentes à ligação da MSH no receptor (transdução). Em outra espécie, a alteração no Mc1r fez com que a proteína MC1R deixasse de se integrar à membrana celular de modo adequado. O resultado em ambos os casos era uma resposta dimuída à presença de MSH, levando a uma menor produção de melanina no final. Até aí, morreu Neves: dá na mesma.
Dá na mesma? Não. A mutação que levava à diminuição na capacidade de transdução tem um comportamento recessivo - quando uma das cópias é do tipo normal, a coloração é normal, somente quando as duas cópias são mutadas, o indivíduo é branco. Já a mutação que levava à diminuição na capacidade de integração à membrana tem caráter dominante - a presença de uma cópia normal ao lado da mutante leva à produção de uma cor clara, somente se as duas cópias são selvagens, a coloração é escura.
A explicação disso provavelmente é que, como os receptores se dimerizam - isto é, ligam-se em pares -, quando um receptor que não se integra na membrana se liga a outro que seria capaz de se integrar, ambos ficam retidos no interior da célula: assim, o estado de caráter "não se ligar à membrana" domina sobre o estado "ligar-se à membrana" e, consequentemente, o estado de caráter "cor clara" domina sobre o estado "cor escura".
Já no caso de redução transdução, a presença de uma variante normal é o suficiente para disparar o sinal. E como o processo é em cascata, mesmo um sinal inicial reduzido acaba sendo amplificado e não há uma diferença final. Assim o estado de caráter "transduzir" o sinal (atenção não é "traduzir") domina sobre o estado "não transduzir" e, logo, o estado de caráter "cor escura" domina sobre o estado "cor clara".
A matéria comete mais um erro - desta vez não pela boca da pesquisadora -, a partir disso, diz que "pela genética mendeliana" espera-se que o caráter dominante se espalhe mais rapidamente do que o recessivo. Errado, a genética mendeliana não diz nada sobre espalhamento de uma variante. A velocidade de espalhamento é explicada pela teoria sintética da evolução: que une a genética mendeliana à teoria da evolução por seleção natural de Darwin-Wallace.
E agora, com a biologia molecular, tanto a genética mendeliana (bem como a não-mendeliana) quanto a evolução começam a ser destrinchadas caso a caso em um nível bem mais básico (e ao mesmo tempo mais sofisticado). O trabalho de Rosenblum e colaboradores é bem interessante, embora não chegue a ser uma novidade.
Referência
Rosenblum, E., Rompler, H., Schoneberg, T., & Hoekstra, H. (2009). Molecular and functional basis of phenotypic convergence in white lizards at White Sands Proceedings of the National Academy of Sciences DOI: 10.1073/pnas.0911042107
*Anyone may, without requesting permission, use original figures or tables published in PNAS for noncommercial and educational use (i.e., in a review article, in a book that is not for sale) provided that the original source and the applicable copyright notice are cited. (Veja aqui.)
7 comentários:
Acho que o comentário errôneo da autora do trabalho foi um deslize de momento. Ela deve estar morrendo de vergonha agora, após a matéria publicada no NYT, rs.
Esse tipo de escorregada é comum nas reportagens que tratam da evolução. Parece que os pesquisadores acham que as pessoas sabem como funciona a evolução e não se preocupam com o linguajar.Mas acontece que a imensa maioria das pessoas (mesmo nas escolas) não sabem. Aí é um tal de "mudou para se adaptar..." que não acaba mais. Mas o interessante são as formas diferentes para se chegar ao mesmo resultado. Essas mutações são totalmente aleatórias?
Takata,
Totalmente fora do tema mas quiz compartilhar esse achado sobre debate:
Porque o outro lado dos debates em que estou é sempre tão hipócrita? Eles sempre pulam sobre o que diz o meu lado, e ainda deliberadamente ignoram todas as falhas do seu próprio lado. Vamos ser honestos sobre o duplo padrão: O outro lado fica ocupado com coisas erradas do meu lado, nunca com o seu. É como o outro lado pode ser tão enganoso: Eles estão sempre à procura de alcançar qualquer vantagem que puderem. Pessoas assim me deixam louco, e parece que a maioria das pessoas do outro lado é.
Legal, não?
abraços
Salve, Joey,
Bem, certamente a pesquisadora sabe como opera a evolução. Mas a linguagem dita lamarckista pipoca a toda hora. Mesmo Dawkins faz uso dela. Pra mim é uma praga.
[]s,
Roberto Takata
Ari,
Tanto quanto se sabe, são aleatórias. Aleatórias não no sentido de que não tenham uma causa específica, mas, sim, que não estejam direcionadas pela pressão seletiva.
A maior parte dos debates - de qualquer natureza - são hipócritas. Nós, humanos, somos hipócritas.
[]s,
Roberto Takata
Takata,
Se você tiver tempo e interesse, veja que discussão interessante:
http://climateaudit.org/2010/01/18/curry-reviews-lindzen-and-choi/
Se não houver preconceito, coisas como essa elevarão muito a compreensão da ciência do clima.
abraços
A análse de Curry desse trabalho de Lindzei e Choi pareceu interessante.
[]s,
Roberto Takata
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