O Estadão reproduz reportagem da AFP: "Cientistas identificam microrganismo que pode esclarecer vida primitiva"
Sobre o uso do termo primitivo já comentei aqui no GR.
Aspas para o responsável do grupo de pesquisadores: "Descobrimos no lago um ramo desconhecido na árvore da vida. É única". O que essa frase quer dizer exatamente? Tecnicamente, uma espécie ou subespécie nova também é um novo ramo da árvore da vida - e, por definição, único. É um domínio novo ao lado de arqueas, eubactérias e eucariotos? Não há nenhuma informação a respeito na reportagem.
Mais aspas: "Para nós, nenhum outro grupo de microrganismos é descendente de tão perto das raízes da árvore da vida". Isso não faz o menor sentido. *Todos* os organismos atuais são descendentes exatamente da mesma raiz e estão à mesma distância temporal dela: cerca de 4 bilhões de anos.
Continua a reportagem: "O microrganismo 'se desenvolveu há cerca de um bilhão de anos, com uma margem de erro de cem milhões de anos', acrescentou." 1 bilhão de anos... Vejamos, o tempo de divergência entre os domínios atuais é estimado em algo como 3,5 bilhões de anos - 1 bilhão está bem distante desse ponto de separação das linhagens. E mais, cianobactérias devem existir há pelo menos 2,6 bilhões de anos (e talvez 3,5 bilhões de anos se a interpretação Schopf dos Sílex de Apex se mostrar correta).
Celenterados e demais eumetazoários têm um tempo de divergência estimado em alguns estudos em cerca de 1,2 a 1,5 bilhão de anos. Nemátodos e bilatérios em cerca de 1,2 bilhão de anos. Porém, outros estudos indicam um tempo de divergência bem mais recente para os eucariotos: o LECA (o último ancestral em comum dos eucariotos) teria vivido entre 1 e 1,4 bilhão de anos atrás.
E mais: "Para o cientista, o organismo microscópico 'pode servir de telescópio para observar o microcosmo original' e assim conseguir 'entender melhor como foi a vida primitiva na Terra'." Até pode, mas não mais do que muitos outros organismos.
A reportagem não dá nenhuma contextualização mais aprofundada - só que a descoberta foi feita originalmente há 20 anos e aparentemente foi feita uma nova análise. Mas não nos informa se é um estudo publicado, submetido, se foi anunciado em um congresso científico ou se é apenas um press release. Não nos informa que tipo de micro-organismo é: uma bactéria, uma arquea, uma alga, um fungo, um protozoário...
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Só alhures encontramos a menção de que é um eucarioto. E acrescentam uma afirmação sensacionalista do tipo "mankind's furthest relative". Só será se arbitrariamente se definir o limite do parentesco com a linhagem que deu origem aos humanos no nó em que se encontra o ancestral em comum mais recente desse micro-organismo e os humanos. De todo modo, o organismo teria uma divergência mais próxima da base dos *eucariotos* e não da árvore da *vida* - se considerarmos um LECA mais recente (outras estimativas ficam na ordem de 2 bilhões de anos).
O estudo foi publicado na Molecular Biology Evolution, ainda em versão eletrônica: Zhao et al. 2012. Collodictyon – an ancient lineage in the tree of eukaryotes. Mol. Biol. Evol.
segunda-feira, 30 de abril de 2012
sábado, 21 de abril de 2012
O caso da borboleta (não necessariamente Atíria)
Ainda estou no começo da leitura de "Infinito em Todas as Direções", do físico e matemático britânico naturalizado americano Freeman Dyson (2000, Cia. das Letras, 386 pp.). O original é de 1988 e se baseia na série de Conferências Gifford do autor proferidas em 1985 em Aberdeen, Escócia -In Praise of Diversity. Uma passagem do segundo capítulo (e que também é reproduzida na orelha do livro) me fez pensar:
"Esta rápida excursão pelo universo começará com as supercordas e terminará com as borboletas. [...] Não explicarei o que são borboletas e supercordas. Explicar as borboletas é desnecessário, pois todo mundo já as viu. Explicar as supercordas é desnecessário, porque ninguém jamais as viu. [...] Supercordas e borboletas são exemplos que ilustram dois aspectos diferentes do universo e duas noções diferentes de beleza. As supercordas aparecem no início e as borboletas no final porque são exemplos extremos. As borboletas estão no extremo da concretude, e as supercordas, no extremo da abstração. Marcam os limites extremos sobre o qual a ciência pretende ter jurisdição. [...] Ambas, de um ponto de vista científico, são mal compreendidas. Cientificamente falando, uma borboleta é, no mínimo, um mistério tão grande quanto uma supercorda. Quando algo deixa de ser um mistério, deixa de chamar a atenção dos cientistas. Quase tudo o que os cientistas pensam e sonham são mistérios."
É uma passagem bastante bonita. E com a qual concordei de início. Mas refletindo um pouco mais, acho que discordo em vários pontos.
A começar pela questão da explicação. A necessidade de explicação não está na familiaridade ou não de um fenômeno. Mas sim se há o tal "mistério" a ser desvendado. Há uma porção de elementos a respeito das borboletas que as pessoas não entendem. Por exemplo, só relativamente recentemente entendemos como as borboletas voam - sim, elas batem as asas, mas elas apenas as movimentam para cima e para baixo: quando movimentam para baixo, empurra o ar para baixo e, em reação, o ar empurra as borboletas para cima; só que, quando as borboletas movimentam para cima, o inverso deveria ocorrer. No caso das aves, elas recolhem as asas ao trazê-las para cima, fazendo com que não haja um efeito grande do ar empurrá-las de volta para baixo; moscas e abelhas giram as asas, com efeito similar. No caso dos lepidópteros, o que os sustenta são vórtex do ar que passam pela superfície dorsal durante o voo. Outro aspecto extremamente familiar, porém de detalhes pouco conhecidos, é a metamorfose. Os biólogos do desenvolvimento, com seus instrumentos de biologia molecular, começaram a desvendar o processo de ativação e desativação de genes - é a mudança no padrão que explica boa parte do fato de um mesmo conjunto genômico produzir duas formas tão distintas quanto a lagarta e a borboleta adulta. E mais. Quantas espécies existem? Como essa diversidade se relaciona entre si? Como as borboletas (e mariposas) evoluíram? São todas questões intrigantes que os cientistas procuram desvendar. (Certo que boa parte desses novos conhecimentos não estavam disponíveis à época das conferências.) E todo esse conjunto ajuda a explicar as borboletas - mesmo que haja ainda uma panapaná de outros "mistérios" (o próprio Dyson lista alguns mais à frente: "Com essa massa quase microscópica de células nervosas, o animal sabe como acionar suas pernas e asas, como andar e voar, como encontrar seu caminho usando algum meio de navegação desconhecido por milhares de quilômetros de Massachusetts até o México. Como é possível fazer tudo isso? Como os padrões de comportamento do animal são programados primeiro nos genes da larva e depois traduzidos nas vias neurais da borboleta?"). (Da parte de supercordas, um bom livro de divulgação é o "O Universo Elegante", de Brian Greene, 2001, Cia. das Letras, 592 pp.).
Discordo também de que borboletas e supercordas estejam em extremos opostos de concretude - embora isso dependa da noção de concretude que se está a empregar. A concretude como objetos que se consideram parte da realidade implica que ambos - borboletas e supercordas - são objetos tidos por de existência concreta. O que quer que signifique 'realidade', borboletas e supercordas devem existir realmente. Por outro lado, ambos são entidades abstratas: chamamos de borboletas, na verdade, a uma classe de manifestações - visuais, auditivas, táteis; e supercordas são outras entidades, cuja manifestação é bem mais indireta. Pode-se objetar e dizer que supercordas (ou sua versão mais turbinada de p-branas) são construtos matemáticos teóricos que procuram explicar as propriedades de partículas; mas borboletas também são construtos teóricos - embora não matemáticos - que associamos aos sinais mencionados (visuais, táteis, auditivos...) - apenas que borboletas são construtos emprestados de um tempo pré-científico.
Também discordo que ambos os fenômenos estejam no extremo do território científico. De um lado, embora as supercordas sejam supostamente os constituintes básicos do universo (não haveria nada a partir do qual as supercordas fossem formadas), ao menos da porção material, há questões ainda mais próximas da metafísica: como a origem do Universo (incluindo das supercordas); de outro, há epifenômenos dos quais as borboletas são constituintes (e não estou falando do tal efeito borboleta), como as nuvens das monarcas migratórias, as redes ecológicas nas quais elas estão imersas (borboletas podem ser indicadores da saúde ambiental), populações de lepidópteros podem ser bons exemplos dos processos evolutivos em ação.
Apesar de toda essa discordância, no entanto, creio que concorde em essência com Dyson: os mistérios são o que move os cientistas. Mas volto a discordar de que, uma vez desfeito o mistério, o cientista perca o interesse. Ele deixa de se mover nessa direção, mas é bem capaz de admirar a beleza do ex-mistério: o efeito da compreensão é algo que pode embasbacar o cientista; mesmo que ele já saiba do fato, ao se dar conta de que aquilo já é sabido e de como tal conhecimento foi obtido, o frescor do "eureka" de Arquimedes rebrota espontaneamente (mais ou menos como todo mundo - ao menos os que não são mal-humorados crônicos - ri das mesmas piadas de Chaves, não importa se é a milésima vez que revê o episódio). Não deixo de admirar o arco-íris mesmo conhecendo os processos ópticos por trás, nem de apreciar o voo desengonçado da borboleta sabendo dos torvelinhos aéreos, nem de me entreter com as máquinas de Rube Goldberg tendo ciência da cinética e da mecânica newtonianas.
"Esta rápida excursão pelo universo começará com as supercordas e terminará com as borboletas. [...] Não explicarei o que são borboletas e supercordas. Explicar as borboletas é desnecessário, pois todo mundo já as viu. Explicar as supercordas é desnecessário, porque ninguém jamais as viu. [...] Supercordas e borboletas são exemplos que ilustram dois aspectos diferentes do universo e duas noções diferentes de beleza. As supercordas aparecem no início e as borboletas no final porque são exemplos extremos. As borboletas estão no extremo da concretude, e as supercordas, no extremo da abstração. Marcam os limites extremos sobre o qual a ciência pretende ter jurisdição. [...] Ambas, de um ponto de vista científico, são mal compreendidas. Cientificamente falando, uma borboleta é, no mínimo, um mistério tão grande quanto uma supercorda. Quando algo deixa de ser um mistério, deixa de chamar a atenção dos cientistas. Quase tudo o que os cientistas pensam e sonham são mistérios."
É uma passagem bastante bonita. E com a qual concordei de início. Mas refletindo um pouco mais, acho que discordo em vários pontos.
A começar pela questão da explicação. A necessidade de explicação não está na familiaridade ou não de um fenômeno. Mas sim se há o tal "mistério" a ser desvendado. Há uma porção de elementos a respeito das borboletas que as pessoas não entendem. Por exemplo, só relativamente recentemente entendemos como as borboletas voam - sim, elas batem as asas, mas elas apenas as movimentam para cima e para baixo: quando movimentam para baixo, empurra o ar para baixo e, em reação, o ar empurra as borboletas para cima; só que, quando as borboletas movimentam para cima, o inverso deveria ocorrer. No caso das aves, elas recolhem as asas ao trazê-las para cima, fazendo com que não haja um efeito grande do ar empurrá-las de volta para baixo; moscas e abelhas giram as asas, com efeito similar. No caso dos lepidópteros, o que os sustenta são vórtex do ar que passam pela superfície dorsal durante o voo. Outro aspecto extremamente familiar, porém de detalhes pouco conhecidos, é a metamorfose. Os biólogos do desenvolvimento, com seus instrumentos de biologia molecular, começaram a desvendar o processo de ativação e desativação de genes - é a mudança no padrão que explica boa parte do fato de um mesmo conjunto genômico produzir duas formas tão distintas quanto a lagarta e a borboleta adulta. E mais. Quantas espécies existem? Como essa diversidade se relaciona entre si? Como as borboletas (e mariposas) evoluíram? São todas questões intrigantes que os cientistas procuram desvendar. (Certo que boa parte desses novos conhecimentos não estavam disponíveis à época das conferências.) E todo esse conjunto ajuda a explicar as borboletas - mesmo que haja ainda uma panapaná de outros "mistérios" (o próprio Dyson lista alguns mais à frente: "Com essa massa quase microscópica de células nervosas, o animal sabe como acionar suas pernas e asas, como andar e voar, como encontrar seu caminho usando algum meio de navegação desconhecido por milhares de quilômetros de Massachusetts até o México. Como é possível fazer tudo isso? Como os padrões de comportamento do animal são programados primeiro nos genes da larva e depois traduzidos nas vias neurais da borboleta?"). (Da parte de supercordas, um bom livro de divulgação é o "O Universo Elegante", de Brian Greene, 2001, Cia. das Letras, 592 pp.).
Discordo também de que borboletas e supercordas estejam em extremos opostos de concretude - embora isso dependa da noção de concretude que se está a empregar. A concretude como objetos que se consideram parte da realidade implica que ambos - borboletas e supercordas - são objetos tidos por de existência concreta. O que quer que signifique 'realidade', borboletas e supercordas devem existir realmente. Por outro lado, ambos são entidades abstratas: chamamos de borboletas, na verdade, a uma classe de manifestações - visuais, auditivas, táteis; e supercordas são outras entidades, cuja manifestação é bem mais indireta. Pode-se objetar e dizer que supercordas (ou sua versão mais turbinada de p-branas) são construtos matemáticos teóricos que procuram explicar as propriedades de partículas; mas borboletas também são construtos teóricos - embora não matemáticos - que associamos aos sinais mencionados (visuais, táteis, auditivos...) - apenas que borboletas são construtos emprestados de um tempo pré-científico.
Também discordo que ambos os fenômenos estejam no extremo do território científico. De um lado, embora as supercordas sejam supostamente os constituintes básicos do universo (não haveria nada a partir do qual as supercordas fossem formadas), ao menos da porção material, há questões ainda mais próximas da metafísica: como a origem do Universo (incluindo das supercordas); de outro, há epifenômenos dos quais as borboletas são constituintes (e não estou falando do tal efeito borboleta), como as nuvens das monarcas migratórias, as redes ecológicas nas quais elas estão imersas (borboletas podem ser indicadores da saúde ambiental), populações de lepidópteros podem ser bons exemplos dos processos evolutivos em ação.
Apesar de toda essa discordância, no entanto, creio que concorde em essência com Dyson: os mistérios são o que move os cientistas. Mas volto a discordar de que, uma vez desfeito o mistério, o cientista perca o interesse. Ele deixa de se mover nessa direção, mas é bem capaz de admirar a beleza do ex-mistério: o efeito da compreensão é algo que pode embasbacar o cientista; mesmo que ele já saiba do fato, ao se dar conta de que aquilo já é sabido e de como tal conhecimento foi obtido, o frescor do "eureka" de Arquimedes rebrota espontaneamente (mais ou menos como todo mundo - ao menos os que não são mal-humorados crônicos - ri das mesmas piadas de Chaves, não importa se é a milésima vez que revê o episódio). Não deixo de admirar o arco-íris mesmo conhecendo os processos ópticos por trás, nem de apreciar o voo desengonçado da borboleta sabendo dos torvelinhos aéreos, nem de me entreter com as máquinas de Rube Goldberg tendo ciência da cinética e da mecânica newtonianas.
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sábado, 14 de abril de 2012
Qual é o valor do aluno de pós-graduação stricto sensu?*
*Esta postagem faz parte da blogagem coletiva promovida pelo sítio web posgraduando pela valorização dos alunos de pós-graduação.
Antes de mais nada, uma pequena objeção minha, o pessoal do posgraduando restringiu a discussão à situação dos alunos de pós-graduação stricto sensu sob a justificativa: "Outra confusão comum é a diferenciação entre as pós-graduações stricto sensu e lato sensu. Com a recente transformação do ensino superior em mercadoria ocorreu uma explosão de ofertas de cursos de especialização lato sensu, infelizemente nem sempre oferecidos por instituições sérias ou comprometidas com a qualidade de ensino. Como consequência disto surgiu um sério preconceito contra esses cursos, e este preconceito muitas vezes é estendido à pós-graduação de maneira geral." Aparentemente incorporaram os preconceitos contra os pós-graduandos lato sensu.
Adotarei a restrição, no entanto, não pela aceitação de que o lato sensu é de baixa qualidade, mas sim, em reconhecimento de que as situações são distintas. A pós lato sensu é eminentemente voltada para o mercado e a valorização se dá diretamente na carreira dos que fazem tais cursos: como aumento de salário, melhores oportunidades de emprego, networking, etc. A stricto sensu envolve mais a cultura da pesquisa acadêmica, no Brasil e em vários lugares do mundo, restrito ou a instituições públicas ou cujo funcionamento dependa enormemente de verbas públicas para o financiamento.
No Brasil, certamente a dinâmica que envolve a valorização de títulos de mestrado e doutorado stricto sensu não envolve grande participação de mecanismos tipicamente do mercado de trabalho. As IES privadas estão longe de cumprirem a determinação legal de 70% do corpo docente formado por mestres e doutores - e, sempre que possível e necessário, lançam a mão de reduzir seus quadros de professores titulados para diminuir custos.
Assim, faz pouco sentido valorar a pós-graduação a partir de dados mercadológicos: o quanto mestres e doutores recebem mais e são mais procurados do que os que são apenas graduados. Ademais a empregabilidade de doutores no Brasil é bem menor do que a média do mercado de trabalho: quase 30% não trabalham na área em que se especializaram.
Uma saída é recorrer a dados econométricos sobre o quanto os pós-graduandos contribuem para o PIB com seus trabalhos. Isso incluiria até gastos com a impressão da tese, inscrição em congressos, viagens de coleta, etc. O grande porém é: não existem tais dados (pelo menos acho que não, se alguém souber de algum estudo, por favor, dê-me um toque ali nos comentários). Mal há dados sobre o quanto a pesquisa acadêmica se reverte em ganhos econômicos no Brasil: há dados isolados como no caso da Embrapa e programas da Fapesp de fomento à pesquisa nas indústrias - variando entre 6 e 9 vezes o valor investido inicialmente. Os investimentos em P&D no país ficam em torno de 1,2% do PIB (e deve cair este ano), o setor público responde por cerca de 0,64% (ou 53,3% dos investimentos totais). Assim, em uma estimativa bem grosseira, os ganhos resultantes do investimento em pesquisa acadêmica no país fica em torno de 3,84% a 5,76% do PIB (de mais ou menos R$ 4 trilhões) - ou algo como R$ 160 bilhões.
O número de alunos de doutorado deve estar na ordem de 70.000 e de mestrado, 100.000. Considerando a média das IFES de 1,5 aluno de pós-graduação por docente, são cerca de 110.000 docentes registrados em programas de pós-graduação. Se distribuíssemos 10% dos R$ 160 bi em bolsas e salários, seria uma média de R$ 4.700,00 para cada um. Mantendo-se a distribuição proporcional atual: salário docente médio de R$ 4.200,00, bolsa CNPq de doutorado de R$ 1.800,00 e de mestrado de R$ 1.200,00; teríamos: salário docente médio de R$ 7.700; bolsa doutorado de R$ 3.300 e bolsa mestrado de R$ 2.200 como um pagamento mais justo em relação ao que seus trabalhos revertem em desenvolvimento econômico do país.
Upideite(27/set/2012): Suzana Herculano-Houzel faz seu desabafo - a situação da desvalorização das ciências vai além das bolsas de pós-graduação: "Você quer mesmo ser cientista?"
Antes de mais nada, uma pequena objeção minha, o pessoal do posgraduando restringiu a discussão à situação dos alunos de pós-graduação stricto sensu sob a justificativa: "Outra confusão comum é a diferenciação entre as pós-graduações stricto sensu e lato sensu. Com a recente transformação do ensino superior em mercadoria ocorreu uma explosão de ofertas de cursos de especialização lato sensu, infelizemente nem sempre oferecidos por instituições sérias ou comprometidas com a qualidade de ensino. Como consequência disto surgiu um sério preconceito contra esses cursos, e este preconceito muitas vezes é estendido à pós-graduação de maneira geral." Aparentemente incorporaram os preconceitos contra os pós-graduandos lato sensu.
Adotarei a restrição, no entanto, não pela aceitação de que o lato sensu é de baixa qualidade, mas sim, em reconhecimento de que as situações são distintas. A pós lato sensu é eminentemente voltada para o mercado e a valorização se dá diretamente na carreira dos que fazem tais cursos: como aumento de salário, melhores oportunidades de emprego, networking, etc. A stricto sensu envolve mais a cultura da pesquisa acadêmica, no Brasil e em vários lugares do mundo, restrito ou a instituições públicas ou cujo funcionamento dependa enormemente de verbas públicas para o financiamento.
No Brasil, certamente a dinâmica que envolve a valorização de títulos de mestrado e doutorado stricto sensu não envolve grande participação de mecanismos tipicamente do mercado de trabalho. As IES privadas estão longe de cumprirem a determinação legal de 70% do corpo docente formado por mestres e doutores - e, sempre que possível e necessário, lançam a mão de reduzir seus quadros de professores titulados para diminuir custos.
Assim, faz pouco sentido valorar a pós-graduação a partir de dados mercadológicos: o quanto mestres e doutores recebem mais e são mais procurados do que os que são apenas graduados. Ademais a empregabilidade de doutores no Brasil é bem menor do que a média do mercado de trabalho: quase 30% não trabalham na área em que se especializaram.
Uma saída é recorrer a dados econométricos sobre o quanto os pós-graduandos contribuem para o PIB com seus trabalhos. Isso incluiria até gastos com a impressão da tese, inscrição em congressos, viagens de coleta, etc. O grande porém é: não existem tais dados (pelo menos acho que não, se alguém souber de algum estudo, por favor, dê-me um toque ali nos comentários). Mal há dados sobre o quanto a pesquisa acadêmica se reverte em ganhos econômicos no Brasil: há dados isolados como no caso da Embrapa e programas da Fapesp de fomento à pesquisa nas indústrias - variando entre 6 e 9 vezes o valor investido inicialmente. Os investimentos em P&D no país ficam em torno de 1,2% do PIB (e deve cair este ano), o setor público responde por cerca de 0,64% (ou 53,3% dos investimentos totais). Assim, em uma estimativa bem grosseira, os ganhos resultantes do investimento em pesquisa acadêmica no país fica em torno de 3,84% a 5,76% do PIB (de mais ou menos R$ 4 trilhões) - ou algo como R$ 160 bilhões.
O número de alunos de doutorado deve estar na ordem de 70.000 e de mestrado, 100.000. Considerando a média das IFES de 1,5 aluno de pós-graduação por docente, são cerca de 110.000 docentes registrados em programas de pós-graduação. Se distribuíssemos 10% dos R$ 160 bi em bolsas e salários, seria uma média de R$ 4.700,00 para cada um. Mantendo-se a distribuição proporcional atual: salário docente médio de R$ 4.200,00, bolsa CNPq de doutorado de R$ 1.800,00 e de mestrado de R$ 1.200,00; teríamos: salário docente médio de R$ 7.700; bolsa doutorado de R$ 3.300 e bolsa mestrado de R$ 2.200 como um pagamento mais justo em relação ao que seus trabalhos revertem em desenvolvimento econômico do país.
Upideite(27/set/2012): Suzana Herculano-Houzel faz seu desabafo - a situação da desvalorização das ciências vai além das bolsas de pós-graduação: "Você quer mesmo ser cientista?"
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domingo, 1 de abril de 2012
É mentira, Terta? - Sexo, mentiras e videotape
Várias espécies de plantas dependem dos insetos em sua reprodução através da polinização. É muito comum que haja atração dos polinizadores por meio de recompensa como o néctar. Mas, em diversas floríferas, os polinizadores são atraídos de um modo mais sensual e ardiloso - as flores têm um aspecto (na forma e no cheiro) similar a de fêmeas de vespas e abelhas, induzindo os machos a realizarem suas acrobacias sexuais que redundam na adesão de polens a seu corpo (liberados mais tarde quando o incauto don juan hexápodo for novamente enganado por outra planta). Esse processo recebe uma variedade de denominações como polinização por logro (deceit pollination ou pollination by deceit ou deceptive pollination - que envolve não apenas logro sexual - sexual deceit -, mas também alimentar - food deception - em que a planta exibe falsos sinais ligadasos à alimentação do polinizador) ou pseudocópula (embora o termo seja usado em outras situações - como os rituais de cópulas entre indivíduos de lagartos partenocárpicospartenogenéticos).
A quase totalidade dos casos conhecidos de logro sexual ocorre em espécies de orquídeas (espalhados por cerca de 400 espécies - Cozzolino & Widmer 2005- em 18 gêneros - Jersáková et al. 2006) com machos de abelhas e vespas, mas há pelo menos um caso em uma espécie de asterácea, a Gorteria diffusa, com uma mosca bombilídea, a Megapalpus capensis - curiosamente, uma mosca que imita uma abelha (Ellis & Johnson 2010).
Há pelo menos duas hipóteses (não mutuamente excludentes) sobre a vantagem evolutiva (naturalmente para a planta) do sistema de logro: a) liberação de recursos investidos na produção de recompensas para a produção floral e de sementes e b) maior índice de polinização cruzada em decorrência dos polinizadores visitarem um menor número de flores em uma planta que não recompensa, levando a uma prole resultante de fertilização cruzada com maior frequência e uma maior eficiência no transporte de polens (Jersáková et al. 2006). Os polinizadores, por outro lado, não parecem ter nenhuma vantagem e podem mesmo ter um custo alto - há casos em que o polinizador ejacula na flor, desperdiçando recurso e energia (Gaskett et al. 2008).
Em orquídeas, várias linhagens evoluíram independentemente a síndrome da polinização por logro sexual. provavelmente a partir de uma condição de logro alimentar (Cozzolino & Widmer 2005).
Scopece e cols (2010) compararam a eficiência de polinização (PE) entre espécies de orquídeas com diferentes estratégias: com recompensa em néctar ao polinizador, com logro alimentar e com logro sexual. A eficiência de polinização foi medida pela relação entre o número de flores com presença de polens (ou massa de polens) no estigma e o de flores de que as polínias foram removidas. A PE das logradoras sexuais foi menor, mas comparável à das recompensadoras; enquanto a PE das logradoras alimentares foi bem menor que ambas. (Os dados foram corrigidos para a comparação a fim de se eliminar o efeito da proximidade ou distância genética entre as espécies - parte dos valores de PE poderia se dever simplesmente a uma partilha de uma história evolutiva em comum relativamente recente em vez de a uma partilha de mecanismos similares de reprodução.) Os autores sugerem que essa diferença de PE entre as logradoras alimentares e as logradoras sexuais explique a recorrência de evolução de linhagens logradoras sexuais a partir de logradoras alimentares. Pode explicar também a evolução de linhagens recompensadoras a partir de logradoras alimentares. Mas como explicar a persistência de logradoras alimentares? As plantas recompensadoras encontram um limite nos gastos envolvidos na produção de recompensas como o néctar, além disso, os polinizadores tendem a visitar mais as flores de uma mesma planta e flores de plantas relativamente próximas, aumentando as chances de fertilização entre indivíduos geneticamente próximos; as logradoras sexuais não enfrentam esses problemas, mas apresentam uma taxa geral baixa de polinização (embora a eficiência de polinização seja alta, poucas flores têm seus polens removidos e poucas flores são polinizadas).
Abaixo um vídeo, narrado por Sir David Attenborough, com o logro sexual em ação.
Sabe aquela história de florezinhas e abelhas? Pois é, pelo jeito o tema rende.
Referências
Cozzolino S, & Widmer A (2005). Orchid diversity: an evolutionary consequence of deception? Trends in ecology & evolution, 20 (9), 487-94 PMID: 16701425
Ellis AG, & Johnson SD (2010). Floral mimicry enhances pollen export: the evolution of pollination by sexual deceit outside of the orchidaceae. The American naturalist, 176 (5) PMID: 20843263
Scopece, G., Cozzolino, S., Johnson, S., & Schiestl, F. (2010). Pollination Efficiency and the Evolution of Specialized Deceptive Pollination Systems The American Naturalist, 175 (1), 98-105 DOI: 10.1086/648555
Gaskett AC, Winnick CG, & Herberstein ME (2008). Orchid sexual deceit provokes ejaculation. The American naturalist, 171 (6) PMID: 18433329
Jersáková J, Johnson SD, & Kindlmann P (2006). Mechanisms and evolution of deceptive pollination in orchids. Biological reviews of the Cambridge Philosophical Society, 81 (2), 219-35 PMID: 16677433
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