Esta postagem é um adendo à excelente feita por Karl do Ecce Medicus:
KPC, sabonetes e bactérias irresistíveis.
Uma diferença prática entre antibióticos e antissépticos é que os primeiros têm uso sistêmico (são ingeridos, injetados, administrados de modo que sejam absorvidos e atuem *dentro* do nosso organismo - ou de animais que queremos tratar) e os segundos, uso tópico (são aplicados na parte externa do corpo - mucosa da boca, ferimentos, pele...). (Há antibióticos tópicos, mas são usados em casos bem específicos, como em certos curativos de queimaduras, tratamento de conjuntivite purulenta ou eczema superinfectado.) Ambos têm ação restrita a micro-organismos - não têm a função de combater vírus.
Muitas vezes os antibióticos atuam sobre a maquinaria celular básica - e como há similaridades com a nossa própria maquinaria celular, os antibióticos podem ter ação sobre nós também*. Então, procura-se utilizar compostos que tenham efeitos sobre os micro-organismos em pequenas doses.
Nosso corpo apresenta uma barreira natural - como a nossa pele - contra a invasão de agentes externos. Essa barreira faz com que os antissépticos tenham uma ação limitada sobre nosso organismo, de modo que muitas vezes são usados em concentrações muito maiores.
P.e., a penicilina administrada para um humano adulto é algo em torno de 0,93 g. Espalhando-se pelo organismo dá uma concentração de cerca de 1,3.10-2 g/kg (0,0013% em massa).
Sabonetes com triclosano (composto antisséptico usado desde os anos 1970, mas cujo mecanismo de ação molecular só
começou a ser desvendado em 1999) podem ter concentração de até 1% (g/ml) - sabonete cirúrgico -, sabonetes antissépticos mais comuns têm concentração de 0,5%. Em desodorantes, o triclosano é usando em concentrações de 0,1%.
Há registros de linhagens
resistentes** ao triclosano. Mas não há tantos problemas como em relação às linhagens resistentes aos antibióticos. Por quê? Por vários motivos.
Como dito sobre antissépticos, seu uso é *externo*. Ou seja, esses micro-organismos resistentes estão *fora* do corpo. O grande problema é quando micro-organismos resistentes a tratamento estão *dentro*. Como no caso de micro-organismos resistentes a antibióticos, em condições normais, as linhagens resistentes a antissépticos são *menos* bem adaptados do que linhagens não-resistentes em um ambiente sem o agente seletivo (o antisséptico ou o antibiótico) - isso porque o antisséptico ou o antibiótico muitas vezes atua sobre o metabolismo ou estrutura do micro-organismo, e a resistência ocorre normalmente pela alteração no metabolismo ou estrutura. Quando o agente seletivo não está presente, temos a situação anterior - para as quais as linhagens não-resistentes já estavam adaptadas; quase sempre a alteração presente nas linhagens resistentes não trabalha bem nessas condições sem o agente seletivo - até por isso estão presentes em muito menor número (se estão). (Não é exatamente correto falar em "sem agente seletivo", o que ocorre é que a situação de seleção se altera.)
Pensemos, então, no caso dos antibióticos. A infecção se instala, é administrado o antibiótico. Linhagens resistentes proliferam. Quando se para de administrar o antibiótico, leva um tempo até que ele seja eliminado. A linhagem resistente continua a proliferar. Assim que o antibiótico é eliminado pelo organismo (é metabolizado e/ou eliminado pelas excreções), as linhagens não-resistentes passam a proliferar. Ou seja, o paciente fica em um quadro permanente de infecção. Esse é o problema.
Analisemos o caso dos antissépticos. Na nossa vida cotidiana, sem trabalhar em ambiente hospitalar ou em laboratórios de microbiologia, estamos em contato permanente com micro-organismos. Na maior parte do tempo, eles não fazem mal. Ou porque sua biologia não é patogênica, ou porque as nossas defesas dão conta. O uso de antissépticos apenas diminui - por um momento - a quantidade deles em partes (externas) de nosso corpo: diminuindo - por um momento - a probabilidade de infecções oportunistas. Na verdade, apenas o uso de sabonetes comuns já remove - por um momento - uma boa quantidade de micro-organismos do local lavado; sabonetes antissépticos apenas aumentam um pouco mais a quantidade removida. Mas o que acontece com as linhagens resistentes? Bem, o contato com antissépticos é apenas momentâneo - lavamos, a maior parte dos micro-organismos é removida, restando os poucos resistentes. Só que nosso corpo está em permanente contato com o ambiente, linhagens não-resistentes voltam e, normalmente, superam as linhagens resistentes. Na próxima lavagem, a maior parte das linhagens não-resistentes é removida, restando os poucos resistentes. As linhagens resistentes não levam muita vantagem nessa situação.
Não há motivo, portanto, de paranoia com os produtos de higiente que contêm antissépticos. (E como alerta Karl no Ecce Medicus, produtos de higiene com antibióticos são proibidos.)
Eu apenas acho que é desperdício de dinheiro comprar sabonetes antissépticos salvo em condições muito especiais - como recomendação médica (por exemplo, a pessoa tiver feridas na pele).
Upideite(28/out/2010): *Érico, nos comentários, observa que, dada sua origem evolutiva, as mitocôndrias também podem ser alvos de antibióticos voltados contra bactérias (em especial as alfa-proteobactérias);
**Karl, também nos comentários, observa que o artigo da Nature sobre resistência é sobre a resistência de uma enzima e não exatamente de uma linhagem. Mas como isso daria um alvo a menos para o triclosan, é lícito considerar que o organismo que possua essa variante enzimática seja mais resistente ao antisséptico do que a linhagem que não a possua. De todo modo há outros trabalhos que indicam linhagens resistentes, p.e., em
E. coli.
Upideite(28/out/2010): Aqui alguns artigos que mostram ceticismo sobre a utilidade dos produtos de higiene antissépticos em situações cotidianas:
Aielo, A.E.
et al. 2004.
Relationship between Triclosan and Susceptibilities of Bacteria Isolated from Hands in the Community. Antimicrobial Agents and Chemotherapy 48(8): 2973-9.
Levy, S.B. 2001.
Antibacterial household products: cause for concern. Emerg Infect Dis. 2001; 7(3 Suppl): 512–515.