Não sei se batemos o recorde de maior armadilha luminosa do mundo: essencialmente uns 100 metros quadrados de parede caiada de branco iluminada por uma lâmpada incandescente de uns 150 W. Mas creio que batemos o recorde mundial de lepidópteros atraídos para uma armadilha luminosa improvisada.
A casa, postada no alto do morro, o céu desobstruído e sem nenhuma concorrência por perto, a luz deveria alcançar quilômetros e quilômetros por sobre a floresta da reserva.
Em questão de minutos, as paredes ficaram quase que completamente forradas por um tapete vivo de mariposas, borboletas noturnas e alguns intrusos de outras ordens e filos. Minha estimativa bem grosseira é de algo na ordem de 10^5 a 10^6 indivíduos colados aos muros. Admiramos o fenômeno, estudamos alguns exemplares, e desligamos a luz. (Uma consequência não calculada é que dentro da casa haveria dezenas de mariposas mesmo mantendo-se portas e janelas fechadas - com aquele batalhão inevitavelmente alguns encontrariam espaços das brechas. Ocorre que a casa era também o local para nosso pernoite. Lepidópteros recebem esse nome por causa das escamas - gr. lepidos - que enfeitam suas asas - gr. pteros. Escamas que, entre outras coisas, permitem escapar de teias de aranha por destacarem-se facilmente. A cada batida, umas poucas são perdidas. Com dezenas e dezenas voando em aposentos limitados, isso era o pesadelo de qualquer asmático. Não sou asmático, mas ainda respiro pelos pulmões. E pulmões e vias aéreas superiores não são o melhor lugar para pequenos fragmentos de quitina. Foi mais ou menos como dormir no Saara, durante uma tempestade de areia.) Lá fora, uma boa parte acabou se dispersando, mas era possível encontrar os restos mortais de um bom bocado (as formigas se banqueteavam com boa parte): talvez tivessem esgotados suas últimas energias, que guardavam para a próxima Lua cheia (a de verdade) onde finalmente encontrariam suas caras-metade sem a concorrência de centenas de milhares
Insetos e outros organismos noturnos evoluíram de modo a utilizar pistas luminosas em seus ciclos e modos de vida. Durante centenas de milhões de anos, a única fonte noturna mais intensa de luz - afora eventuais erupções, cometas e relâmpagos - no céu (não estou contando com o fenômeno do sol da meia noite) foi nosso satélite natural: especialmente em sua fase cheia. Visível para todos em um mesmo local, basicamente ao mesmo tempo, é um ótimo sinal de sincronização para o que quer que seja vantajoso que todos os indivíduos façam ao mesmo tempo: como maturação sexual e acasalamento (se um indivíduo está maduro sexualmente enquanto a imensa maioria dos demais de sua espécie não está, as chances de encontrar um parceiro sexual são bastante diminuídas). Movendo-se lentamente pela abóbada celeste, a Lua cheia serve como uma orientação suficientemente fiel de direção. Todos movendo-se em direção à ela**, posto que não sairão pela atmosfera afora rumo ao espaço, acabam se encontrando no meio do caminho (claro que descargas de outros sinais como feromônios e sons ajudam muito).
Naquela noite eles não contavam com o fato de que a Lua estaria tão perto. A ponto de trombarem com ela. Bem, não era a Lua. Era a casa. A armadilha luminosa.
Por centenas de milhões de anos não havia esse perigo. Mas agora há. E não apenas uma pequena casa no meio da Estação Ecológica de Boracéia. São bilhões de pontos concentrados em milhares de aglomerações que chamamos de cidades. Iluminados a ponto de serem visíveis do espaço (Fig. 1).
Figura 1. Terra à noite. Imagem composta de fotografias de satélite. Fonte: Nasa.
Utilizados de modo calculado esses bugs no cérebro de insetos e outros organismos ajudam os cientistas em seus estudos - ainda que ocasionalmente possam de modo inadvertido causar um impacto centenas de milhares de vezes maior do que o inicialmente pretendido; mas nossos dispositivos de iluminação noturna, projetados para nosso conforto e segurança, geralmente não levam em conta o impacto que têm nos demais seres.
De tartarugas recém-eclodidas que vão em direção errada, rumo às luzes da cidade, e não ao clarão da Lua refletido nas águas do mar; às aves e mamíferos que têm seus hábitos crepusculares estendidos; insetos bioluminescentes que têm seus sinais inviabilizados pela claridade; predadores que não podem mais contar com a escuridão noturna para surpreender suas presas, nem presas que podem contar com a proteção do breu. Para uma revisão dos possíveis efeitos da poluição ecológica luminosa sobre organismos terrestres e aquáticos, veja, por exemplo, Longcore & Rich 2004.
Astrônomos reclamam das oportunidades perdidas com a poluição luminosa, mas para bilhões e bilhões de seres, o preço pode ser ainda mais menos brilhante. O crescimento da população urbana e o desenvolvimento econômico são importantes fontes de pressão que tendem a aumentar a poluição pela luz. Medidas de controle têm sido sugeridas e implementadas: rebatedores para evitar o vazamento de luz diretamente para cima e fora da área a ser iluminada, uso de intensidade adequada para o fim, limitação do tempo de iluminação, e uso de fontes com espectro luminoso adequado (evitando-se as com fortes emissões da faixa do azul). Mas os efeitos da adoção desses controles ainda são incertos,
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Esta postagem faz parte da comemoração da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia 2015, cujo tema é "Luz, ciência e vida".
*Upideite(23/out/2015): A blogagem acabou saindo. Inclusive com reportagem sobre a ação feita pela equipe de reportagem do MCTI.
**Upideite(10/set/2024): Segundo um artigo publicado em 2024 e que descreve experimento com várias espécies de vários grupos de insetos, a orientação não seria em direção à fonte de luz, mas para mantê-la incidindo sobre o dorso. (HT Elfa dos Insetos.)
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