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terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Patrulha purista vocabular 5

Certa vez propus ao pessoal da editoria de Ciências da Folha a criação de um catálogo interno de termos a serem evitados a todo custo nas reportagens. A sugestão foi bem recebida. (Não sei como está a implementação.)

Um termo que deveria ser banido - seria para ser usado com muuuuuuito cuidado, mas o melhor é evitar por completo, já que os casos especiais em que seria justificável o uso não compensam os riscos do mau uso - é "primitivo" para se referir a organismos atuais (e muitos antropólogos também gostariam que fosse vetado o uso para se referir a povos atuais que não apresentam uma cultura tecnológica tão desenvolvida como a nossa).

Vou usar como exemplo uma reportagem recente da própria Folha a respeito da capacidade de abstração matemática de macacos resos. Vai no próprio título da matéria: "Macaco primitivo aprende conceitos de matemática".

Em seu mais recente livro: "The greastest show on Earth" (editado no Brasil pela Cia. das Letras: "O maior espetáculo da Terra"), Dawkins lista 5 concepções errôneas por trás das expressões "superior" e "inferior", que se ajusta à noção de "avançado/evoluído" e "primitivo". Em relação, p.e., à frase: "Macacos são superiores às minhocas", poderíamos ter as seguintes interpretações, todas equivocadas:

1. 'Macacos evoluíram de minhocas'. Errado. Macacos e minhocas partilham um ancestral em comum - juntamente com muitos outros organismos. Macacos e minhocas não evoluíram um do outro, mas cada um evoluiu a partir desse ancestral em comum. (Em uma comparação familiar, dizer que João é parente de Pedro, digamos são irmãos, não implica que João seja descendente de Pedro ou vice-versa, mas sim que ambos partilham um ancestral em comum, no caso, a mãe - e ambos foram gerados pela mesma mãe. Se compararmos primos, ambos terão a mesma avó e/ou o mesmo avô.)

2. 'O ancestral em comum entre macacos e minhocas era mais parecido com uma minhoca'. Para esse uso Dawkins faz uma conceçãoconcessão. Em alguns casos, um dos ramos sofre mesmo uma menor modificação morfológica em relação ao ancestral em comum - mas isso não é necessariamente verdadeiro.

3. 'Macacos são mais espertos (ou mais bonitos, um genoma maior, um plano corporal mais complexo, etc.)'. Para Dawkins (e para mim) isso é uma visão esnobe. Dar importância a uma dada característica em detrimento a outra não tem nada de objetivo. Protozoários possuem cérebros menores (na verdade não possuem) do que mamíferos, mas alguns protozoários possuem um genoma muito maior (essa dissociação entre tamanho do genoma e complexidade morfológica é chamado de paradoxo ou enigma do valor de C - em que C representa o conteúdo genômico nuclear da célula).

4. 'Macacos são mais parecidos com humanos do que as minhocas'. Antropocentrismo insustentável. Por que os humanos seriam o padrão de julgamento a respeito da evolução? Humanos possuem cinco dedos, sendo nesse aspecto, mais parecidos com os ancestrais dos tetrápodos atuais (tirando os muito mais antigos que tinham seis, oito ou mais dedos em cada 'mão'), do que, por exemplo, cavalos, que possuem apenas um dedo funcional em cada pata.

5. 'Macacos (e outros animais 'superiores') são mais capazes de sobreviver do que as minhocas (e outros animais 'inferiores'). Bem, todas as espécies atuais são sobreviventes. Além disso, várias espécies de macacos encontram-se ameçadas de extinção.

(Outras interpretações igualmente equivocadas poderiam ser acrescentadas.)

Veja que o título da manchete não perderia nada em informação se fosse simplesmente: 'Macaco aprende conceitos de matemática', se quiser ser mais específico: 'Macaco reso aprende conceitos de matemática'. O termo 'primitivo' é inútil e, pior, desinformativo. Nos 25 milhões de anos que separam as nossas linhagens, os macacos resos não ficaram parados evolutivamente. A figura abaixo representa uma filogenia molecular dos primatas. Repare que a distância horizontal de Macaca mulatta (a espécie do macaco reso) até o ponto de ramificação em relação à linhagem que daria origem aos humanos é a mesma distância que separa os humanos desse ancestral - como a distância está calibrada para refletir as alterações do gene considerado, isso significa que houve o mesmo grau de mudança a partir do ancestral em comum nas duas linhagens. (Veja que em outros organismos o comprimento é maior - e poderia ser menor, como é nosem certos ramos omitidos da figura original.) Se o macaco reso tivesse se congelado no tempo, seu ramo seria muito mais curto.

Figura 1. Filogenia molecular de primatas símios (catarrinos + platirrinos). O triângulo indica o ponto de divergência entre as linhagens que deram origem ao macaco reso e aos humanos. Filogenia com gene nuclear IRBP. Fonte: Poux & Douzery 2004.

Referência
Poux, C & Douzery, E.J.P. 2004 - Primate phylogeny, evolutionary rate variations, and divergence times: A contribution from the nuclear gene IRBP. AJPA 124(1): 1-16. Disponível em: http://www3.interscience.wiley.com/journal/104549040/abstract

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